Capítulo VIII - A revolta das putas

Enfim, já havia sido malandro, militar, herói de guerra e estava arriscado a virar mendigo, sem eira, nem beira, sem ter onde cair morto. Acordei na manhã seguinte com todo mundo me olhando, me irritei e levantei perguntando se nunca tinham me visto, qual era o problema, uma senhora respondeu que problema nenhum dormir na praça, o problema era eu estar pelado.

Quando me olhei vi realmente que estava pelado e cheio de vergonha peguei minha camisa, cobri as partes íntimas e com isso a multidão foi se dispersando. Um fato meu que vocês não sabem ainda, eu sou sonâmbulo e provavelmente tirei a roupa dormindo, coisa de doido mesmo. Vesti-me e quando acabei o Lindão com uma garrafa de cachaça na mão, bêbado se aproximou e disse que não queria mais que eu dormisse em sua residência, que eu afrontava a moral e os bons costumes.
   
A situação era cada vez pior, agora tinha sido expulso até da praça por um mendigo. Caminhava pela cidade sem saber o que fazer quando uma senhora passou por mim, era a dona Áurea, ela riu e comentou que até que eu era bonitinho sem roupa, antes que eu pudesse me ofender ela perguntou se eu precisava de algo.

Respondi que estava tudo bem. Só com uns probleminhas, mas era nada demais, tirando o ato de ter sido expulso de casa e não ter onde ficar e estar sem um tostão no bolso tudo corria as mil maravilhas. Dona Áurea gargalhou e falou que iria me ajudar se eu quisesse, era só ir a seu estabelecimento mais tarde.

Sim, eu sei que até essa parte do livro eu nunca havia falado de dona Áurea, mas agora ela se transforma em parte importante da história. Ela era dona de uma das casas de baixo meretrício da zona da cidade e me conhecia desde o episódio da epilepsia do Rodrigo que ocorreu na casa dela, eu também era conhecido por ser filho do prefeito. Então apesar de não termos muito contato ela sabia quem eu era.

Fiquei pensando no que fazer, se topava o convite. Eu me considerava um cara moderno, mas mesmo assim era complicado imaginar o que eu faria na zona se não fosse pra brincar com umas rameiras. Mas eu não estava em um momento de muitas opções, acabei topando o convite e mais tarde apareci na zona.

Quando entrei na casa tinha umas meninas conversando sentadas a uma mesa, na hora que me viram falaram em uníssono “Oi Doido”, minha fama corria mesmo. Acenei e fui ao encontro de dona Áurea que fazia anotações no balcão. Ela me olhou e lembrei que ela tinha falado para que eu aparecesse e perguntei o que ela queria comigo. Dona Áurea tirou os óculos e perguntou se eu queria trabalhar pra ela.

Agradeci, disse que seria uma honra, mas que não acreditava que eu fizesse muito sucesso com seus clientes. Ela me olhou por uns segundos como se não tivesse entendido e depois parece que entendeu porque gargalhou. Dei um sorriso meio amarelo e ela rindo falou que eu era muito engraçado e que realmente não era para essa função que estava pensando em mim, mas ela precisava de um “faz tudo” na casa. Alguém que resolvesse os problemas do dia a dia me daria hospedagem, alimentação e um dinheiro que se não era muito me ajudaria naquele momento difícil.

Achei que era uma boa opção e aceitei o serviço, assim me mudei de mala e cuia para a zona.

Senti-me em um parque de diversões, trabalhando onde todo mundo gostava de se divertir e era muito gostoso. As meninas gostavam de mim e não era incomum que uma aparecesse de toalhas pedindo para que eu consertasse o chuveiro ou outra de camisolinha curtinha pedindo que eu fosse até o quarto porque tinha rato embaixo da cama. Eu prestativo sempre fazia o que elas queriam e no fim elas me recompensavam.  

Havia uma especial, Rafaela, uma morena pernambucana de tirar o fôlego. Adorava jogar totó com ela, em alguns lugares totó é chamado de pebolim.

 Nós jogávamos, mas perdia totalmente a concentração quando a Rafaela empolgada com o jogo se abaixava para mexer nos bonequinhos e seu delicioso decote ficava à mostra, com alguma sorte aparecia o rosado do bico do seu seio. Eu que malandramente aprendi com meu avô que às vezes perdendo a gente vencia deixava que ela me vencesse. Rafaela ficava muito feliz, dava pulos de alegria, me abraçava, dava um beijão e dizia que eu era de nada muito fraco. Eu ria e falava que iria mostrar quem era o fraco no quarto.

