AS MULHERES DE ADÃO: CAPÍTULO XXIII - YARA


Pra ser sincero senti saudades de Xênia. Por várias madrugadas fui até caixas eletrônicos com esperança de encontrá-la de novo, mas nada. Xênia era esperta e não tinha escrúpulos. Teria muito sucesso como política.

Dizem que quando morremos nós saímos do corpo e encontramos um túnel de luz brilhante, sentimos uma grande paz interior e atravessamos esse túnel. Pois é não passei por nada disso, não vi túnel, ponte, rodovia, nada. Nem parente querido me esperou do outro lado de lugar nenhum.

Bem que dona Emengarda poderia ter me esperado com alguma comida deliciosa, mas nada.
Estar morto é diferente, como posso explicar pra vocês..eu simplesmente estou..morto. É, não tem como explicar.

A vida prosseguia, dos outros a minha acabara e o interminável velório também prosseguia. Bia olhava pra mim sem que ninguém conseguisse definir o que ela sentia. Era um dos mistérios daquele velório junto com meu sorriso.

Um homem de certa idade, caminhando lentamente entrou na capela sem ser percebido. Aproximou-se do caixão fez o sinal da cruz e colocou a mão sobre os olhos. O homem ficou bastante tempo lá e assim começou a chamar atenção de minha família. Minha avó se aproximou e perguntou se ele estava bem. O homem respondeu que sim e que precisava sentar.

Ao se sentar pediu uma caneta e um papel porque eu queria falar algo. Todos se espantaram e nesse momento minha avó lhe reconheceu. Era Zé do Cipó, um famoso médium.

Zé contou que ouviu um chamado e não sabia bem de onde era. Seguiu esse chamado e parou ali na capela, se aproximou do caixão e viu que era meu e que eu precisava me despedir da minha família. Todos emocionados lhe ouviam enquanto Eva providenciava papel e caneta. Zé colocou a mão esquerda sobre os olhos e a escrever com a direita. Escrevia compulsivamente, sem parar. Pedia mais papéis e Eva correndo ia buscar.

Quarenta minutos depois Zé parou de escrever e disse que o recado estava dado entregando à minha mãe. Emocionada ela olhava o papel reconhecendo minha letra e disse que não conseguia ler então Eva pegou os papéis de suas mãos.

Eva começou a ler meu recado. Nele eu dizia estar bem, em um lugar bonito, florido, com um arco íris cercado de pessoas caridosas que me ajudavam a aceitar meu novo estágio. Minha avó limpava as lágrimas enquanto Eva continuava a falar. Contou que a minha preocupação naquele momento era apenas que todos ficassem bem e não chorassem minha partida, pois, a tristeza poderia atrapalhar a conclusão de minha missão. Que seguissem suas vidas e fossem felizes assim como fui em vida.
Todos aplaudiam emocionados, até eu quase levantei do caixão para aplaudir. No fim do recado Eva leu que eu pedia a paz mundial, a fraternidade entre os homens de boa vontade e que cuidassem com carinho de Astrogildo, meu poodle.

Tudo muito bonito, só um detalhe, eu não tinha poodle e se tivesse não chamaria de Astrogildo, chamaria de Mimoso por achar um nome mais bonito.

As pessoas também sabiam que não tinha poodle e estranharam. Nesse momento Eva leu “fiquem na paz, assinado Jeremias boca de cantor”. Nesse momento minha irmã olhou pra Zé do Cipó e disse que eu não me chamava Jeremias e sim Adão.

O homem estranhou e voltou a se aproximar de meu caixão. Ficou uns segundos parado com a mão nos olhos e voltou pegando os papéis das mão de Eva dizendo que tinham razão, eu não falava nada.
Perguntou se tinha mais algum velório por ali e tio Freitoca contou que tinha uma capela ao lado. Zé do Cipó se despediu de todos e comentou que o tal Jeremias devia ser de lá e que mesmo com todos os avanços tecnológicos ainda existiam linhas cruzadas celestiais.

E assim foi embora atrás do Jeremias boca de cantor.

Voltando a mim teve uma fase que eu não queria uma boca de cantor, mas no teatro. Entrevistei em meu programa de tv um famoso diretor de teatro experimental Cecé Basset. Cecé falava com tanto entusiasmo de seus projetos teatrais que me interessei. No fim da entrevista o diretor perguntou se eu nunca pensei em fazer teatro.

Confesso que até aquele momento não passara pela minha cabeça. Cecé disse que eu tinha jeito e carisma de um grande ator. Vaidoso como sempre fui gostei daquela história. O homem me entregou um cartão com endereço de sua companhia de teatro e me disse os dias de ensaio mandando que eu comparecesse.

