Capítulo V - Pardal


Nicácio Ferreira Junior, esse é o nome de Pardal. Mais ou menos minha idade. Como falei chegamos a soltar pipa juntos. Pardal era o 2° de quatro irmãos, três meninos e uma menina, filho de Mestre Nicácio mestre de bateria da tradicionalíssima Soberana de Bangu. Uma das maiores vencedoras do carnaval carioca.   
A mãe de Pardal dona Adelaide era baiana da agremiação e uma cozinheira de mão cheia. Ela que preparava as feijoadas da escola. A mais tradicional da cidade. Do Trololó pra Bangu era chão amigo..mas os dois iam com muito prazer e eram muito respeitados na agremiação. Mestre Nicácio recordista de notas 10 e prêmios Estandarte de Ouro, prêmio máximo do carnaval.
O Trololó era muito diferente nessa época. Evidente que já existia a criminalidade, mas a situação não era como hoje. Quem mandava no morro eram os malandros com canivetes na mão e no máximo um trinta e oito.
Um deles era o Neco considerado o bam bam bam da área. Praticava uns assaltos na região e se escondia no morro. Não foram poucas as vezes que ele e seu grupo roubavam caminhões com comidas e levava pro povo do Trololó, na época do natal assaltava caminhões de brinquedos e levava pra criançada. Era o Papai Noel ladrão, um bandido do bem se é que isso existe.   
E Pardal cresceu nesse meio entre as rodas de samba, pipas, bolinhas de gude e futebol. Uma infância de um garoto pobre, mas aparentemente feliz sua preocupação era só os estudos, estudava em um colégio público perto do morro.
Sonhava em ser jogador de futebol dizia que um dia jogaria no Flamengo, chegaria à seleção brasileira e depois iria pra Europa tiraria sua família da pobreza e ajudaria as pessoas da favela.
Era bom de bola e conseguiu um teste pra entrar no mirim do Flamengo. Passou no teste, mas não conseguiu freqüentar o clube por não ter dinheiro da passagem para ir treinar todos os dias. Acabou fazendo teste pro América que era perto de sua casa e passou.
E assim chegou ao mirim do clube e ao infantil. Com quinze anos chegou ao juvenil e outros clubes já estavam de olho. Em um grande jogo que fez emissários do Barcelona da Espanha foram conversar com ele e perguntaram se ele tinha vontade de morar na Europa.
Pardal comunicou aos pais e acompanhado deles fez uma reunião em um restaurante perto do clube. Os emissários pareciam entusiasmados com o futebol de Pardal e fizeram uma proposta para levar a família pra Espanha e que Pardal jogasse na divisão de base do clube.
Nicácio fez uma grande festa no morro pra comemorar que seu filho iria pra Espanha. Ele e Neco prepararam um churrasco pra toda comunidade, bancado pelo Neco por meios ilícitos claro. Foi combinado que ele iria com a mãe primeiro e depois de estabelecidos o resto da família iria. Até o pai que largaria o samba.
Pardal ainda tinha jogos pra fazer pelo América no campeonato carioca juvenil antes de se mudar e foi em um desses jogos que sua vida mudou.
Pardal rápido, habilidoso, corria pelo lado direito do campo e se preparava para cruzar quando um zagueiro lhe deu um carrinho muito violento.
Pardal ouviu um clique e caiu no chão desesperado se contorcendo de dor. A dor era uma mistura de dor física com dor emocional só conseguia pensar no Barcelona e na possibilidade de mudar de vida.
Os pais dele entraram desesperados no campo e rapidamente ele foi conduzido para um hospital. Lá o diagnóstico de ruptura total dos ligamentos. Acabava o sonho de Barcelona, acabava o sonho do Pardal.     
E com a situação apertada em casa foi trabalhar. Virou engraxate, depois camelô até virar pedreiro. Nesse tempo conheceu Rosa que veio se tornar o grande amor de sua vida.
Começaram a namorar quando a família passava por um drama. A única menina da família a caçula da casa Jennifer ficou doente. Nicácio e Adelaide levaram em um posto de saúde próximo e depois de horas e horas esperando atendimento disseram que era apenas uma gripe e que logo ficaria boa.