A notícia que eu estava trabalhando na zona correu. Logo Gustavo e Rodrigo ficaram sabendo e foram me visitar, enquanto eu lavava os copos no balcão eles riam e mexiam comigo perguntando quanto eu cobrava, eu devolvia a brincadeira me fazendo de gay e dizendo que cobrava muito mais que o cacife deles podia pagar. Era uma grande farra.

No fim da noite Gustavo me chamou para que sentasse a mesa com eles que tinha algo sério pra me contar, sentei e Gustavo me contou que as eleições municipais estavam chegando e ele viria candidato a Prefeito e Rodrigo a vereador. Achei legal a idéia e achei incrível que meu pai tivesse os apoiando, Gustavo respondeu que não, eles se candidataram pela oposição,
parabenizei os dois pela coragem e desejei boa sorte.

Rodrigo me contou que descobriu que meu pai tinha um caso com sua mulher e perguntou se eu sabia. Respondi que sim, mas preferi ficar quieto porque era um assunto delicado que eu não sabia como falar. Meu amigo deu um gole em seu copo e falou que tudo bem e que no meu lugar também não saberia como contar, disse-me que os dois estavam morando juntos e ele queria vingança e a melhor forma de se vingar era tirar aquilo que meu pai mais prezava. Seu poder.

Gustavo, com voz firme e como se discursasse disse que era hora do poder mudar de mãos, era hora das velhas oligarquias caírem, as mãos corruptas que sempre se voltaram contra o povo, era a hora da juventude para que Tremembé crescesse e os dois não queriam apenas que eu desejasse boa sorte. Queriam que eu trabalhasse com eles na campanha.

Concordei e comecei a me dividir em dois, trabalhava na casa de dona Áurea e na campanha dos dois. Uma noite meu pai foi a casa, não falou comigo em momento nenhum, sentou com mais dois políticos de sua base e três meninas, entre elas a Rafaela e bebeu a noite toda. Foram para um quarto, voltaram e continuaram bebendo. Em certo momento já completamente bêbado, meu pai levantou-se e começou a fazer um discurso falando da moral, dos bons costumes e da família.

O discurso era cheio de indiretas para mim, eu engolia a tudo calado e continuava enxaguando e enxugando os copos, meu pai notou que eu não respondia e decidiu aumentar o tom e falar diretamente de e para mim.
 Disse que tinha um filho que era uma ovelha negra, sempre foi um desgosto para a família e ao contrário dos seus dois filhos mais velhos esse era um criador de confusões e já havia se envolvido em problemas com cabras, sumiço de meninas de família e viveu na marginalidade no Rio de Janeiro. Deixou que o irmão morresse na guerra, o apunhalou dentro da própria casa e agora o envergonhava trabalhando na zona. Apontou pra mim e disse “senhoras e senhores, esse é meu filho Doido, a vergonha da família Alencar Varela”.

Eu não sabia se chorava ou me enfurecia, a vontade era partir pra cima dele. Dona Áurea se aproximou de mim, botou a mão em meu ombro e falou “calma”. Foi ao encontro do meu pai, disse alguma coisa em seu ouvido e meu pai falou a todos que estava na hora de ir embora, colocou seu chapéu e saiu com os políticos. Perguntei a dona Áurea o que ela havia falado que meu pai do nada decidira ir embora, ela sorriu e respondeu “segredos de alcova”.

Meu pai não foi a única pessoa da família a me visitar na zona. Uma tarde estava faxinando o salão quando ouvi uma voz me chamar, olhei na porta e lá estava minha irmã Sandra.

Dei um sorriso, fui até ela e a abracei, tempo que não via minha irmã querida. Perguntei o que fazia lá e falei que aquele não era ambiente para ela. Sandra fez um carinho em meu rosto e perguntou se podia entrar e conversar comigo, disse que sim, entramos, peguei duas cadeiras e sentamos. 

Sandra começou a falar então. Disse que eu a conhecia desde muito pequeno e sabia como ela era, que nunca foi uma menina igual às outras, gostava de amor, de fazer amor. Constrangi-me e ainda tentei argumentar que aquele não era um papo para ter entre irmão, ela pediu que deixasse que continuasse, permiti.   

Sandra contou que não estava satisfeita com a vida que levava, não sonhava em ser professora e queria trabalhar ali. Quando ela contou um filme passou à minha mente, lembrei de Luciana, a menina que queria ser prostituta e me perguntei o que ocorria com essas mulheres e porque recorriam a mim para essas coisas.

