O CONCURSO DE SAMBA


*Capítulo da coluna "Enredo do meu samba" publicado no blog "Ouro de Tolo" em 25/1/2014



Com essa história deliciosa me senti um pouco próximo de meu pai. A história da menina que junto com a mãe era a cara do seu Jair. Bonachão, bem humorado e surpreendente.

Não estava mais com cabeça para ler e liguei a tv. Nada me chamava a atenção e decidi ver desfiles antigos.

Em um desses desfiles vi meu pai comandando a harmonia de uma escola. Feliz, irradiando energia e senti uma enorme saudade. Perguntei porque ele aprontara aquela comigo e fui deitar.

Não consegui dormir e no dia seguinte fui para o trabalho com a cara acabada. Meu chefe viu e mandou que eu voltasse pra casa e recusei dizendo que estava bem.

O homem respondeu que eu não estava porque acabara de apagar um cigarro em seu café..Olha que eu nem fumo.

Pedi desculpas e meu chefe novamente falou “vai descansar, você precisa”. 

Decidi ouvir seus conselhos e fui pra casa.

Tomei um remédio e dormi profundamente. Estava cansado de tudo aquilo que ocorria na minha vida e adormeci por quase vinte e quatro horas só acordando com a campainha tocando.

Atendi e era Bia com Julinha. Minha filha me abraçou e Bia perguntou como eu estava, respondi que bem e elas entraram.

Bia perguntou se eu tinha comida em casa. Respondi que não e ela abriu os armários dizendo “é, não tem muita coisa, mas dá pra fazer algo”.

Bia resolvera cozinhar pra gente.

Perguntei pelo Zé e minha ex respondeu que viajara a negócios para São Paulo. Olhei a folhinha do calendário e lembrei que naquele dia ocorreria a parada gay na capital paulista, mas preferi ficar quieto.

Ana Julia pediu que eu ligasse a televisão e fiz colocando em seu canal de desenhos preferido. Perguntei a Bia no que podia ajudá-la na cozinha e minha ex respondeu que em nada, pois eu era um desastre em culinária.

Julinha gritou da sala concordando.

Resignado e aceitando ser péssimo cozinheiro sentei na sala e senti um momento de felicidade no meio de tanta tristeza. Via minha filha assistindo desenho, Bia na cozinha e era como se eu tivesse minha família novamente. 

Mesmo que só por uns instantes.

Aproveitei aquele momento de paz e peguei o note. Transcrevi algumas histórias pro livro que tinha no gravador e decidi ler mais uma história que meu pai escrevera no caderno.

A história de quatro sujeitos muito suspeitos.

Pardal era o dono do morro do Trololó, zona norte do Rio de Janeiro. Sujeito vaidoso que adorava mostrar seu poder para os “trololoenses”.

Achava-se o artista, o galã, o tal.

Um dia Zequinha, braço direito de Pardal, chegou com Lucinho, outro de seus comandados no morro com uma novidade. Foram até a escola de samba Acadêmicos da Guanabara na noite anterior e papo vai, papo vem foram convidados a colocar samba na escola e estavam ali com a sinopse do enredo para convidar Pardal.

Pardal riu e perguntou o que faria com aquilo já que ele era bandido e não compositor. Lucinho falou que ninguém ali era compositor, mas já tinha se informado que não era necessário saber nem mesmo ler e escrever pra ser compositor e fazer um samba-enredo.

Zequinha puxou pelo lado de sua vaidade e perguntou se ele não queria ter o nome eternizado com biografia. Teria como compositor e seria uma forma dele homenagear seu pai que fora mestre de Bateria.

Pardal olhou a sinopse, depois pra Zequinha e falou “filho da p.. falar no meu pai é golpe baixo”. O auxiliar perguntou se topava ou não e ele respondeu que sim e “vamos ganhar aquela porra”.

Alguns dias depois marcaram um encontro pra fazer o samba lá no morro. Os moleques embalavam pó na boca quando os bandidos chegaram e Pardal disse que teria que se ausentar para compor. A molecada não entendeu nada e ele falou que iria escrever um samba. Um dos moleques virou e disse que fazer samba era coisa de viado o negócio era funk. Pardal puto engatilhou a arma apontou na cabeça dele e perguntou “como é que é de menor?”.