Foi levada de volta pra casa, mas a gripe não passava. A febre da menina aumentou, dores fortes de cabeça e no corpo e de madrugada Nicácio e Adelaide foram a um hospital.
Mais uma vez um péssimo atendimento. Jeniffer desmaiou esperando pra ser atendida e só assim a levaram pra emergência. Foi diagnosticada com dengue hemorrágica, mas um pouco tarde porque a menina já entrara em coma.
Jennifer morreu de manhã.
O povo do Trololó se revoltou com a morte de Jennifer e fez protesto nas ruas com a manifestação sendo fortemente combatida pela polícia. Até a imprensa apareceu no enterro e alguns políticos para tentar ganhar em cima eleitoralmente. Lembro que o Getulio Peçanha foi um dos que compareceu.
Aquilo abalou fortemente a família. Nicácio largou o samba e tornou-se evangélico fervoroso o que levou conflito para a casa já que Adelaide era mãe de Santo. Rapidamente Nicácio se tornou pastor da igreja da favela e os embates religiosos na casa eram freqüentes.
O filho mais velho Nestor queria nada com coisa nenhuma só queria saber de vagabundagem e fazer pequenos assaltos no asfalto e Marcos Paulo, o Curió, largou os estudos pra vender chicletes em ônibus. A situação na casa não era fácil e não foram poucas as vezes que dormiam com fome.  
Pardal engatava um namoro sério com Rosa e antes dos dezessete anos já estava casado. Juntaram os trapinhos e foram morar com os pais de Pardal.
Não casaram na igreja, não fizeram festa apenas se juntaram o que deixou o pai enfurecido. Os problemas aumentavam cada vez mais, Nestor quase não aparecia s em casa e as informações que chegavam à família era que ele tinha decidido virar bandido mesmo. Quando ele ia até a casa brigas terríveis ocorriam.
Em uma dessas Nestor chegou a casa com dinheiro e entrou pra mãe. Nicácio perguntou onde ele tinha arrumado aquele dinheiro já que não trabalhava. Nestor respondeu que fazendo uns “bicos” e Nicácio não acreditou e mandou que Adelaide devolvesse o dinheiro.
Adelaide se recusou a devolver falando que eles estavam quase passando fome e uma forte discussão começou. Nestor se meteu e a discussão virou troca de ofensas. Nicácio chamou o filho de bandido e Nestor respondeu que era bandido, mas botava dinheiro em casa coisa que o pai não tinha capacidade de fazer. Nicácio deu um tapa na cara do filho que devolveu com um soco.
Nicácio caiu no chão com Adelaide se agachando e se metendo na frente de Nicácio mandando que o filho parasse. Nesse momento Pardal que acabara de entrar em casa e viu a agressão pula em cima do irmão e eles começam a brigar. Adelaide chorando implora para que parem e Pardal expulsa Nestor de casa mandando que ele não voltasse mais.
Nicácio levantou e Pardal perguntou se o pai estava bem. Nicácio se limpou, respondeu que sim e disse que tinha que sair porque estava na hora do culto. Adelaide pediu para ele não ir em vão.
No meio da pregação Nicácio tem um enfarte fulminante e cai morto.
Eram muitas desgraças juntas. De uma hora pra outra Pardal que estava com um pé no Barcelona virou o homem da casa. Tem que cuidar não só de sua mãe e seu irmão mais novo como de Rosa que está grávida. Pardal trabalha como louco, de dia como pedreiro debaixo de Sol escaldante e de noite como vigia em um supermercado. O que recebe juntando com o que Curió ganhava com chicletes mal dava pra sustentar a todos.
Mas apesar daquelas dificuldades todas Pardal conseguia se virar e estava feliz porque seu filho estava por vir. Já sabia que era um menino e se chamaria Nicácio Neto em homenagem ao pai. Amava Rosa também e era romântico, quando dava juntava um dinheiro e levava rosas pra ela. Como seu nome.
Chegou a hora do parto e Pardal pediu ajuda de Neco para levar Rosa até a maternidade. Neco arrumou um carro e ele levou. Pardal estava feliz como nunca mesmo quando pensou que brilharia na seleção e na Europa não se sentia tão feliz tinha amor e um filho chegando. Pardal achava que pra um homem ser feliz bastava ter uma família.
