Capítulo IX - Getulio Peçanha


Nessa história toda quem se deu mal fui eu, recebi o carro batido e tive que mandar pro seguro. Fiquei um tempo andando a pé até que o recebi, mas não era a mesma coisa..maldito Eusébio. E eu ainda ajudei aquele otário
Pro Senador não ficou tão ruim. Muito graças a mim que fiz uma matéria tendenciosa pro jornal contando que ele havia sido alvo de um terrível engano e mesmo sem consultá-lo colocando na matéria que ele tinha se compromissado a começar uma campanha contra as drogas.
Um dia estava em casa e pra minha surpresa tocaram a campainha e era ele. Perguntou se podia entrar e eu deixei.
Entrou, sentou e agradeceu a forma que conduzi a matéria e que aquilo tinha o ajudado. Falei que ele era avô da minha filha e que nunca faria algo que o prejudicasse, além de ter me ajudado muito na vida. 
Eu odiava aquele filho da puta, mas a falsidade é uma arte que às vezes temos que usar.
Getulio se aproximou de mim e disse que sabia que podia confiar em mim, mentira também ele só notou que podíamos falar a mesma língua, deu tapinha no meu rosto e contou que tinha negócios a propor. 
Eu adoro negócios com poderosos..perguntei o que ele tinha a propor e Getulio perguntou se eu queria trabalhar com ele. Esse sempre foi meu sonho, depois que ele virou evangélico e montou sua igreja acabou montando um conglomerado midiático que incluía televisão, rádio, jornais e internet.
Mesmo entusiasmado com o convite fiz ar blasé levantei, botei uísque no meu copo e perguntei se ele queria. O Senador respondeu que sim então enchi um copo pra ele e perguntei como seria esse trabalho.
Ele propôs que eu virasse seu assessor direto de comunicação e escrevesse sua biografia. Engasguei na hora, mas que mania era essa que todos os bandidos da cidade queriam que eu escrevesse suas histórias? Getulio perguntou se eu toparia e perguntei quanto ganharia, se fosse 1 real por mês eu topava era mais que eu estava ganhando no jornal.
Mas ele propôs muito mais que um real, grana pretíssima. Por dentro pensei “puta que pariu, me dei bem”, mas com o ainda ar blasé falei “tudo bem”, quando começamos? Ele disse que eu podia aparecer na sede das organizações na manhã seguinte que mostrariam como seria meu trabalho e já poderia começar a biografia. Respondi que tudo bem, só precisava pedir demissão do jornal.
Ah moleque..minha vida estava mudando pra melhor..
No dia seguinte pedi demissão do jornal e abri mão do que tinha pra receber em gratidão a tudo que aquele jornal tinha feito pra mim. Encaminhei-me pra sede das organizações “MAPE”.
O nome MAPE vinha da contração de Matos Peçanha e dava nome a TV, rádio e jornal. Getulio tinha essas emissoras que cobriam a todos os segmentos e também uma cadeia de rádios da Cruz de Cristo, sua igreja e com ótimo poder de oratória ele entrava em cadeia de rádios todas as manhãs pra comandar seu programa onde falava de religião e política, além de prestar assistencialismo.
Uma mistura que fazia do meu caro ex sogro um dos políticos mais populares do país mesmo sempre aparecendo coisas estranhas sobre ele, coisas não muito dignas de um político honesto. Coisas que ele combatia dizendo ser perseguição contra os evangélicos e fazia o país chegar a beira de uma guerra religiosa.
Cheguei a sua sala e me apresentei pro trabalho. O Senador disse que eu teria que me revezar entre Brasília e o Rio de Janeiro e perguntou se isso era problema pra mim, respondi que não. Getulio contou então que não me queria por perto apenas para a biografia e pra assessorá-lo com a imprensa. Perguntei então o que ele queria.
O Senador me queria pra ser “laranja”. Usar meu nome em uma conta bancária pra lavagem de dinheiro.
Perguntei se ele já não fazia isso com a igreja. Getulio fingindo indignação respondeu que não o dinheiro da igreja era limpo. A religião era algo que ele confiava seu coração, sua fé e seu dinheiro ia apenas pro conglomerado de comunicação. O dinheiro que ele precisava “limpar” era outro. Perguntei que outro e ele respondeu que eu já estava querendo saber demais.
Marrento como eu sempre fui respondi que queria saber de onde viria o dinheiro que entraria em conta com meu nome. O Senador riu e falou que eu não havia mudado nada continuava com aquele jeito metido.
