AMAR DE NOVO: CAPÍTULO II - REINÍCIO


Trrriiiimmm.. trrriiiiiiimmmm

Toca alto. Como toca alto esse relógio que me tira de mais um dos sonhos lindos que não gostaria de acordar. Camila. Evidente que sonhava com Camila como sonho todas as noites desde que faleceu. Lentamente abri os olhos e confirmei. Seis da manhã, hora de despertar. Lentamente olhei para o lado e a enorme cama estava vazia. Realmente Camila não estava lá.

Levantei e fui até a sacada do apartamento. De lá vi as ondas no mar. Maré cheia fazia as ondas baterem violentamente nas pedras. Algumas pessoas se aventuravam e corriam na praia logo naquela hora e mesmo com uma fina garoa que marcava o mês de junho. Ta friozinho, pra carioca está e mesmo acima dos vinte graus as pessoas correm de blusa.

Olhei o relógio no pulso e vi que não tinha muito tempo a perder. Saí da sacada no momento que percebi mexerem na fechadura da sala. A porta se abriu e era Guga carregando sacolas e me dando bom dia. Perguntei o motivo de meu amigo ter acordado tão cedo e ele sorrindo respondeu perguntando "Quem disse que acordei?".

Ah. Um detalhe que não contei a vocês. Aquele apartamento era muito grande. Guga estava com problemas em seu prédio e acabou que ele foi morar comigo e Gabriel. Tinha quarto sobrando, ele dividia as despesas e seria bom que eu tivesse uma companhia.

Aquele apartamento ficava muito grande sem Camila.

A vida ficava enorme sem ela.

Guga sorrindo falava de mais uma de suas conquistas amorosas "Velho, você tinha que ver a loira que peguei, que espetáculo!!". Respondi que adoraria ouvir, mas já estava atrasado para o trabalho. Tinha que acordar Gabriel e tomar banho. Meu amigo mandou que eu fizesse tudo isso enquanto ele preparava o café.

Fui até o quarto de meu filho. Brinquedos espalhados pelo ambiente e recolhi um a um colocando em um canto. Sentei ao seu lado na cama e dei um beijo em sua cabeça dizendo "Molecão, ta na hora". Biel pediu para dormir mais um pouco e respondi que não dava. Era hora da escola.

Biel levantou dizendo que sonhara com a mamãe. Ele nunca comentara antes sonho com ela e intrigado perguntei o que exatamente já que não convivera tanto assim com ela. Gabriel respondeu 'Não sei, só sei que ela tinha asas".

Fui para o banho pensando naquele sonho. Seria Camila um anjo para nos proteger? Precisávamos mesmo.

Saí do banho e Gabriel já estava sentado a mesa com Guga terminando de botar a mesma. Perguntei se meu amigo tinha dormido e ele respondeu "Pra quê dormir se tem uma vida lá fora?". Guga era um advogado bem sucedido, tinha grana de nascença então só "ia na boa", só pegava causas importantes. De resto era um "bom vivant". Queria curtir a vida, ter várias mulheres e não se apegar. Guga era o oposto de mim que vivia pro trabalho e pra família. Eu falava que meu amigo devia arrumar uma mulher e se casar. Ele respondia que eu devia me divertir mais, pois iria ter  um  ataque cardíaco antes dos 40 anos.

Tomava café às pressas e falando ao celular que não parava de tocar. Toda manhã era assim. Apressava Gabriel dizendo que estávamos atrasados enquanto Guga repetia "Calma Toninho. Pra quê pressa se a vida tem que ser apreciada?". Respondi que adorava apreciar a vida, mas só tinha cinco minutos por dia para isso quando meu filho disse "papai, cocô".

Perguntei se estava com muita vontade, não podia fazer no colégio e Biel acenou a cabeça negativamente. Respirei fundo e respondi "vamos lá" levando meu filho ao banheiro. Fiquei do lado de fora olhando o relógio quando meu filho gritou "acabei" e entrei no banheiro.

Enquanto limpava Gabriel ele me perguntou "Papai, por quê você é tão apressado?". Respondi que era um homem ocupado e ele continuou "Vovó diz que é porque você tem medo". Não entendi e perguntei do que eu teria medo e ele completou "de pensar". Respirei fundo, respondi que sua avó estava esclerosada e que nos apressássemos.

Quando abríamos a porta para sair Biel lembrou que não fizera o dever de casa. Respondi para ele dizer a tia que tinha ficado doente e tirando a mesa Guga retrucou "Que vergonha, ensinando o menino a mentir". Respondi no ato "Você diz que aquelas mulheres que você traz pra cá são suas primas". Gabriel olhou para Guga que tratou de dizer "São primas sim Bielzinho, primas distantes".