Chegaram ao primeiro hospital e não tinha obstetra, o segundo também não. Pardal rodava toda a cidade e não encontrava um hospital que tivesse. Rosa reclamava de dores e a felicidade começava a virar preocupação, Pardal nervoso rodava os hospitais um a um e nada.
Até que conseguiu um. Rosa não agüentava mais de dor e Pardal entrou correndo com ela no colo. Colocaram Rosa numa maca e levaram para dentro do centro cirúrgico. Pardal que tinha muito medo de sangue preferiu não entrar e ficar na recepção esperando.  
Pardal sentou na recepção feliz com uma roupinha azul de bebê que comprou com muito custo e espetava ansioso pela notícia do nascimento de seu primogênito. As horas passavam e a ansiedade aumentava e as horas passaram mais ainda e ansiedade virou nervosismo, tensão. Ele não entendia porque demorava tanto e começou a achar que algo de ruim poderia estar ocorrendo.
E ele estava certo..
Depois de muito esperar o obstetra chegou à recepção e Pardal muito nervoso correu atrás dele perguntando pela esposa e pelo filho.
O médico respondeu que não tinha boas notícias e que sentia muito. Pardal tremendo perguntou como assim, com qual dos dois teria dado problema e o médico respondeu com os dois. Estavam mortos.
Pardal por alguns segundos ficou quieto e depois deu um soco no médico e começou a quebrar todo o hospital. Uma grande confusão começou no local e nem os seguranças conseguiram segurá-lo. A polícia chegou algemou Pardal e o levou, mesmo sendo menor de idade passou a noite na delegacia. Sua primeira prisão.     
Não dá pra dizer a vocês se foi a morte de Rosa e do filho que mudou a vida de Pardal ou se essas mortes foram a gota que faltava pra transbordar o balde. Pardal até aquele momento era um rapaz tranqüilo cheio de sonhos, batalhador e não tinha nenhum flerte com a criminalidade.
Mas muitas coisas ocorreram. O fim de seu sonho de jogar futebol, a morte da irmã, do pai e agora da esposa e do filho. Essas situações anteriores podem ter afetado Pardal, mas ele ainda conseguia manter o controle até chegar a essa situação.
Não sou psiquiatra tudo é só um palpite. Como também acho que não justifica o que ele virou depois. Muitas pessoas sofreram na vida e não viraram bandidas. Acho que o gene da criminalidade já estava com ele.    
Pardal se tornou uma pessoa fechada, sombria. Aproximou-se mais do irmão Nestor e junto com ele a praticar roubos. Roubavam carros, assaltavam mulheres roubando suas bolsas, fazia saidinha de banco levando o dinheiro de velhos que retiravam suas aposentadorias e assim finalmente começou a ganhar dinheiro.     
Os dois começaram a sustentar a casa dessa forma. Curió ainda não entrara pra essa vida. Adelaide sabia como os filhos colocavam dinheiro em casa, mas não reclamava. Era o meio de sobreviverem.
Uma noite Nestor e Pardal estavam dentro de um carro tentando fazer ligação direta para assaltar quando foram surpreendidos pela polícia que colocou armas na janela mandando os dois saírem. Nestor ainda tentou argumentar que o carro era deles..deve ter tentado de sacanagem né? Dois crioulos dentro de um carro importado se um não é o Pelé nenhum policial iria acreditar que era deles.
Os irmãos saíram do carro e foram encostados no mesmo pelos dois policiais. Perguntaram pra Nestor e Pardal quanto eles tinham “pra perder”. Eles queriam dizer quanto os dois tinham de dinheiro pra dar e resolver aquela situação ali mesmo.  Nestor respondeu que eles não tinham nada e tomou um tapa na cara.
Tomaram foi muita porrada naquele dia. Tapas, socos, chutes. Pardal apanhava calado enquanto Nestor marrento como só ele mandava bater mais porque não estava doendo, isso enfurecia mais ainda os policias que aumentavam as porradas. 
Uma hora Nestor deu uma cusparada na cara de um deles e disse que eles eram tão bandidos quanto os dois. Na boa..pior que ser bandido é ser bandido burro, aquilo assinou sua sentença.
