TROCANDO AS BOLAS



*Capítulo da coluna "Enredo do meu samba" publicado no blog Ouro de Tolo em 06/07/2013


Senti um arrepio com a história. A gente nunca sabe com quem convive, quem vê cara não vê coração e em todos os clichês disponíveis eu pensei. Olhei para Saulo e o homem estava em um canto conversando com algumas pessoas. O rosto era de cansado, olhar triste, natural.

Perguntei sobre Gaspar e Manolo me contou que estava internado em um hospital psiquiátrico. Olhei mais um tempo para Saulo e me aproximei do grupo pra bater papo, falar de amenidades.

O samba com feijoada corria solto. Fui pegar uma cerveja com o Almeidinha e o Zé se aproximou também para pedir uma. O namorado de Bia agradeceu o convite e disse achar bacana a minha relação com sua namorada, de adultos. 

Almeidinha entregou nossas cervejas junto com um copo com gelo que Zé tinha pedido. Ele olhou pra mim, disse que estava quente demais e passou um pedaço de gelo na nuca soltando um “ai”. Achei que estava na hora de voltar pra mesa.

Ao sentar meu pai virou pra mim e disse “é, ele é..”, antes de beber perguntei “não falei?”. Bia se aproximou e perguntou do que falávamos.

Respondi que era nada demais e Julinha veio para meu colo agradecendo por ter chamado, pois estava muito legal. Bia olhou pra mim e sorrindo agradeceu também. Não pude perder a oportunidade e retruquei “Olha, um sorriso”, minha ex rindo pediu que eu não me acostumasse. 

O samba rolava e eu totalmente absorto pela ideia do livro olhava a cada um pensando que história cada pessoa ali presente tinha por trás, cada caso extraordinário que poderia ser contado quando um homem se aproximou de meu pai lhe cumprimentando.  

Era o Cardosinho, diretor de harmonia da Unidos do Robalo. O homem cumprimentou meu pai e disse que meu velho fazia falta na escola. Seu Jair foi diretor da agremiação durante alguns anos.

Meu pai colocou a mão no ombro de Cardosinho e perguntou o que ocorrera que a escola mais uma vez fora rebaixada e agora iria desfilar na Intendente Magalhães. Cardosinho se lamentou e contou que sem o Foguete tudo ficava mais difícil.

Eu que saboreava um mocotó parei na hora e vi ali uma nova história pra ser contada. Perguntei o que tinha ocorrido com o Foguete e Cardosinho ficou ressabiado em contar. Contei que seria para um livro, que não se preocupasse, pois eu não citaria seu nome e mudaria algumas coisas na história pra não ficar tão na cara e o homem decidiu explanar.  

Foguete era considerado um cara 100% comunidade do morro do Robalo. Nasceu na favela e todos lhe viram crescendo. Interessou-se pela agremiação “robalense” e começou tocando caixa, logo passou para os tamborins e se transformou em um dos diretores de bateria.

Paralelamente estudou e entrou pra PM. Casou com Isaurinha e saiu do morro indo morar em Bento Ribeiro. Aos poucos ia se dedicando mais a profissão e deixando a escola de samba de lado.

Ninguém sabia como com a miséria de salário que recebia, mas Foguete foi ganhando dinheiro como um “foguete”. Rapidamente deixou Bento Ribeiro e foi morar num condomínio da Barra. Lugar dos novos ricos. A rapaziada do Robalo achou estranha a nova vida de Foguete e também a forma como reapareceu na favela.

Junto com outros companheiros de PM colocou a bandidagem pra correr do morro e explicou para a comunidade que seria seu protetor. Em troca de uma módica quantia dos moradores forneceria gás, gatonet e outras benesses além da proteção e garantia que os traficantes não voltariam ao morro.

Em contrapartida os moradores apenas teriam que pagar a tal módica quantia, uma mensalidade. Não seriam obrigados para tal, assim como Foguete não precisava então tomar conta da vida do morador e ele poderia, em circunstâncias do destino, aparecer numa vala com trinta tiros pelo corpo.

Acidentes acontecem..

Com a moral que Foguete ganhava dentro da comunidade era natural que ele retornasse a Unidos do Robalo. Começou como diretor de carnaval, ajudando a agremiação com algum dinheiro na administração Paulinho Paraíba. 

Mas Paulinho vacilou. Pegou metade da grana do carnaval e investiu no barraco na favela transformando em castelo com piscina olímpica e cascatas de cerveja na entrada do local.

Estaria tudo certo se a Robalo viesse bem na avenida. Mas a escola caiu pro acesso.

Dessa forma a casa do Paulinho Paraíba também caiu. O homem virou churrasquinho dentro do carro que foi incendiado pelo milicianos.

Sim. Se você ainda não notou Foguete implantara a milícia no morro. Você pode não ter notado, mas o comando da PM sim e o homem foi expulso da corporação.

O que não fez Foguete derramar uma lágrima. Ganhava muito dinheiro comandando a milícia em alguns morros da área da “grande Robalo” e tráfico de armas e drogas para outros bairros da região. Morava em uma verdadeira fortaleza com Isaurinha, a linda mulata que se tornou rainha de bateria da Unidos.