Falei que eu recebera o nome de Doido, mas a doida da família era ela, perguntei de onde ela tinha tirado aquela idéia e que era um absurdo. Cada vez mais eu tinha a certeza que o único normal daquela família era eu. Ela mandou que eu parasse de besteira e que ela era dessa forma, era de sua natureza e assim como Luciana ameaçou que se eu não a ajudasse faria por contra própria. Contrariado aceitei e gritei por dona Áurea, quando ela apareceu disse “garota nova” e levantei para deixar as duas sozinhas. 

Dessa forma minha irmã começou a receber por aquilo que a vida toda fez de graça. De noite estava ela lá no meio das outras meninas, parecia se sentir em casa. Rafaela chegou por trás de mim, abraçou e falou com aquele sotaque delicioso “bichinho, essa que é minha cunhada?” ri e respondi que sim, ela ainda falou “eita mulher corajosa da moléstia”, me largou e foi para o salão sentar ao seu lado enquanto ela conversava com um grupo de homens. 

Fiquei com as palavras da Rafaela na cabeça, “mulher corajosa”, nunca havia parado pra pensar por esse lado e enquanto minha irmã pegava chave do quarto comigo para ir trabalhar pensei que realmente era um ato de coragem. Não se prostituir, isso é de cada um e eu não tenho nada a ver com isso, mas realmente ela tinha coragem em assumir o que era, gostava e correr atrás.

Assim como minha mãe que foi corajosa ao assumir amor por um padre e por esse amor cometeu um ato extremo, que para uns é de covardia, para mim de coragem. Lembrei das histórias que ouvia em casa que a forte da minha família era minha avó Ema, que meu avô obedecia tudo que ela mandava. Comecei a ter orgulho da minha irmã, não só dela como das mulheres da minha família, elas eram a fortaleza de todos nós, nós os homens éramos muito mais frágeis.

Mas claro que aquela atitude de minha irmã virar prostituta não iria ficar barata, claro que meu pai iria se enfurecer e foi o que ocorreu. Uma noite apareceu furioso na casa e tentou de todas as formas levá-la de volta. Sandra se recusou e valente como sempre o enfrentou os dois com dedo em riste. Vendo que não conseguiria nada voltou sua fúria para mim e disse que eu era o culpado por minha irmã ter se corrompido, não considerava nenhum dos dois mais seus filhos e aquilo teria troco e realmente ele preparou o troco.    

Apresentou um projeto na Câmara de vereadores propondo a demolição da zona e que lá fosse construída a nova prefeitura de Tremembé. Argumentou que o espaço onde estava o prédio era pequeno e obsoleto. Uma cidade que pretendia ter um futuro promissor, alcançar a modernidade precisava de um local imponente e moderno para ser comandada.

Assim meu pai queria matar três coelhos com uma cajadada só. Fazia um projeto tipicamente eleitoreiro para vencer as eleições, enchia seu bolso de dinheiro público desviando verba para as obras e o mais importante para o momento, se vingava de nós.

Preciso nem dizer que a zona entrou em polvorosa. A população tremembense toda apoiou o prefeito. Tremembé tinha um povo muito hipócrita, adoravam freqüentar igrejas, prezar pela família, austeridade, mas por debaixo dos panos a sacanagem corria solta. A zona só tinha tantas casas e dava tanto lucro porque era muito freqüentada, desde os poderosos da cidade até os adolescentes cheios de hormônio. Mas aquela era uma
situação perigosa para as prostitutas e donos de casas e por isso o pânico.

Uma reunião foi marcada para discutir o assunto. Todos os donos de casas e prostitutas se reuniram para discutir o que fazer, como evitar o fim da zona e a perda de suas fontes de renda. Era uma grande confusão com todo mundo falando ao mesmo tempo e ninguém se entendendo. Eu ouvia a tudo calado, sentado na minha cadeira pensando numa solução até que achei uma e no meio da discussão falei a palavra “greve”. Ninguém me deu atenção e continuaram discutindo, falei novamente “greve” e novamente não me deram atenção, até que fiquei irritado, levantei e gritei “greve!!!”.

Dessa vez todos pararam e me olharam. Contei que a única solução era fazer uma greve, não atender mais ninguém, ainda argumentaram que aquilo era loucura, adiantaria nada e ainda perderiam dinheiro. Respondi que era a única solução, eles tinham que sentir falta das meninas, falta das farras e receberem cobrança do restante dos freqüentadores, os comuns. Dona Áurea se levantou e disse que eu estava certo e a única chance era greve. Todos concordaram, se levantaram e como sindicalistas dos ABC gritaram palavras de ordens e que estavam em greve.

