Capítulo IX - Léo

No dia seguinte várias personalidades do mundo do samba estavam no enterro. Jurema desconsolada não parava de chorar sendo amparada pelos filhos.

Foam quarenta anos de relacionamento entre Balão e Jurema, trinta de casados. Balão foi seu primeiro namorado e mesmo com todos os problemas, com a violência doméstica, traições Jurema lhe amava e acredita-se que de seu jeito torto Balão também a amasse.

Um surdo de primeira fazia a marcação tocando suavemente se despedindo de Balão enquanto o caixão descia a sepultura. As bandeiras do Boi da Ilha, Acadêmicos do Dendê e União da Ilha, escolas que ele escreveu cobriam o caixão na última despedida.

Mariano conseguiu graças a seu bom comportamento permissão da justiça para acompanhar o enterro do pai e ao lado de Lucas revelou ao irmão que com o pai morto e ele preso o cantor era o homem mais velho da família e tinha que protegê-la.

Mariano abraçando Lucas pediu que não faltasse nada a mãe e Lucas prometeu que lhe amparia.

Léo passou por Lucas e contou que esperaria o amigo na frente do cemitério. Lucas concordou sabia que o amigo detestava enterros e passava mal nesses momentos.

Com o pai enterrado Lucas e Jonas amparavam a mãe na saída do cemitério com a imprensa ávida tirando fotos e tentando arrancar declarações dele além de inúmeros populares que gritavam o nome de Lucas.

Nesse instante o telefone de Lucas tocou. Ele atendeu e ouviu o que o interlocutor tinha a dizer, no fim o rapaz agradeceu e disse que não era mais necessário desligando.

Mayara que acompanhou o marido todo instante perguntou o que era e Lucas respondeu que ligaram pra informar que era pra levar o pai ao hospital porque tinham um fígado pro transplante.

Tarde demais.

Balão foi mais uma vítima do precário sistema de doação de órgãos do Brasil. Falhas no sistema, poucos doadores, falta compaixão para as pessoas. Falta que elas entendam que quando alguém morre o ser que amamos não está mais ali, ali só fica matéria e essa apodrecerá com o tempo.

Falta percepção para sentir que a vida continua e a perda do ente querido pode ser um renascimento. A salvação de outra pessoa e dessa forma a vida de quem amamos se perpetua.

A vida para Balão acabou, mas para Lucas continuava. Ele e Léo viviam o auge da carreira.

 O cd era um sucesso, vendendo como água a ponto de Lucas passar pelo camelódromo da Uruguaiana e ouvir sua música tocando.

Chegou à barraca de CDs piratas e pediu um da dupla Lucas e Léo perguntando se vendia bem. O homem abriu uma caixa de papelão cheia de CDs e pegou o da dupla sem olhar quem comprava dizendo que sim e esse cd que vinha garantindo o bife com feijão e arroz da família.
                                                                                                             
Ao olhar pra frente o homem da barraca notou que era Lucas. Gaguejando e pedindo desculpas o homem entregou o cd ao cantor que sorrindo pediu mais dez.

O homem nervoso pegou mais dez cds, colocou numa sacola e entregou a Lucas que agradeceu e pagou. Lucas virou para ir embora, mas antes de ir falou ao homem que sabia a importância de um bife junto com o feijão e arroz.

Botou óculos escuros, mas não adiantou muito. Reconheceram o astro e cercaram pedindo autógrafos. Lucas atencioso deu autógrafo e atendeu a todos.

Depois foi até a Central do Brasil rever companheiros do tempo que trabalhava como engraxate lá. Abraçou vendedores de suco, de salgados, o dono da banca de jornal e reparou em um menino engraxate.

Chegou até o menino que ao notar a presença do cantor com os olhos brilhando exclamou “Lucas!!”. O cantor perguntou quanto estava a engraxada e o menino respondeu dez reais.

Lucas sentou na cadeira e mandou que o menino caprichasse. O garoto nervoso engraxava os sapatos enquanto Lucas brincava que ele tinha tomado seu ponto.

No fim Lucas perguntou “dez reais né?”, o menino respondeu que sim e o cantor tirou duzentos reais da carteira e lhe deu. O menino espantado olhava Lucas sem nem saber o que fazer e o rapaz fez carinho em seu rosto dizendo “se cuide e estude” indo embora e pensando na cara da mãe do menino quando ele chegasse com o dinheiro.