Assim como com a vacância do cargo de presidente evidente que este caiu no colo de Foguete. Em uma festa cheia de celebridades, pessoas da sociedade carioca, políticos e jornalistas na quadra da escola Foguete prometeu que a escola voltaria ao grupo especial e seria campeã.

Promessa feita e cumprida. No ano seguinte a escola estava de volta ao especial e voltou arrebentando com tudo sendo campeã. Foguete era muito prestativo e adorava dar presentes. Deu um carro e uma caixa de uísque a cada jurado antes do desfile e convidou todas as pessoas importantes da cidade, inclusive dirigentes da Liga para seu nababesco camarote na Sapucaí com bebidas de todos os gêneros e cascatas de camarão.

Como eu disse acima Foguete adorava dar presentes e era uma espécie de “pai dos pobres”, o “papai Noel de Robalo”. O homem era malandro. Sabia que pra comunidade não lhe trair tinha que adular e sempre realizava festas na quadra para fazer doações.

Ao mesmo tempo em que expandia seus negócios e ficava cada dia mais rico e poderoso.

Foi aí que se deu a grande cagada.

O Natal se aproximava e Foguete queria doar presentes para as crianças como fazia todos os anos. O homem adorava se vestir como o bom velhinho, chamar a imprensa e doar os brinquedos. Queria ser deputado estadual e sabia como aquilo era importante para sua imagem.

Chamou seu principal assessor o Zé Macumba e pediu que arrumasse os brinquedos. Queria um caminhão cheio de brinquedos na véspera de Natal dentro da quadra para doar a suas crianças. Macumba respondeu que faria o que o chefe mandou e já tinha os contatos com a fábrica de brinquedos.

Zé Macumba fez todos os contatos, pagou a fábrica e decidiu ajudar seu irmão Chico Pastor que estava desempregado. Chico fora motorista de caminhão então Macumba perguntou se ele queria pegar uma carga pro “doutor”.

Pastor ressabiado perguntou se era algo ilegal. Macumba mandou que não se preocupasse. Eram os brinquedos de Natal e o único trabalho que o irmão teria era ajudar na fábrica a carregar o caminhão com os presentes e levar pra quadra.

Na manhã marcada Chico Pastor pegou o caminhão com o irmão e foi até a fábrica. Ajudou a carregar o veículo com brinquedos até o teto da caçamba e pensou “as crianças vão ficar felizes”.

Ligou o caminhão e foi em direção a quadra onde a festa já se iniciava. No meio do percurso sentiu uma forte dor de barriga e largou o caminhão com chave na ignição e tudo na frente de um bar correndo para o banheiro.

Saiu aliviado e aproveitou que já estava na birosca para pedir um almoço. 

Enquanto comia um homem mal encarado sentou-se a seu lado também pedindo uma refeição. Pastor cumprimentou e não recebeu resposta. Entre uma garfada e outra pensou “que mal educado”.

Acabou de comer e saiu. Notou a coincidência de ter um caminhão igual ao que dirigia ao lado do seu e subiu para continuar viagem. Notou que a chave não estava na ignição, achou estranho, mas lembrou seus tempos de adolescente fazendo ligação direta e partindo.

Chegou na quadra da Unidos do Robalo já lotada de crianças e imprensa e tomou bronca de Macumba pela demora. Pastor tentou explicar o contratempo que teve enquanto Macumba chamou Foguete e disse “está tudo em ordem doutor”.

A imprensa posicionada para tirar fotos do ato de foguete abrindo a caçamba. A bateria tocava enquanto o puxador cantava “eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel”. Foguete chamou as crianças e sorrindo pra imprensa gritou “Feliz Natal para todos!!”.

Sem olhar para a caçamba Foguete abriu e disse “aqui está meu presente para as crianças”. Por alguns segundos a quadra ficou muda. A imprensa de boca aberta e as crianças sem nada entender. De repente os jornalistas metralham com suas máquinas o interior da caçamba e pelo estarrecimento de todos Foguete nota que algo está errado.

O miliciano olha a caçamba e o negão ficou branco. Não tinha brinquedos no caminhão. Tinha cocaína, muita cocaína!! Chico Pastor, que notara a cagada que fez, saiu de mansinho sem ninguém perceber e Foguete só conseguiu ter uma reação e gritar.

“Puta que pariu!! Que merda é essa??”    

A imprensa tirava fotos da caçamba e de Foguete. Meu amigo Diego Mendes pedia pro miliciano sorrir e não restou alternativa para a polícia presente que prender Foguete.  

O presidente da escola foi algemado e levado ao camburão gritando que era inocente e aquela droga não era dele.

Fez um monte, pagou pelo que não tinha culpa e a festa foi encerrada.
Chico Pastor entrou correndo no barraco e mandou a patroa arrumar umas roupas e sair de casa logo que eles estavam com problemas.

A esposa perguntou “nós também?” e o homem retrucou “como assim nós?”.

A mulher disse que o irmão dela, que há décadas não via, estava escondido embaixo da cama por entregar brinquedos numa favela para traficantes em vez de cocaína.

Feliz Natal.



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TRANSTORNO DE PERSONALIDADE

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