QUINZE ANOS: CAPÍTULO XII - NOVEMBRO


Vivia uma situação surreal com Ericka. Ela casara com Anderson e eu decidi tentar esquecer minha amada focando em outras coisas. Virei farmacêutico e músico tocando trombone nas horas vagas.

Anderson se tornou um cara farrista, presepeiro, boêmio e mulherengo enquanto Ericka engolia esses dissabores virando uma grande quituteira. Dava aulas de culinária em casa e era esse dinheiro que sustentava a família.

Dinheiro que muitas vezes Anderson roubava da pobre esposa.

Até que em um dia de carnaval Anderson desfilava com um bloco na rua vestido de mulher e caiu duro. Estava morto.

Ericka desesperada saiu pela rua gritando por Anderson enquanto eu da farmácia observava tudo. A viúva, linda, vestiu preto e se enlutou por um bom tempo até que esqueci o “fora” que tomara a comecei a fazer corte a ela.

Aos poucos Ericka foi cedendo e consegui levar a mulher dos meus sonhos ao altar. Tínhamos uma boa vida calma, tranquila. Eu mantinha meu trabalho na farmácia e ela dando aulas de culinária. No fim da noite tocava um pouco de trombone para ela e íamos deitar.

Só que com o tempo comecei a notar diferenças em minha esposa. Notava nervosa, até mesmo excitada e muitas vezes falando sozinha. Como se falasse com um fantasma.

Não sei por que, mas as vezes eu tinha a impressão que dividia a cama com ela e mais um.

Até que uma vez saindo da igreja de braços dados com ela por um relance tive a impressão que o Anderson peladão também dava o braço a ela e saíamos os três assim da igreja, de braços dados.

Estranho isso..o que será, o que será..

Mas antes que eu tentasse entender uma mão tocava em meu ombro e dizia “acorda Quinzinho”..o resto vocês já sabem..

Não me acordou para ir ao colégio. Era fim de semana e Jorge Guilherme foi a nossa casa. Minha mãe ia com ele em um centro em Magé e perguntou se eu queria ir junto. Sem nada pra fazer e sem querer ficar em casa sofrendo pela Ericka eu fui.

Ela, Marco e eu fomos no carro que ela comprara com a venda do outro e o Jorge de moto. Chegamos lá e eles se consultaram. Por curiosidade acabei fazendo consulta também doido por alguma boa informação em relação a Ericka, mas não veio nenhuma.

A única coisa que me disseram é que aconteceriam mudanças em minha vida.

Depois passamos na casa da Eva. Eva era uma empregada antiga da família, antes mesmo que eu nascesse, que casou com um cara bacana chamado Antônio e construíram uma casa em Magé.

Lá morava também dona Mariquinha, mãe da Eva e os filhos. Muitos filhos entre eles o João Sergio que era o mais velho e conhecia desde que nasci e as meninas Liliane e Maria Aparecida. Teve um tempo que rolou uma paixãozinha minha pela Lilian, mas como sempre dei com os burros n água.

O macarrão que a Eva fazia era delicioso, em panela de barro e aquele cheiro de comida feita a lenha até hoje não sai de minha memória.

Passamos uma tarde gostosa lá e no fim comentei com minha mãe que no centro comentaram que eu teria mudanças na minha vida. Ela respondeu que talvez eu tivesse mesmo.

Não entendi e pedi que ela me explicasse. Minha mãe contou que uma amiga da tia Rachel chamada Sonja era juíza e faria prova para assumir uma comarca no Mato Grosso e se comprometera que caso fosse aprovada a chamaria para ser sua secretária.

Perguntei qual era o nome da cidade e minha mãe respondeu “Barra dos Bugres”. Eu sem entender ainda perguntei “O quê?” e ela me confirmou o nome da cidade que eu nunca ouvira falar.

Barra dos Bugres ficava na região médio norte do Mato Grosso e não tinha nem duzentos mil habitantes. Uma realidade completamente diferente que o carioca aqui se acostumara.

Anoiteceu e eu estava ainda um pouco zonzo com aquela informação quando o Jorge Guilherme perguntou se eu queria voltar de moto com ele. Fiquei receoso e ele mandou que eu não me preocupasse que era seguro. Olhei para minha mãe que com a cabeça permitiu.

Minha mãe como eu já dissera tinha verdadeira adoração pelo Jorge e confiava completamente nele.

Subi na garupa, botei o capacete e vim com ele de Magé até a Ilha do Governador. Uma grande sensação que eu nunca experimentara antes tomou conta de mim. Devo esse momento ao Jorge Guilherme.

A vida prosseguia no colégio com a proximidade do fim do ano e do fim das aulas. Continuava apaixonado pela Ericka mesmo com o “não” que tomara. Não adianta, coração não se desapega tão fácil assim.

Mas eu me afastara um pouco dela e consegui arrumar a desculpa ideal para não nos falarmos mais.
Uma menina comentou comigo lamentando que a Ericka não quisera ficar comigo e eu perguntei como ela sabia dessa situação. A menina respondeu que ela tinha lhe contado.