Cheguei empolgado com a notícia e contei pra Joana que viraria ator. Minha filha deu um lindo sorriso banguelinha (tinha caído um de seus dentinhos) e falou que eu sempre fui um bom ator, só subiria em um palco. Agarrei minha filha dando um beijo naquela bochecha rosada enquanto ela gargalhava no momento que Bia entrou em casa com Caim.

Ela abriu a porta acompanhada do “namoradinho” e eu fechei minha cara na hora. Bia sorriu e perguntou o que ocorria. Minha filha respondeu que tinha uma novidade, eu viraria ator. Bia riu e disse a mesma coisa que Joana, que ator eu sempre fui só subiria num palco. Caim riu junto e emendou com um “é verdade” que me deixou furioso. Quem era aquele cara pra dizer que eu era ator? Nem me conhecia.

Bia contou que também tinha uma novidade. Joana curiosa perguntou qual era e minha ex abraçou Caim contando que ficariam noivos.

Espantado levantei do sofá e perguntei como ficariam noivos se mal se conheciam. Caim respondeu que pro amor não era necessário tempo, só sentir. Bia feliz com a resposta dele disse “que lindo” e lhe deu um beijo.

Sentei desolado no sofá enquanto Joana comemorava que em pouco tempo viria “um irmãozinho”.

Não podia ser..realmente senti o baque. Apesar de tantos anos separados a Bia era minha e eu dela. Meu primeiro amor, aquela que conseguiu me levar a um altar, confidente, sempre ao meu lado..
Fiquei atordoado com a notícia que perderia Bia e nesse estado fui ao ensaio. Cecé me recebeu com braços abertos e apresentou seus atores.

Cumprimentei a todos e uma atriz me chamou atenção em especial. Cabelos crespos, jeito de menininha.. chamava-se Yara.

Cecé mandava que fizéssemos exercícios estranhos. Imitássemos bichos, fingíssemos que éramos árvores. Eu não tirava os olhos de Yara e notei que ela também me olhava. Pronto, estava encantado de novo. No fim dos exercícios Cecé disse que a companhia ensaiaria uma peça que estrearia em algumas semanas e perguntou se eu queria assistir o ensaio. Respondi que sim e o diretor emendou que se eu quisesse até poderia depois entrar pra peça.

Sentei em uma cadeira pra assistir. Com as músicas percebi que se tratava da peça hippie “Hair”. Tive certeza quando todos ficaram pelados. Quando vi aqueles atores todos nus, inclusive Yara. Agradeci a Cecé e disse que ser ator não era muito a minha.

E eu sou homem de ficar pelado na frente de muita gente? Tenho princípios, só se for em uma orgia.

Peguei meu carro e fui embora. Passando pelo Flamengo vi Yara andando sozinha e buzinei, a moça acenou pra mim e emparelhei ao seu lado oferecendo carona. Yara olhou pra mim, agradeceu e recusou contando que não andava em veículos que poluíam o ambiente.

Não me fiz de rogado, desci do carro e perguntei se poderia acompanhá-la. Yara respondeu que sim e então acompanhei a moça em sua caminhada.

Conversamos bastante, soube mais de sua vida. Yara era hippie, totalmente natureba, acreditava em discos voadores, astrologia e na era de Aquarius. Contei pra ela que tinha um conhecido que me contou que teve uma namorada abduzida por Ets, mas ela não acreditou.

Pior que era verdade.

Caminhamos por um bom tempo e cansado perguntei onde ela morava. Yara respondeu no Estácio. Resumindo, longe pra cacete. Desisti de fazer companhia e perguntei se ela queria sair comigo. Yara topou e me passou seu telefone.Enquanto ela continuava sua caminhada eu pegava um táxi e voltava pra buscar meu carro.

 No dia seguinte liguei e marcamos. Peguei meu carro, fui até sua casa e lá tive que largá-lo por Yara recusar entrar nele. Fomos andando até a Lapa. Tentei entrar com ela em uma danceteria, mas Yara só queria conversar com os caras de dreads que vendiam miçangas, pulseiras, cordões e camisas com rosto de Bob Marley. Sentia-me completamente deslocado.

Enquanto mantinham um papo cabeça saí pra comprar um cachorro quente e um refrigerante. Ao voltar perguntei se queriam um pedaço ou um gole e começaram a me xingar horrorizados. Perguntei qual era o problema e responderam perguntando como eu tinha coragem de comer um ser vivo. Espantando olhei pros lados tentando descobrir onde estava o ser vivo enquanto eles apontavam pro cachorro quente.