Saímos enquanto Guga ia dormir. No carro coloquei o cinto em Gabriel no banco de trás e sentei para ligar o veículo quando o telefone tocou. Era Amanda. Minha namorada perguntou o que ocorrera que não apareci em sua casa na noite anterior. Afastei o  telefone e soltei um "puta que pariu". Assustado meu filho disse "Papai, você falou palavrão". Olhei para ele e falei "Adulto pode. Se você repetir entra no cacete".

Pedi desculpas a Amanda e disse que ficara enrolado em uma reunião até tarde. Ela reclamou que era nosso aniversário de um ano de namoro e tinha me esperado com um jantarzinho especial. Prometi compensar naquela noite quando ela me lembrou "Essa noite é o lançamento de seu livro, não pode”.
Tinha esquecido. O livro que escrevi sobre minha história com Camila.

Perguntei se ela iria e minha namorada respondeu que sim, sabia o quanto era importante para mim. Agradeci, mais uma vez pedi desculpas e desliguei. Liguei o carro e novamente Gabriel disse "cocô". Retruquei "Cacete moleque!! Que caganeira é essa? Agora você vai fazer no colégio".

Desci do carro ao chegar no colégio, desci meu filho, dei um beijo em sua testa e perguntei "Me ama?". Ele sorriu, respondeu "pra sempre" e entrou. Gritei ao inspetor que o levasse correndo para o banheiro. Ao voltar ao carro apertei um spray para purificar o ambiente e corri pra gravadora.

Cheguei lá e Nando, marido de Bia, me esperava dizendo que já estava com o empresário do "Só pagode”. O "Só pagode" era o grupo de pagode do momento e estávamos para fechar contrato com ele.
Nando era meu braço direito na gravadora e comentou que já estava nervoso com minha demora e ligara para o celular. Respondi que estava atendendo Amanda e ele perguntou "Esqueceu do  aniversário de um ano né?". Perguntei "Até você sabia?”e ele retrucou “Todo mundo sabia".

Perguntei a Nando como estava o humor do pagodeiro e ele respondeu "Péssimo devido a seu atraso". Respondi “deixa comigo", armei o sorriso e entrei na sala.

O homem com um terno rosa, gravata vermelha e óculo escuros reclamou de minha demora e que já quase fechava com outra gravadora quando respondi "Sabe por quê demorei? Por quê ouvia os cds antigos de vocês e viajava".

O homem perguntou para onde eu viajava justo na hora da reunião e continuei "Viajava no tempo porque foi graças a banda que comecei a namorar com minha namorada. A banda embalou os melhores momentos de nosso namoro, as minhas mais doces lembranças e eu ouvia emocionado pensando como a vida pode ser extraordinária. Os caras que fizeram nosso namoro acontecer fechando com a gravadora que eu trabalhava".

O empresário se emocionou. Tirou um lenço do paletó e limpou lágrimas com minha cascata. Sim cascata. Eu não curtia o grupo, nunca ouvi uma música deles com Amanda e só falei aquilo para conseguir o contrato.

E consegui.

Celebramos com champanhe, "Só pagode" tocado, o presidente da gravadora ligando para dar os parabéns e Nando me dando um abraço e comentando "Incrível como tudo da certo na sua vida". Respirei fundo, concordei e sem que ninguém visse fui para minha sala.

No silêncio do local me sentei e olhei foto da Camila. Estávamos juntos no Arpoador, local que tanto amávamos, e felizes. Olhava a foto e pensava que parecia tão distante e tão próximo aquele momento. Parecia que era outra vida como parecia real. Acariciei seu rosto na foto e comentei "Tudo da certo na minha vida porque minha vida é você". Peguei a foto, dei um beijo e completei dizendo "obrigado".
No fim da tarde Gabriel saía com a mochila nas costas, lancheirinha e ao me ver encostado no carro veio correndo em minha direção. Dei um abraço gostoso em meu filho perguntado como fora no colégio. Ele me contou e voltamos ao apartamento.

No local dei jantar a ele. Fizemos juntos o dever de casa e levei meu filho para cama. Sentei na beira da mesma e contei historias até que dormisse. Quando adormeceu tomei um banho e a babá chegou.
A babá ficou tomando conta de Biel enquanto fui ao lançamento de meu livro.