Lucas e Léo começaram a fazer shows no exterior. Apresentaram-se na Argentina, mais precisamente em Buenos Aires e o show teve tanta procura que virou três shows na capital portenha.  

Lucas, Léo, Mayara e Jussara curtiram Buenos Aires e todas suas atrações. Comeram bife de lomo e foram a casas de tango e claro Lucas fez questão de conhecer o Boca Jrs e o River Plate.

Provavelmente até então a dupla nunca tinha se encasacado tanto. Estavam dez graus e isso pra carioca é a morte.

A dupla gravara “Momentos” em espanhol e a música era grande sucesso na América do Sul. Estava nos planos depois de pequenas férias de duas semanas que eles gravassem um cd em espanhol e três meses depois entrassem em estúdio para gravação do segundo cd em português.

Grupos de pagode gravaram “Jeito de menino”, a música que Lucas fez para Balão tornando-se o segundo sucesso nacional de Lucas como compositor. O segundo sucesso da dupla Lucas e Léo que alcançou o Brasil todo assim e como “Momentos” conseguiu chegar ao primeiro lugar das paradas de sucesso também veio.

A música chamava-se “Garota” e assim como “Momentos” pendia pro lado romântico e pro suingue.

Quando a dupla começava a cantar essa música as meninas histéricas choravam na platéia e cantavam junto. Lucas e Léo eram um fenômeno nacional. Um ano antes restritos ao circuito de funk.

Naquele instante os maiores vendedores de cd do Brasil.


GAROTA


Garota, muito prazer
Sou o cara que quer te conhecer
Na verdade eu te vi nascer
Que loucura, me apaixonei por você

Eu te peguei no colo
Compus canções pra te ninar
Hoje teu amor imploro
E canto de novo pra te conquistar

Ôôô vem fazer amor comigo
Ôôô só vou ter prazer contigo
Vem pra cá vem dançar
Quero você me deixa te amar

Garota, você cresceu
Ficou linda e comigo mexeu
Dê um beijo, me faça sonhar
Essa noite nunca vai terminar  

Eu te peguei no colo
Compus canções pra te ninar
Hoje teu amor imploro
E canto de novo pra te conquistar       

Ôôô vem fazer amor comigo
Ôôô só vou ter prazer contigo
Vem pra cá vem dançar
Quero você me deixa te amar

A dupla não saía da mídia, das revistas de celebridades. Promoções eram feitas em rádio para ir aos shows da dupla. Almoços com os rapazes eram oferecidos em prêmios dados por programas de televisão.

Mas eles estavam cansados, precisavam das tais férias de duas semanas.
Wilson prometeu dar as férias depois da gravação do DVD em São Paulo. 

Lucas tinha dúvidas de como a dupla seria recebida na capital paulista. Era a cidade que mais tinha resistência as músicas que eles cantavam e tentou que a gravação fosse no Rio, mas foi voto vencido.

Gravaram numa luxuosa casa de shows de São Paulo e para surpresa e alegria de Lucas foram muito bem recebidos pelos paulistanos que cantaram todas as músicas e dançaram ao som da dupla carioca. 

Mais um sonho se realizando, a gravação do DVD, faltava um.

No fim da gravação Wilson contou que eles teriam que adiar o começo das férias em dois dias, pois, teriam que voltar ao programa da Globo onde tudo começou. Apesar de cansados e doidos pelas férias os meninos aceitaram sem reclamar pela gratidão que tinham ao programa.

Foram, cantaram e no fim rolou uma espécie de “Esta é a sua vida”. Uma gravação com depoimentos de pessoas importantes da vida dos dois contando intimidades deles desde a infância, as dificuldades que passaram e o orgulho que sentiam.

Lucas foi as lágrimas com depoimento da mãe e Léo com o de Jussara com Léozinho no colo falando do segundo filho que estava na barriga. No fim o apresentador pediu que todas as pessoas que participaram da gravação entrassem no palco e eles entraram para emoção da dupla.
                                                                                                        
Nesse momento o apresentador anunciou que não era a única surpresa, tinha uma mais importante.

Chamou dona Jurema e dona Dalva, mãe de Léo, ao palco e as duas entraram com discos de platina nas mãos. O apresentador disse que o cd da dupla Lucas e Léo chegara ao disco de platinha e era o que mais vendia no Brasil na atualidade.