Fiquei furioso, fui até a Ericka disse que se eu quisesse que todos soubessem que ela me dera um fora teria colocado no jornal. Dei as costas e deixei a menina estática sem entender nada.

Ela ainda tentou falar comigo minutos depois, mas eu não queria papo, assim ela desistiu. Eu era muito inteligente mesmo, além de não ter o amor dela agora teria nem a amizade.

As coisas mudavam um pouco em minha casa. Marco resolveu se entender com o pai que estava arrependido e aberto a diálogos. Desejei boa sorte ao meu amigo que agradeceu a mim e minha mãe pelo carinho.

Com tantos quartos vagos na casa e as dificuldades financeiras que persistiam minha mãe teve ideia de alugar esses quartos. Avisou a Mauro e Batista e rapidamente vários fuzileiros navais
nos procuraram para alugar.

A casa ficou cheia. Cheia de vida, de alegria e a situação de dinheiro melhorou enquanto minha mãe brigava na justiça por minha posse e eu dava depoimento lá querendo ficar com ela e minha avó mandava postais do Nordeste.

Ensaiava a peça com afinco e começamos a ter ensaios no local que ela seria apresentada, no teatro Óperon. Nunca subira em um palco na vida e aquilo me fazia tremer, toda hora corria ao banheiro.
E continuava sem falar com a Ericka, mesmo doido para falar com ela.

Nessa mesma época resolvi tentar escrever outras coisas, uma peça de teatro. Peguei a máquina de escrever de minha mãe, umas folhas de papel e criei um personagem chamado “Nico Carioca”.
Lógico que me imaginei como o Nico e ele tinha um auxiliar todo atrapalhado raquítico que por ironia chamava-se “Rambo” e imaginei o George que era magrinho, raquítico, orelhudo e usava óculos.

Imaginei a peça se passando em uma festa, levemente inspirada no filme “um convidado bem trapalhão” estrelado por Peter Sellers. Fiz uma história que achei bem engraçada e apresentei a professora Suely.

Ela gostou e pela primeira vez recebi elogios de alguém por algo que escrevi que não fossem meus amigos, nem minha mãe. Aquilo me entusiasmou e acabei escrevendo várias histórias do
Nico Carioca ao longo dos anos.

As eleições presidenciais esquentavam por todo o país. As primeiras eleições democráticas, com voto direto desde 1964 e esse assunto era discutido em praticamente todas as aulas já que quase a totalidade de nossos professores eram militantes de esquerda.

E mesmo não podendo votar eu fui muito atuante nessa eleição. Usavam boton com o 13 do PT, outro com a imagem do Lula e fazia campanha dentro de minha família e com amigos maiores de dezoito anos para que votassem no candidato. Era tão fanático por política que decorei a ordem dos candidatos na cédula eleitoral.

Cédula que por ser menor de idade nem passei perto e mesmo assim era minha íntima. Devia ser o único garoto de minha idade que assistia o horário eleitoral gratuito e decorei não só o jingle de campanha do Lula quanto do Leonel Brizola.

Eu era doido mesmo. Todos os dias parava na frente da TV para ver a novela Top Model, Gabriela Duarte era minha paixão televisiva, depois via Jornal Nacional, horário eleitoral e emendava com Tieta.

No dia da eleição grudei na frente da TV e como não existia a urna eletrônica a apuração durou dias e com aquela expectativa de quem iria ao segundo turno contra o Fernando Collor de Mello, a disputa acirrada entre Lula e Brizola foi até o fim com o candidato do PT assegurando a vaga.

Em casa era difícil convencer minha mãe a votar no Lula, no primeiro turno ela votou no Collor, mas no colégio a situação foi mais fácil.

O AME resolveu aproveitar o clima eleitoral no país e decidiu botar seus alunos para votarem. Marcou uma data e colocou uma urna na secretaria. A cada hora uma turma iria votar e na cédula teria que escolher entre Collor e Lula.

Claro que eu e a Raquel, que tinha os mesmos ideais que eu, entramos de sola na campanha, mesmo sem valer nada apenas para amostragem de colégio e viramos cabos eleitorais do Lula.

Na hora de votar uma grande emoção parecendo que iria votar de verdade. Assinalei minha opção e coloquei na urna. Depois os votos foram contabilizados e pelo menos no AME o Lula venceu e com mais de 80% dos votos.

O Marco voltou a morar com o pai e tudo corria bem, mas para o quarto dele veio o Jorge Hipólito. Um daqueles primos que citei no casamento do Júnior. Ele morava com o irmão e os pais no Mato Grosso do Sul e veio fazer curso para tentar entrar na escola naval.

Ele estudou com afinco e estreitamos nossa amizade. Como o Mato Grosso dele era colado ao Mato Grosso que eu poderia acabar morando peguei umas dicas com ele de como era lá. Ele me deu uma fita com tudo que era ouvido na região.