Pois é. Acabou que escrevi o livro sobre nossa história. Ela era muito bonita para ficar restrita a nós dois. Fiz uma pequena biografia. Contei minha história desde a infância, sobre Jéssica, Pinheiro e o amor com minha mãe, Jessé e meu amor com Camila. Desde o primeiro atropelamento até sua morte. Dei o nome ao livro de "Amor".

Bem simples. Bem sucinto e que resumia toda nossa história.

Muitos amigos foram e gente do meio artístico já que eu era um importante diretor do meio. Eu nem tinha trinta anos ainda e poderia dizer que vencia na vida. Tinha um apartamento bacana, um excelente emprego, ganhava bem, um filho lindo e com  saúde, uma namorada bonita e lançava meu primeiro livro com fila enorme para pedir autógrafos e dar parabéns.

Devia ser feliz. Impressionante como um detalhe às vezes pode fazer toda diferença.

Todas as pessoas amadas por mim estavam lá, exceção de Gabriel que dormia. Minha mãe chegou de viagem com Osmar, mais uma viagem das inúmeras que faziam para aproveitar a vida, chegaram com a pequena Ericka. Nando, meu diretor, chegou com Bia presidente da ONG Camila Pires, toda a renda do livro seria revertida a ONG. Anderson e Samuel que se transformara num militante gay. Guga e uma mulher que eu nunca tinha visto e provavelmente ele também não.

Noite feliz em que relembrava e brindava ao amor. Lembrávamos histórias de Camila, relembrávamos nossa juventude. Bia lembrou a viagem a Saquarema e Guga quando brigamos na faculdade. Tempo que não ria tanto. Só faltava ela lá.

Será?

Determinado momento da noite, quando dava uma entrevista vi uma pessoa passar no fundo da recepção. Não podia ser possível!! Era ela!! Era Camila!!

Olhei bem e era Camila como a conheci. A beleza e ternura que conheci. Ela olhou para mim, deu um sorriso e se afastou. Eu não podia deixar que ela fosse embora e saí correndo atrás. Ela se aproximava do carro quando saí da recepção gritando "Camila". atravessei a rua no meio dos carros e peguei seu braço.
Não era ela. apenas uma mulher parecida que se assustou enquanto eu pedia desculpas.

Voltei desolado para a recepção enquanto Amanda me esperava na frente perguntando se algo ocorrera. Respondi que não e ela apenas disse "Vem, vamos entrar, é a sua noite". Peguei sua mão e entrei.
Mas não. Não era minha noite.

Sem Camila não poderia ser.

Do lado de dentro todos brindavam, comemoravam ao meu sucesso , menos eu que bebericava uma bebida que nem ao certo sabia o que era e me sentia longe dali. Lembrava de um tempo em que eu era feliz. Sorri ao lembrar correndo na praia com Camila vestida de noiva e um jogando água no outro. Depois de um tempo Amanda percebeu e se aproximou perguntando “Você não está aqui né?”.

Apenas abaixei a cabeça e ela continuou “Me leva para onde você está”. Respondi que adoraria estar lá também e ela completou “Então vamos fugir”.

Fugimos. Alugamos um barco na enseada e saímos pela baía de Guanabara. A vista era linda com a Lua refletindo na água e eu olhava aquele visual. Amanda, esplendorosa em um vestido branco, se aproximou por trás e me deu uma taça de champanhe.

Propôs um brinde, eu perguntei a o quê e ela respondeu “Essa Lua linda que nos abençoa”. Brindamos e sentamos em silêncio para olhar a baía.

Ficamos um tempo naquele silêncio até que ela disse “estou indo embora”. Estranhei e perguntei para onde já que tínhamos acabado de chegar e ela completou “Vou morar em Barcelona”.Parecia que eu nem tinha ouvido. Continuei com a mesma postura e ela repetiu “Ouviu o que eu falei? To indo embora para Barcelona”. Finalmente despertei e perguntei que história era aquela.

Minha namorada pôs a cabeça em meu ombro e disse que tinha pensado muito, refletido e iria estudar na Catalunha. Tinha parente por lá e iria fazer cursos por pelo menos dois anos. Ouvi e apenas falei “Dois anos é muito tempo”. Amanda completou “Vem comigo”.
 
Sorri e respondi que não dava, minha vida estava toda aqui. Amanda levantou, olhou a baía e se virou falando “Você não tira férias faz tempo. Tira umas férias e vai comigo. Precisa se divertir. Deixa Gabriel com sua mãe e vai. Aí decide o que fazer”.