Assim dava-se início a greve mais inusitada da história de Tremembé do Oeste. De noite quando os homens chegaram à zona encontram as casas fechadas com papéis nas portas contando que as meninas estavam em greve e as casas não abririam enquanto o projeto do prefeito Idovaldo Varela estivesse transitando. Os homens desesperados ainda bateram na porta pedindo para que abrissem, mas as meninas todas foram nas janelas e reforçaram que não, que com o projeto não tinha cama.

Foram dias muito movimentados em Tremembé, a cidade entrou em ebulição, o menino que vendia jornais passava com sua bicicleta gritando “Extra!! Extra !! Mulheres da vida entram em greve em Tremembé!!”.

Uma reunião de emergência foi marcada no gabinete do meu pai. Homens lhe pressionavam falando que queriam ir à zona e não podiam, não tinham como beber, transar porque as prostitutas se recusavam. Meu pai mandou que eles se acostumassem porque com o fim da zona aquilo seria definitivo.

Mas a verdade que os homens da cidade, entre eles vereadores, comerciantes, fazendeiros, o delegado, pessoas influentes estavam nada satisfeitas enquanto as mulheres de Tremembé davam apoio ao meu pai.   
Apesar de não ter mais unanimidade entre os tremembenses e ter transformado a situação numa guerra dos sexos meu pai manteve o projeto e chegou o dia dele ser votado na câmara de vereadores.

A cidade parou nesse dia, os grupos de proteção a família, as mulheres religiosas, os cidadãos ditos acima do bem e do mal fizeram uma passeata a favor do projeto de meu pai. Na mesma hora todos os donos de casas da zona, as prostitutas e clientes também fizeram uma passeata contra o projeto, nessa passeata estavam Gustavo, Rodrigo e eu. As meninas gritavam palavras de ordem como “projeto com não, calcinha no chão, projeto aprovado, cliente largado.”

As duas passeatas se encontraram na frente da câmara e começaram a trocar provocações. Fabíola que estava na passeata a favor do meu pai olhou pra Rodrigo e disse que tinha certeza que ele estaria a favor das “quengas”, que era sua cara, Rodrigo devolveu a provocação dizendo que ela sim havia surpreendido, porque com seu histórico de vida tinha certeza que ela apoiaria as putas. Fabíola se enfureceu com a resposta, partiu pra cima do Rodrigo e uma briga generalizada se iniciou.

Beatas e putas rolavam pelo chão puxando os cabelos uma da outra, unhadas, mordidas. Eu ao lado do vendedor de pipocas comia um saco de pipocas salgadas junto com o delegado perguntando se ele faria nada, ele que também comia pipocas respondeu “Eu não, deixe que se matem”. Realmente a pipoca estava mais gostosa.

Após a briga todos entraram e foram para a sacada da câmara assistir à votação. As meninas tensas, as beatas rezando. Eu, sentado na primeira fileira notei uma movimentação diferente no plenário, quando fui ver dona Áurea estava lá, entregou um papel para um vereador, sorriu e saiu. Algum tempo depois ela sentou ao meu lado e perguntei o que era aquele papel, ela sorriu e disse que eu já iria descobrir.    

O vereador passou o papel para outro vereador, esse a outro e o papel foi indo de mão em mão. Eu curioso com aquele papel, logo após o presidente da câmara anuncia o início da sessão, meu pai faz um discurso defendendo o projeto enquanto o papel continuava rolando, a votação se iniciou.

Qual não é nossa surpresa quando por uma maioria esmagadora o projeto do meu pai é vetado, a zona continua intacta no mesmo lugar. As meninas pulam, comemoram, se abraçam, as beatas saem com raiva. Me viro pra dona Áurea e pergunto “como?” ela responde que no papel estavam os nomes de todos os vereadores que freqüentavam sua casa e que se o projeto passe aquele papel pararia no Diário de Tremembé..é..mulher astuta aquela.

Na saída da câmera, Gustavo, Rodrigo, Sandra e eu encontramos meu pai. Ele veio à gente e cumprimentou Gustavo, dando parabéns e falando que a guerra estava só começando, se virou e foi embora ignorando a mim e a Sandra.   

Fiquei triste. Por mais problemas que tivesse com ele era meu pai, o pouco de família que me restava. Sandra me abraçou, deu um beijo em meu rosto e disse que tinha orgulho de mim, sorri e ainda falei “orgulho de quê?”, ela respondeu que por ser quem eu era, uma pessoa doce, amiga e que tinha acabado de liderar uma revolta, a revolta das putas.

É, eu tinha novamente virado herói, herói da revolta das putas, o Tiradentes do baixo meretrício.   

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