Falei pra eles que cachorro quente era só nome, não tinha um cachorro ali de verdade, mas um barbudão gritava que a salsicha vinha de um ser vivo. Dei uma mordida contando que era gostoso e novamente ofereci à eles.

Fui expulso do local, Yara solidária foi junto.

Yara reclamava de eu comer seres vivos e perguntei o que ela comia. Yara respondeu que frutas e verduras. Perguntei se isso não era maldade com os bichinhos já que assim ela comia seu alimento e os deixava com fome quando ela apontou um grupo. O grupo estava sentado no chão com um rapaz tocando violão. Sentamos ao lado pra ouvir o repertório que incluía Janis Joplin, Bob Dylan, Led Zeppelin, Raul Seixas, Legião Urbana e Genival Lacerda.

Eram todos hippies, se vestiam como hippies, cantavam músicas hippies, falavam coisas que só hippies falavam e eu lá no meio mais perdido que cego em suruba.

Até que um deles pegou um saquinho, abriu, pegou uma seda colocando o conteúdo do saquinho dentro, apertou, acendeu e passou adiante. Não sou burro, sabia que era maconha. O baseado foi passando de mão em mão até chegar à minha. Eu agradeci, recusei e já passava adiante quando sem percebermos a polícia chegou e anunciou que estavam todos presos.

Até eu convencer os policias que capitão de fragata não era cafetão de gravata e eu não tinha nada a ver com a história já era conduzido à delegacia junto com os maconheiros.

Na cela pensava em como sempre me metia em roubadas quando reconheci uma pessoa. Era o negão que cantou Agepê pra mim no episódio com a Kate Bears.

O negão olhou pra mim e cantou “Toda minha vida, eu te procurei, quero ser feliz, com você que é tudo que eu sonhei”. Antes que ele acreditasse que era realmente o Sidney Magal e quisesse me fazer de Sandra Rosa Madalena gritei pelos guardas. Um guarda apareceu contando que minha fiança fora paga. Enquanto eu saía da cela o negão olhou pra mim, mandou um beijo e disse “você ainda vai ser meu xuxú”.

Eu héin..

Do lado de fora dei de cara com Bia e Caim. Bia com ar de reprovação falava que eu já era um homem feito, com mais de trinta anos, uma filha e não podia mais me comportar como um adolescente. Caim concordou e falou que estava na hora de eu crescer. Fiquei furioso, mas nem deu tempo de falar nada, pois, Bia mandou que eu agradecesse a Caim já que ele pagara a fiança.

Com cara de poucos amigos agradeci e vi Yara passar com um senhor muito bem vestido. Yara chegou até a mim e falou que aquele era seu pai. Reconheci o homem. Era Herculano Fontana, dono do banco Fontana uma das maiores organizações financeiras do país.  Levantei minha mão pra cumprimentá-lo e o homem deixou minha mão no vácuo.

Com jeito muito sério Herculano olhou firme nos meus olhos e mandou que eu ficasse longe de sua filha, que eu não era uma boa influência para ela por fumar maconha e falar de sexo na televisão.
Não adiantaria nada eu falar que nunca fumara maconha na vida e a filha dele que estava fumando. Era o mesmo de falar que tive um amigo cuja namorada foi abduzida por Ets, ninguém acreditaria.
Yara se revoltou e falou que o pai não mandava nela e pediu aos policiais pra ser presa de novo. Os dois saíram discutindo da delegacia e Bia comentou que eu tinha arrumado uma com personalidade forte.

Enquanto eu concordava com ela Caim colocou a mão no meu ombro e disse “Vê se cresce Adão”.
Olhei pra ele com vontade de crescer a mão na sua cara.

No dia seguinte tocaram a campainha de meu apartamento e quando fui ver era Yara pedindo desculpas pela noite anterior e convidando para um passeio de bicicletas. Topei e fui passear com ela. Um delicioso passeio que parou na praia no momento do por do Sol.

Ela junto com outros hippies aplaudiam o por do Sol enquanto eu não entendia nada já que desde que o mundo é mundo o Sol nasce e se põe. Yara virou pra mim feliz com aquele momento e me beijou.
No fim eu também aplaudia o por do Sol. De lá fomos a um motel onde transamos pela primeira vez.

Deitados na cama Yara e contou que no fim de semana seguinte iria com amigos para um sítio e perguntou se eu queria ir junto. Topei. Ela me beijou, apertou um cigarro de maconha e acendeu.
Fui pro banheiro tentar respirar um pouco.

No fim de semana fui até sua casa e de lá partiu um ônibus para o sítio. Dentro do ônibus perguntei a Yara como ela podia viajar nele se não andava em veículos poluentes. A moça respondeu que aquele veículo era especial, cósmico. Especial só se fosse pelo futum de maconha. O barbudo da Lapa me reconheceu e perguntou se ainda comia seres vivos, respondi que desde aquele dia não me alimentava mais, apenas de luz e o homem sorriu.