Foi minha vez de levantar. Olhei a vista e fiquei em silêncio. Amanda se revoltou “Sempre me falaram que você era de arroubos. Por amor via um precipício e se jogava. Era capaz de tudo pelo coração e não estou pedindo nada demais. Apenas que tire umas férias e nelas avalie a ideia de ficar comigo em Barcelona”.
Apenas olhei para ela que triste continuou “Fazia por amor né? Mas você não me ama”. Respirei fundo, abracei e respondi “To precisando de umas férias mesmo, eu vou”. Amanda sorriu, me abraçou e deu um beijo.

Fizemos amor e deitamos naquele barco olhando o céu. Ela dormiu sorrindo com a cabeça sobre meu peito e eu não preguei o olho olhando para a Lua.

No dia seguinte trabalhava na organização de um reality show que escolheria novos talentos para a gravadora. Na verdade nem prestava atenção. Olhava aqueles cantores, um pior que o outro, mas na verdade estava no mundo na Lua. Aquela Lua da noite anterior.

O celular tocou e nem ouvi, quem me alertou foi Nando. Atendi ao telefone e era dona Hellen, muito irritada, do outro lado da linha. Perguntei qual era o problema e ela me perguntou onde eu estava.  Respondi "trabalhando" e ela reclamou "Esqueceu do seu filho??".

Sim. Eu tinha esquecido de sua apresentação no teatro do colégio.

Deixei tudo nas mãos de Nando e saí correndo. Cheguei ao teatro a tempo de ver Gabriel, triste, vestido de árvore enquanto a última cena rolava. Só deu tempo de sentar e levantar para aplaudir o fim do espetáculo.
Fui dar um abraço em meu filho que me ignorou. Bia pegou o menino pelo braço, me disse "lamentável" e prometeu um sorvete a Gabriel saindo com ele.  Minha mãe apenas me olhou, fuzilando com os olhos, e falei "Desculpe mãe, estava trabalhando". Ela respondeu "Não adianta pedir desculpas pra mim. Tem que pedir a ele e não adianta se afundar no trabalho se a Camila está dentro de você".

Fui até a sorveteria encontrar Bia e Gabriel. Bia se afastou e sentei ao lado de meu filho pedindo um pouco de sorvete. Ele se recusou a dar e fiquei com "cara de bunda". Constrangido falei "Comigo foi pior, fiz papel de galinha. Árvore é mais legal que galinha".

Gabriel ficou um tempo em silêncio e perguntou "Você teve que cacarejar?". Respondi que sim e ele me perguntou como era. Olhei para os lados e acabei fazendo. Cacarejei. Gabriel riu e vendo que quebrava a resistência do menino aumentei o cacarejo. Ele gargalhava, começou a cacarejar também e ficamos os dois imitando galinha em voz alta na sorveteria.

Os dias passavam e em vez de me preparar para a viagem trabalhava ainda mais. Acabou que deixei tudo para cima de Amanda. No dia da viagem Amanda passou no apartamento, me deu um beijo e, brincando,  pediu que eu não esquecesse de ir ao aeroporto.

Ela saiu, esperei que fosse embora e gritei "Puta que pariu! Esqueci da viagem!". Quando corri para o quarto Guga saiu com minha mala pronta, entregou em minha mão e disse "Você devia me pagar para ser sua empregada".

Peguei o táxi e fui para o aeroporto. No trajeto pensei na minha vida, em tudo que passava e na viagem. Pensei em Camila, pensei em Amanda, pensei em mim.

Cheguei no saguão e minha namorada já me esperava. Sorriu, me abraçou e me deu um beijo. Um beijo de amor não correspondido. Amanda me olhou, passou a mão em meu rosto e eu, com os olhos marejados, balbuciei "desculpa".

Amanda perguntou "Você não vai né?". Apenas abaixei a cabeça e ela comentou "Que pena". Olhamos para o chão por um tempo, sem ter o que falar. Ela olhou o relógio, comentou que estava em sua hora e passando a mão em meu rosto  disse "To indo meu poeta".

Mais uma vez pedi desculpas e ela falou que não era pra ela que devia desculpas e sim a mim mesmo. Finalizou "Eu poderia te fazer feliz, mas você ainda não percebeu que quem morreu foi Camila. Você está vivo".

Meu deu um beijinho na boca e foi embora.

Saí de lá e fui direto ao único lugar que poderia ir. Fui direto ao Arpoador. Sentei nas pedras olhando o céu sem pensar, nem dizer nada. apenas queria estar no meu refúgio. Ficar sozinho.

Às vezes queria ficar longe até de mim.


CAPÍTULO ANTERIOR:

A PRAIA

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