O Senador falou que tinha negócios com um sócio e precisava que esse dinheiro fosse para uma conta, perguntei quem era o sócio e de onde vinha a grana que eles precisavam limpar. Getulio riu falou “ah jornalistas..” e nisso o telefone tocou. Ele atendeu e o Senador disse ao interlocutor que estava justamente falando comigo.
Ainda murmurei estranhando a pessoa que estava na linha saber quem eu sou e Getulio passou o celular pra mim dizendo que seu sócio queria falar comigo. Atendi e do outro lado da linha era Pardal.
Pardal quando ouviu meu alô riu e falou “olha lá hein seu pela saco, tá ficando importante cuida bem da nossa grana”. Disse para ele não se preocupar e devolvi o telefone pro Senador que falou a Pardal que depois conversaria com ele.
Getulio desligou e notou que eu olhava para ele incrédulo. Riu e falou que eu devia ser muito ingênuo achando que aqueles moleques pobres moradores de morro eram os verdadeiros donos do tráfico de drogas na cidade, que evidente que eles tinham sócios poderosos que moravam em coberturas e mansões.
Respondi que imaginava que sim sempre tinha ouvido falar nisso, mas agora tinha certeza. O resquício de moral que ainda existia em mim pensou em perguntar como um Bispo Evangélico que pregava a palavra de Jesus Cristo poderia estar envolvido com tráfico de drogas, mas antes disso o Senador mandou a real.
Disse que sabia do meu envolvimento com Pardal, Lucinho e que tinha ido até a Colômbia comprar drogas não fazer matéria pra jornal. Falou que eu era ganancioso, ambicioso e com pouquíssima moral e precisava de uma pessoa assim os trabalhos como assessor e biógrafo eram apenas fachada, eu apareceria pra trabalhar quando quisesse e ele não tinha pressa com a biografia, mas precisava do meu nome.
E finalizou falando que tinha dez milhões de reais do narcotráfico para entrar na conta e 10% era meu.
Hã? O que? Um milhão? Na hora esqueci aquele pensamento sobre pregar a fé e vender pó abri um sorriso e falei “Pô sogrão, minha conta é sua conta fique a vontade”.
Assim virei um homem rico. Abri conta em um banco, em alguns dias a grana entrou e um milhãozinho era meu. Transferi esse milhão para outra conta que eu já usava e deixei quieto lá já que não precisava de nada muito urgente. Deixei a conta que abri para eles.
Ganhava um ótimo salário pra fazer nada, tudo bem o Senador também nada fazia em Brasília. Ia pra lá com ele algumas vezes, mas a maior parte do tempo ficava no Rio me divertindo e fazendo a biografia do Pardal. Até fiz algumas entrevistas com o Senador, mas a idéia do seu livro nem foi muito adiante. Apesar de que eu já conhecia bastante a história dele.
E vou dividir com vocês.
Nós já vimos criminoso que nasceu pobre e a vida lhe fudeu, criminoso que nasceu rico e fudeu a vida, agora vamos ver criminoso que mudou de convicções ou então esqueceu as mesmas.
Pra Getulio Peçanha chegar naquele ponto. Virar um Senador respeitado e temido pelos seus opositores, considerado por muito demagogo. Líder de uma das igrejas que mais crescia não só no Brasil como no mundo porque a Cruz de Cristo já tinha igrejas por mais de cem países Getulio teve que mudar completamente de mente.
Ou então apenas colocar pra fora tudo que sempre pensou.
Getulio ganhou esse nome por causa de Getulio Vargas. Seu pai o Coronel do Exército Nicolas Peçanha era fã do ex presidente Getulio Vargas e fez a homenagem.
Homenagem que anos depois deve ter se arrependido já que foi um dos que na Crise de 1954 quando o Vargas se matou participou do movimento pra derrubá-lo.
Como vocês podem ver “mudar de lado” na família era algo genético.
Getúlio tinha um irmão chamado Eurico, homenagem ao ex presidente Eurico Gaspar Dutra. Os irmãos viviam com o pai e a mãe em Vila Isabel, bairro da zona Norte da cidade onde nomes como Noel Rosa e Martinho da Vila se consagraram. Tiveram uma infância tranqüila e feliz.
Getulio sempre teve uma queda pela política e o dom da oratória. Aproveitando-se disso no fim dos anos cinqüenta quando fazia o científico já militava em política estudantil e na primeira metade dos anos sessenta na faculdade fez parte de diretórios estudantis.