E o AME prosseguia mostrando que era um colégio preocupado com a consciência social. Um dia chegamos em sala de aula e o professor de Moral e Cívica disse que a aula  seria de forma diferente nos levando a sala de televisão,

Sentamos e ele colocou um filme que disse ser importante e representava muito que era nosso país e a miséria dele botando “Pixote, a lei do mais fraco”.

Rodrigo gozava Luis Felipe que ficava irritado quando ele comentava que o gay do filme parecia com o Felipe e todos assistiam com bastante atenção ao filme que era muito bom quando a Ericka entrou na sala pedindo desculpas pelo atraso.

Ela andou pela sala e viu um lugar vago ao meu lado. Virou-se pra mim e perguntou se podia sentar ali. Minhas coisas estavam em cima da cadeira, olhei para ela, decidi seguir os alemães e derrubar o muro de Berlim que havia entre nós. Peguei meus cadernos e livros, dei um sorriso e respondi “claro”.

Ela sentou-se. Estava linda como sempre e pra piorar minha pobre situação abanava-se com a blusa mostrando a barriga quase na altura do sutiã reclamando do calor e eu me contorcendo para que ninguém notasse nenhuma reação diferente minha.

No fim enquanto nos levantávamos para sair da sala Ericka virou-se e pediu que eu voltasse a falar com ela que gostava de mim. Eu dei um suspiro profundo e respondi “tudo bem”. Ela passou a mão no meu rosto agradecendo e partiu deixando meu coração derretido.

Esses filmes eram comuns em sala de aula. Na semana seguinte passaram o filme “Vidas Secas”. Apesar de ser um grande filme, marca de nossa cultura para garotos de quinze anos era puxado demais assistir e eu mesmo quase cochilava quando alguém na sala gritou “mataram o Quinzinho!!”.

Abri os olhos assustado quando percebi que tinham matado o cachorro do filme e ele se chamava “baleia”.

Criaturas abomináveis..

Cochilo, dormir..o significado dessas palavras e o que me causavam mudou naquele novembro de 1989 durante um sono meu.

Eu dormia tranquilamente sem ter aqueles sonhos loucos que já citei aqui quando ouvi gritos. Eram da minha mãe e desesperado pulei da cama e saí do quarto.

Encontrei minha mãe com o telefone na mão chorando com uma dor que eu não vira antes. Assustado perguntei a ela o que acontecera e sem conseguir parar de chorar ela me respondeu.

- O Jorge Guilherme morreu.

Aquela notícia foi um baque para mim. Sentei em uma cadeira do salão e com lágrimas nos olhos tentava digerir aquela informação. Minha mãe respondeu que ele se envolvera em um acidente com a moto que até hoje não entendi direito.

Parece que a moto dele enguiçou e ele foi a um posto de gasolina pedir ajuda. Quando voltou à moto foi atropelado com moto e tudo morrendo na hora.

Novo ainda, recém formado na faculdade.

Minha mãe em desespero foi ao IML e eu não podia deixá-la ir sozinha e acompanhei. Naquela madrugada andávamos de carro pela cidade mudos, sem dizer uma palavra e com o pensamento vago, longe.

Minha mãe era apaixonada pelo Jorge, tinha como um irmão mais novo. Cuidava dele com carinho e ele dava reciprocidade a esse carinho além de me querer bem e sempre estar ao meu lado.

Coitada da minha mãe que faria aniversário poucos dias depois. Que presente amargo ganhara.

Chegamos ao IML e coube a ela outra situação amarga. Reconhecer o corpo. Enquanto ela foi eu fiquei na recepção lembrando ele e comecei a chorar. Uma atendente me ofereceu um copo de água para que me acalmasse e respirei fundo para que quando minha mãe voltasse não me visse naquele estado. Ela precisava de minha força.

Ela voltou chorando. Era realmente ele e dei um abraço forte em minha mãe, apertado mostrando que eu estava ali com ela.

Nunca tinha visto tanta gente jovem em um enterro quanto no de Jorge Guilherme. Todos os seus amigos estavam lá, entre eles aqueles que recentemente se formaram com Jorge. Também estava lá sua namorada grávida de cinco meses. Grávida de uma criança que nunca conheceria o pai.

Pai bacana que teria e tem porque ele nunca deixará de ser pai dela.

A família se reuniu também. Sem aquele clima leve e até de algumas piadas da morte de Joaquina, situação mais normal quando ocorre morte de uma pessoa idosa que viveu tudo que tinha que viver. Jorge Guilherme era um garoto e isso deixava a todos do cemitério consternados.

Meus amigos também foram. Marco Aurélio, Gustavo, George, Rodrigo e Luis Felipe.

Até minha avó compareceu depois de dois meses sumida. Cumprimentou friamente a mim e minha mãe e ficou com os outros familiares.

Enquanto o caixão descia eu amparava minha mãe que não parava de chorar e lembrava de todos os conselhos que ele me deu, todos os papos, do passeio de moto na volta de Magé.

E os amigos de faculdade puxaram a “Canção da América” de Milton Nascimento, a música de sua formatura.

Qualquer dia amigo eu volto a te encontrar..


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