Os amigos se abraçaram chorando, era mais um sonho realizado o sonho que faltava. Eles amigos desde crianças, companheiros nas dificuldades e adversidades venceram e estavam ali naquele palco como os maiores do Brasil.

Abraçados cantaram “Garota” junto aos discos de platina, familiares, amigos e todo orgulho possível de quem lutou e venceu. 

A vida tem esses momentos que deviam se eternizar como em uma foto. 

Momentos que marcam a alma e que no instante que ocorre sabemos que é algo que nunca esqueceremos.

Momentos de felicidade plena, que por uma grande pena não duram pra sempre.

Lucas e Léo viajaram com suas esposas para o Nordeste curtir as merecidas férias. Pegaram Sol, comeram carangueijo na beira da praia, passearam de jipe por dunas, curtiram muito o melhor que a vida tinha para oferecer.

Curtiram tudo que nunca conseguiram antes.

Mas Léo não estava bem. Sentia dores nas costas e no peito há algum tempo e mesmo com amigos mandando que consultassem médico ele protelava que era nada, apenas o cansaço. Chegou a consultar um médico no Rio de Janeiro que nada detectou.

Mas quando estavam em Fortaleza as dores pioraram e Lucas aconselhou que o amigo procurasse um médico. Léo relutou um pouco, mas acabou convencido.

Em Fortaleza mesmo Léo foi submetido a uma bateria de exames com bom humor dizendo que se sentia um frango assado todo revirado e queria que acabasse logo para ele continuar curtindo as férias.

Na hora de dar o resultado o médico com jeito sério pediu que Lucas também entrasse na sala.

Os rapazes sentaram e pela primeira vez pareciam preocupados. Léo perguntou o que tinha e o médico respondeu que foi encontrado um tumor na região do tórax.

Léo ficou branco e perguntou como assim um tumor, se ele estava com câncer. 

O médico respondeu que sim e que era bom o tratamento começar logo porque já não era tão pequeno e a situação era séria.

Lucas nervoso tentava arrancar mais explicações do médico quando Léo levantou e saiu correndo.

Léo correu até a praia que tinha em frente ao hospital e Lucas conseguiu lhe alcançar na areia. Quando o amigo puxou seu braço mandando que se acalmasse Léo desesperado gritou que iria morrer. Lucas abraçou forte o amigo e respondeu que Léo não iria morrer porque ele não iria deixar.

Voltaram ao Rio de Janeiro sem falar com a imprensa que esperava a dupla no aeroporto já sabendo que Léo passara por exames no hospital do Ceará, mas sem saber o que ocorria.

No dia seguinte com apenas as pessoas mais íntimas sabendo Léo embarcou para os Estados Unidos e assim passar por bateria de exames.

No Rio de Janeiro quando perguntado pelo parceiro Lucas respondia que estava de férias na Disney e eles haviam decidido prolongar as férias por mais duas semanas.

Léo voltou com diagnóstico de câncer malígno, mas sem metástase. Teria que passar por um tratamento sério e tão cedo não poderia fazer shows.

Wilson aconselhou que a dupla realizasse uma entrevista coletiva e contasse toda a verdade em respeito ao público.

Marcaram entrevista na sede da gravadora no Rio de Janeiro e Léo muito nervoso pegou o microfone dizendo que teria algo a declarar.

O rapaz sempre foi muito tímido tanto que não abria a boca em coletivas era seu parceiro que falava sempre, mas dessa vez ele era o alvo, o motivo de interesse da imprensa.

Lucas colocou a mão em seu ombro e desejou força ao amigo. Assim de jeito tímido, muitas vezes gaguejando Léo contou toda a história. Que descobriu ter câncer malígno no tórax sem metástase e que operaria em três dias. Pediu a força e oração do povo brasileiro para sair daquela situação.

Léo se internou para a cirurgia e sentado na beira da cama horas antes da mesma Lucas brincava com o amigo dizendo que passaram por coisas piores como a fome e tiroteios na favela e não seria um câncer que lhe derrubaria. Léo sorriu e falou ao parceiro que tudo daria certo.

Léo sofreu a cirurgia e começou depois sessões de quimioterapia e radioterapia que lhe deixaram bastante debilitado e sem cabelos. Lucas em solidaridade também raspou a cabeça e posava ao lado do amigo para fotógrafos da sacada da casa de Léo fazendo o V da vitória.     