Pra desgosto do coronel Nicolas Getulio era militante de esquerda, dizia-se comunista e isso provocava brigas terríveis em sua casa com a mãe tentando apartar. Eurico só queria saber de bossa nova e namorar.
Rapidamente Getulio começou a participar da UNE, mas assim como todo jovem também procurava se divertir ia a festinha de amigos com o irmão e em uma dessas festas conheceu Letícia.
Letícia foi o primeiro amor de Getulio, menina sonhadora que queria ser professora. Não ligava para política, se importava com seu futuro em ter uma família e ser feliz, Getulio queria mudar o mundo Letícia queria dois filhos e um sítio em Petrópolis.
Getulio se dividia entre a namorada e a política que cada vez mais fervia no Brasil. Participou de protestos a favor de João Goulart, mas de nada adiantou porque o golpe militar foi dado só que a mudança no país não foi suficiente para tirar Getulio da política.
Ele estava no prédio da UNE quando o mesmo pegou fogo e quase morreu. Mesmo com a UNE fechada pelo governo continuou com política estudantil. Fazia panfletagens em faculdades, discursava contra o governo e a favor da democracia, participava de reuniões secretas e fazia pichações com “abaixo a ditadura”.
A polícia estava na sua cola e por várias vezes esteve perto de pegá-lo. Em uma teve que com amigos jogar panfletos pela janela do apartamento de um deles enquanto a polícia vasculhava outros cômodos, era uma vida de muito perigo.
Em um debate com jornalistas e artistas a polícia chegou e levou todo mundo, inclusive ele. Ficou uma noite preso apenas já que além do caso ter criado uma grande comoção Getulio tinha “costas quentes” devido o pai. Mas esse ato teria conseqüências.
Ao chegar em casa Letícia disse que precisava conversar com ele. Getulio levou a menina ao seu quarto pra conversarem e lá ela disse que não tinha mais como namorarem por terem visão diferente do futuro. Ela queria uma vida tranqüila e aquilo era justamente o que ele não podia dar no momento.
Pela primeira e talvez única vez na vida Getulio chorou. Ele realmente amava Letícia e tentou de todas as formas convencer a moça a não terminar com ele. Falou de seu amor e do sonho de um país melhor, melhor até pra ela, o futuro deles e seus filhos. Seus argumentos não convenceram Letícia que mandou que ele escolhesse entre ela e a luta política. Getulio suspirou fundo e disse que não podia largar seus sonhos.
 Letícia limpou as lágrimas de seus olhos chegou em Getulio deu um beijo em seu rosto e pediu que ele tomasse cuidado saindo assim de seu quarto e sua vida. Getulio desabou na cama chorando.
Pra esquecer o amor que perdera entrou de cabeça na política, decidiu sair de casa depois de uma briga homérica com o pai e entrou pra entidades clandestinas. Com o codinome Pedro participou de assaltos a banco e foi um dos idealizadores da passeata dos cem mil em memória do estudante Edson Luis morto pelo regime militar.
Participou ativamente da luta armada. Ao mesmo tempo em que Letícia se casava com um filho de industrial e finalmente teria seu sítio em Petrópolis Getúlio foi para o sertão da Bahia se esconder e tentar iniciar a revolução socialista. Voltou meses depois e assim escapou de encontrar as forças de repressão. Mas foi pego no Rio de Janeiro depois de uma tentativa frustrada de assalto a banco.  
Levado para os porões do DOPS foi torturado e só não morreu porque o coronel descobriu a prisão e foi até ele. Conversou com o filho e convenceu que ele dedurasse os colegas. Getulio fraco por ter apanhado dedurou tudo que o governo queria saber e foi solto.
E enquanto era mandado por seu pai para o exílio em Paris os colegas que ele delatou apanhavam e morriam.
Em Paris Getulio começou uma nova vida rapidamente esquecendo-se das lutas que participou e dos ideais de esquerda. A Europa e todo seu lado cosmopolita, chique fizeram que pela primeira vez ele aproveitasse a vida. Formou-se em sociologia e escreveu um Best seller em Paris falando do Brasil e as mazelas do governo militar sendo cultuado pelas esquerdas do mundo inteiro.
Mas de esquerda ele tinha mais nada, só o discurso que naquele momento era conivente.
Na Europa conheceu Mariana, filha única de um fazendeiro brasileiro considerado o rei do gado no Mato Grosso. Apaixonaram-se e casaram logo depois morando em um apartamento em Paris e sendo sustentados pelo sogro, nessa mesma época os pais de Getulio morreram.