Os policiais mandaram que os dois se ajoelhassem e um deles apontou uma arma pra cabeça de Nestor. O irmão de Pardal com a arma encostada a seu crânio disse “filho da puta tão bandido quanto a gente”. Foi a última vez que falou alguma coisa, tomou uma balaça na cabeça e caiu morto.
Pardal ao ver o que ocorreu gritou “puta que pariu !! Nestor!!”, primeira coisa que ele falou desde que começou aquela situação. O policial apontou a arma pra sua cabeça e disse que ele era o próximo. Pardal fechou os olhos pensou em Rosa e no filho e o outro policial falou pro parceiro não fazer aquilo que o “neguinho” havia se comportado e havia aprendido a lição.
O policial com a arma concordou e mandou que Pardal pegasse o corpo do irmão no colo. Pardal pegou e então mandou que colocasse em uma lata de lixos que tinha ali próximo. Ele chorando levou o corpo do irmão e jogou no latão como se fosse lixo.
Depois disso os policiais algemaram Pardal e o levaram pro Instituto Padre Severino um local que abriga jovens infratores na Ilha do Governador. 
Pardal não tinha dezoito anos ainda, faltavam meses pra completar e lá conheceu o inferno. Todos os tipos de garotos problemáticos e violentos estavam naquele abrigo e Pardal teve que aprender a dormir com um dos olhos abertos para não ser estuprado ou assassinado.
Lá ele conheceu Lucinho, três anos mais novos e ficaram amigos. Um protegia o outro e com o tempo fizeram amizades com outros menores infratores.
Um bando foi formado. Um bando de menores violentos que ali naquela faculdade do crime aprendiam a ser ainda piores. Pardal mesmo com tão pouca idade muito já tinha vivido e não era nem mais sombra do menino que queria jogar futebol ou ser um pai de família. O ódio tomava conta dele e ele jurou que quando saísse dali barbarizaria aquela cidade maldita que lhe virou as costas todas as vezes que ele e seus familiares precisaram. Não passaria mais fome nem seria mais pobre.
Os moleques conseguiram fugir do abrigo e tocaram o terror pela cidade. Assaltavam, estupravam, matavam com sorriso na cara. Pardal e mais alguns partiram pro tráfico de drogas enquanto Lucinho continuava nos roubos. Rapidamente o asfalto ficou perigoso pra ele e Pardal decidiu que tinha que ir pra favela. Voltar pro Trololó.
Trololó ainda era comandado por Neco. Nessa altura já com seus sessenta anos, velho, doente, mas muito respeitado e admirado pela população. Ainda comandava com rédeas curtas o morro e não permitia venda de drogas nele. Mas Pardal voltou pra casa e com seu bando mais Curió começou a usar as ruas e vielas da favela pra fazer seu comércio ilegal.
Uma noite foram surpreendidos por Neco enquanto vendiam cocaína. Neco ficou puto quando viu e virou uma mesa que estava cheia de sacolés com pó. Neco pegou Pardal pelo colarinho da blusa e perguntou o que ele estava fazendo e o que pensava da vida. 
Pardal respondeu que pensava mais nada da vida porque ela tinha virado as costas pra ele. Neco disse que como era amigo de seu pai tinha todo o direito de dar umas porradas nele, mas não daria, ordenou que Pardal parasse de vender drogas no morro senão se veria com ele.
Falou isso e virou as costas. Pardal gritou “oh velho!!”, Neco se virou e foi alvejado por cinco tiros de Pardal.
Neco caiu com o corpo sangrando e olhou assustado pra Pardal como se não acreditando no que aquele menino que ele viu nascer que fez um churrasco pra comemorar sua ida pro Barcelona e cedeu um carro pra levar sua esposa na maternidade tenha tido coragem de fazer. Pardal com olhar frio chegou perto de Neco e deu um tiro em seu rosto. O de misericórdia.
Pardal ao ver que Neco estava morto pegou a arma e começou a atirar pro alto dizendo que o morro era deles, seus comparsas fizeram o mesmo. Pela primeira vez ouvia-se barulho de tantos tiros assim na agora não mais calma favela.
Estava nascendo um novo líder no morro do Trololó.



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