Chegando ao sítio todos desceram do ônibus e começaram a tirar as roupas ficando peladões inclusive Yara. Eu ainda de roupas entendia nada e Yara me contou que era um sítio naturista e pra ficar ali eu tinha que me livrar das roupas. Falei que era melhor eu ir embora quando vi o ônibus partindo. Yara contou que ele só voltaria domingo de noite para nos buscar e não tinha jeito eu teria que tirar a roupa.

Perguntei se ao menos eu poderia ficar de cueca e ela respondeu que não e irritada mandou que eu tirasse logo tudo porque estava pegando mal eu ser o único vestido.

Sem jeito tirei a roupa e fiquei peladão.

As pessoas se divertiam todas nuas como se aquilo fosse normal. Eu tentava me concentrar em um livro, mas não conseguia esquecer que estavam todos nus, pior, eu também estava. Pra deixar a situação mais dramática percebi que no meio daquelas mocréias que andavam no grupo de Yara havia mulheres lindas, de corpo escultural. Um órgão sensível do meu corpo começou a se manifestar.
Eu constrangido tentava falar com ele pedindo que se acalmasse e não me fizesse passar vergonha, mas não teve jeito a “barraca” armou de vez.

Notei que tinha um lago próximo e corri pra lá.

Toda vez que tentava sair via uma mulher bonita e voltava correndo pro lago pensando que teria que ficar nele até a hora de ir embora. Yara perguntou o que eu fazia que não saía do lago e respondi que ali estava gostoso e sempre adorei lagos. Ela estranhou e mandou que apenas tivesse cuidado com as cobras.

Nessa hora vi uma se aproximando e saí correndo até esquecendo meu tesão.

Pra dormir foi uma enorme dificuldade com mosquitos, muriçocas, grilos, bichos de todas as espécies incomodando. De manhã bem cedo Yara me acordou que o café estava na mesa. O café na verdade era um chá muito estranho que deixava as pessoas com riso frouxo e falando enrolado e pão integral.
Um homem se aproximou chamando pra jogar bola e topei, era uma forma de esquecer as mulheres.
O problema foi quando fiz um gol e todos vieram correndo em minha direção pra me abraçar.

Quando vi aquele monte de homens com aqueles “troços” balançando querendo me agarrar saí correndo gritando que eles não precisavam agradecer porque eu sabia que estavam felizes com o gol.
Logo depois recebi uma bola sem goleiro, era só tocar pro gol, mas lembrei que tentariam me abraçar e chutei pra fora. Virei pra eles e falei que não me abraçassem porque eu tinha perdido o gol.
Quando já me acostumava em ficar peladão foi a hora de ir embora, até fiquei triste.

Só não me acostumava com aquele cheiro de maconha.

Três dias depois fui até a casa de Yara pensando lhe pedir em namoro, estava gostando de verdade dela. Toquei a campainha e quem abriu a porta foi o barbudão que me mandou entrar que já estava de saída. Ele saiu e Yara apareceu toda sorridente, perguntei o que ele fora fazer lá e ela respondeu “nada demais, apenas transamos”.

Perguntei “como assim transaram” e Yara mandou que eu parasse de caretice porque o sexo era algo mágico, cósmico e ela só conseguia pensar em sexo como algo libertário. Sentou no sofá e começou a me beijar. Eu ainda tentando me recuperar da notícia comecei a sentir um cheiro ruim e comentei com ela se sentia.

Yara respondeu que não e eu falei que era um cheiro muito forte, insuportável, a moça respondeu que devia ser impressão minha. Contei que tinha uma novidade, queria fazer um pedido a ela e ela respondeu que também tinha uma novidade. Antes que eu a pedisse em namoro pedi que Yara falasse primeiro sua novidade. Ela contou então que decidira não tomar mais banho e deixar crescer todos os pelos de seu corpo.

Sob meu olhar espantado ela continuou e disse que banho e corte de pelos eram coisas impostas pela sociedade careta e retrógrada e essa seria uma forma de não se submeter ao sistema.

Nesse momento percebi que o cheiro vinha dela e de sua falta de banho.

Yara perguntou então qual era minha novidade. Respondi que já contava, antes iria comprar cigarros.
No momento que eu fechava a porta e saía consegui ouvir Yara falar de dentro da casa “Ué, você não fuma!!”.

Nunca mais voltei.

Maconha, ficar pelado da frente dos outros, amor livre ainda vão, mas falta de banho era demais pra mim.

Paz, amor e um sabonete por favor


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XÊNIA 

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