Alguns anos depois veio Getulio Matos Peçanha Junior, o Juninho. Juninho vinha para ser o herdeiro de toda aquela grana do fazendeiro.
E anos depois Juliana que viria a ser minha esposa. Mas ela não chegou a nascer na França. Mariana estava grávida quando o casal voltou ao Brasil graças a Lei de Anistia.
Voltaram ao Brasil e Getulio ingressou no MDB, partido de oposição ao governo. Apesar de no fim de sua vida como militante nos anos sessenta ter sido delator voltou com moral ao país e em 1982 foi eleito Deputado estadual, quatro anos depois virou Deputado federal Constituinte. Mudou logo depois de partido indo para um mais de centro renegando seu passado esquerdista e os anos que se seguiram no Congresso mostraram que aquele passado estava cada vez mais enterrado.
Nessa época já morávamos a algum tempo com a família Peçanha, mas não vou entrar muito em detalhes da vida íntima porque já falei no meu capítulo.
O que dá pra dizer é que depois que o sogro morreu Getulio assumiu o comando dos negócios da família e arrumou várias amantes e isso destruía a mulher por dentro sendo a razão de suas brigas.
E ela sabia dos podres do marido, ameaçava se separar e ir a imprensa mostrar provas contra ele..coincidência ou não meses depois Mariana morreu. Descobri algum tempo após do acontecido por fontes que o freio do carro havia sido cortado e Getulio havia morrido em uma grana preta para que isso fosse abafado.
Nunca contei essa história pra Juliana até porque não tenho como provar e acredito que caso fosse intenção dele acabar com a esposa não contava do filho ir junto. A morte de Juninho abalou o homem de verdade mesmo não deixando transparecer. Eu por ser jornalista sempre fui curioso, observador e conhecia bem as reações de meu sogro.
Getulio que sempre foi chegado no Candomblé largou a religião e começou a freqüentar igreja Evangélica. Uma igreja humilde, honesta como a grande maioria dos evangélicos são e gostou do que participou. Resolveu se aprofundar estudou e virou Pastor.
Não sei qual foi a ordem das coisas, se ele entrou na religião pra aliviar a dor ou até a culpa da morte do filho e viu ali uma mina de ouro ou se ele viu a mina de ouro e arrumou uma ótima desculpa na morte do filho para explorar esse segmento. A verdade é que depois que virou Pastor Getulio comprou horários em rádios para falar de religião, política e praticar o assistencialismo.
 Criou a Fundação Getulio Peçanha, conseguiu no Congresso através de lobby a concessão de sua primeira rádio e começou a achar que a humilde igreja que freqüentava se tornara pequena demais pra sua ambição criando assim a Cruz de Cristo.
Getulio já tinha dinheiro por ser viúvo da Mariana e fez essa grana multiplicar por dez com a igreja. A combinação igreja e política rendeu dividendos financeiros e eleitorais. Cada vez mais abriu igrejas onde antes funcionavam cinemas e teatros, comprou emissoras de rádio falidas e aumentava seu poder, até conseguir concessão de uma emissora de televisão.
Foi o seu boom, tornou-se um dos políticos mais famosos do país, mais amados pelo povo e ao mesmo tempo começavam a surgir denúncias de lavagem de dinheiro e desvio de verbas. Getulio sempre escapava principalmente usando a palavra da religião e o fato de ter um grande conglomerado midiático para defendê-lo.
E assim aquele jovem militante de esquerda que foi capaz de perder um amor por seus ideais virou um dos barões do país, tudo aquilo que ele abominava.
Um dia no aeroporto de Brasília esperávamos nosso vôo para o Rio de Janeiro quando uma mulher se aproximou, sorriu e perguntou se ele lembrava dela. Getulio respondeu que sim e perguntou como ela estava. A senhora respondeu que bem e apresentou o marido e a filha que os acompanhava.
O Senador cumprimentou a todos e depois daquele silêncio constrangedor que dá quando não temos assunto se despediram. Quando eles já não estavam perto Getulio virou pra mim e disse “você viu aquela menina que estava com o casal?” respondi que sim e que ela era “gostosinha”. Getulio então mandou que respeitasse porque podia ser sua filha.
Aquela senhora que o cumprimentou era Letícia e o Senador ao ver o amor de sua vida mesmo depois de tantos anos reagiu friamente.
Naquele momento tive a certeza que nem Letícia nem Mariana foram os amores de Getulio, o amor de sua vida era o poder.
E poder convenhamos..dá muito tesão.


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