Fãs mandavam cartas para Léo, e-mails e o rapaz comovia-se com tanto carinho e apoio. Mesmo muito debilitado fez campanha pro hospital do câncer e no anúncio falava da importância da prevenção.

Mas a situação não estava boa. Léo parou outra vez na mesa de cirurgia, pois, o tumor em vez de regredir cresceu comprometendo coração e pulmões.

Léo já não andava mais, apenas em cadeira de rodas e dessa forma que recebeu o nascimento de Vitória, sua filha com Jussara.

Sendo empurrado por Lucas Léo foi levado até o vidro para ver sua filha dormindo no berçário e emocionado com lágrimas nos olhos pediu que o amigo cuidasse de sua filha. Lucas respondeu que não seria necessário, o amigo mesmo faria isso. Nesse momento a enfermeira perguntou se Léo queria pegar Vitória no colo e o rapaz respondeu que era tudo que queria na vida.

A enfermeira colocou Vitória em seu colo e Léo com o fiapo de voz que ainda tinha cantava “boi da cara preta” para a filha.

Léo voltava a quimioterapia e o show não podia parar. Wilson falava para Lucas que ele teria que cumprir agenda de shows e o rapaz respondia que não tinha como fazer shows sem o amigo.

Mas Léo foi um dos que cobrou o parceiro que ele tinha que continuar, pois, o público esperava por isso. Lucas relutava, não queria, mas Léo falou “faz isso por mim”.

E Lucas tinha que fazer. Fazer isso pelo amigo e parceiro doente, fazer pela história deles de luta. Léo gravou um depoimento pedindo pra platéia tomar conta de Lucas enquanto ele se recuperava.   

Com esse depoimento Lucas começava os shows sem o parceiro. Era estranho. Lucas se acostumara a ter Léo perto para tudo na vida desde crianças e a sensação que tinha no palco era de um imenso vazio. Olhar para o lado e não ver o amigo junto era como se estivesse abandonado.

A situação de Léo piorou de vez e ele sofreu um ataque cardíaco parando no hospital e sofrendo sua terceira cirurgia.

Lucas era valente, guerreiro e cumpria a agenda de shows com o amigo internado. Léo era valente, guerreiro e lutava pela vida.

Léo entrou em coma e os médicos tentavam de todas as formas salvá-lo. Jussara era cuidada com os dois filhos pequenos pelas famílias de Lucas e Léo. Rubens já pastor e Jéssica faziam vigílias em sua igreja no morro lotada com moradores do morro do Dendê.

Léo, o menino tímido que vendia doces e balas em ônibus para sobreviver e se tornou um dos artistas mais importantes do país não sabia que era tão amado.

Lucas subiu ao palco em um pequeno estádio no interior de São Paulo numa noite fria de sábado e subiu não muito confortável, sua vontade era estar no Rio de Janeiro.

O show começou com o depoimento de Léo e em seguida Lucas ao microfone falou com o público que a situação do amigo não era muito boa. Ele estava em coma respirando com ajuda de aparelhos e pediu que todos dessem as mãos e rezassem um “Pai Nosso” com ele.

Todos no estádio deram as mãos e rezaram com Lucas e assim ele começou o show.

No meio do show Lucas cantava quando sentiu um arrepio gelado subindo pela espinha. O rapaz colocou o microfone no pedestal e encostou a cabeça nele fechando os olhos. A banda continuava a tocar, mas ele não cantava mais, apenas uma lágrima caía de sua face.

Lucas tinha certeza. Alguma coisa lhe dizia que Léo morreu naquele instante.

A banda parou de tocar e Mayara chegou perto do marido perguntando se ele estava bem. Lucas enxugando as lágrimas na camisa disse que sim, pediu desculpas ao público e que a banda recomeçasse.

A banda voltou a tocar e naquele instante Lucas viu um passarinho voando do palco em direção ao céu. O rapaz olhou pro céu e disse baixinho “eu te amo meu amigo, vai com Deus” e voltou a cantar.

No fim do show Lucas saiu do palco e encontrou a sua equipe chorando. 

Mayara olhou para eles e gritou “Não!!” abraçando Lucas e chorando compulsivamente.

Léo realmente tinha morrido.

Lucas abraçado com sua esposa deixou as lágrimas caírem de seus olhos e olhando foto diante de um espelho dos dois felizes e sorridentes com seus discos de platina nas mãos suspirou e falou verso de uma música de Milton Nascimento.

Qualquer dia amigo eu volto a te encontrar.








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