O moleque sorriu amarelo e falou que estava brincando. Pardal guardou a arma e disse que achava bom que fosse brincadeira mesmo porque ele seria um dos que teria que descer pra torcer.

E assim quatro subiram da boca para a casa de Pardal. Ele, Lucinho, Zequinha e Freitas, um major da PM que também estaria no samba. Freitas se lembrou da última vez que esteve naquele morro para pegar Pardal devido a um ataque que o traficante fez a helicóptero do BOPE. Pardal pediu pra nem lembrar porque ele teve que morrer em uma grana preta pra salvar o pescoço.

Chegaram lá pegando papel, caneta e abrindo a sinopse. Leram e ficaram os quatro lá com cara de bunda. Um olhando pro outro. Pardal perguntou então o que fariam.

Lucinho disse que não tinha a mínima ideia, Freitas também não. Pardal olhou pra Zequinha e perguntou se ele tinha alguma ideia.

Respondeu que não. A única coisa que sabia era que tinha que rimar “aí” com “Sapucaí”.

Eles fizeram tudo direito. Montaram a parceria, arrumaram dinheiro pra disputa, torcida..Só esqueceram de arrumar gente pra compor o samba.

Ficaram lá os quatro sentados até que Zequinha lembrou de já ter ouvido falar em “escritório de samba”. Freitas perguntou o que era isso e o bandido respondeu que ouviu o papo uma vez que tinha grupos de compositores que faziam o que chamam de “samba de escritório”.

Como o mesmo grupo de compositores não podia assinar sambas em mais de uma escola do grupo especial do Rio de Janeiro arrumavam “compositores” que assinavam por eles. Os caras que assinam esse tipo de samba são chamados de “pombos”. O samba era feito e caso fosse vencedor no concurso depois a grana era rachada.

Pardal achou uma boa ideia então pegou o celular e ligando para alguns contatos conseguiu o telefone de um compositor chamado Vandré Turco. 

Esse compositor com seu grupo no carnaval anterior ganhou sete sambas no grupo principal dos desfiles do Rio. Conversaram com ele e contaram o que tinham e que precisavam de um samba. Todos os acordos foram costurados e o samba seria feito.

Algumas semanas depois Freitas foi com Lucinho na casa desse Vandré. Entraram e ele pegou o cavaco para cantar o que fez com seu grupo. O samba ficou lindo Lucinho logo se entusiasmou e disse que não tinham como perder. Vandré passou contatos de bons cantores e cavaquinhistas para o palco. Nesse caso não seria uma parceria, era compra e venda. Pagaram dez mil e o samba era deles.  

Contrataram Rogério Guanabara, cantor promissor da agremiação para ser o intérprete do samba. Passaram o samba pro cantor e marcaram estúdio pra gravação do cd.

E se tem uma coisa chata é gravação. Zequinha, Lucinho e Freitas ficaram doze horas dentro de um estúdio com o Rogério, cavaquinhista, um rapaz pra tocar violão, ritmistas pra fazer gravação dos instrumentos de bateria, mulheres pro coral feminino.  

Pardal, que por motivos óbvios não foi ligava toda hora para saber como estava a gravação e reclamando da demora.

Mas ficou pronto. O produtor colocou pra tocar e ficou excelente. O trio já tratava o samba como se tivessem feito e assim como foi bom foi caro. 

Gastaram muita grana e a disputa nem tinha começado.

E a disputa começou e foi passando, o samba se classificando. Era engraçado como o locutor anunciava “Freitas do repique, Zequinha do tamborim, Lucinho do cavaco e Nicácio do pagode” sendo que os quatro não tocavam nada. No máximo aquilo que adolescente adora tocar.  

Pardal teve que lembrar que seu nome era Nicácio porque se assina “Pardal do Trololó” no fim da apresentação o BOPE lhes esperaria de braços abertos no lado de baixo.

E subiam orgulhosos no palco. Torcida imensa embaixo que fazia valer os dez ônibus que mandavam todos os sábados pro Trololó pegar essa gente, os quilos de carne pra churrasco e caixas de cerveja. A galera cantando e balançando bandeiras e os fogos estourando do lado de fora. Uma disputa de samba-enredo pra quem nunca foi é um show de luzes, cores, pirotecnia e barulho. Às vezes dá até pra ouvir o samba. Mas esse detalhe não era tão importante.  

E subiam ao palco como um time de futebol. Calça branca, sapatos brancos, camisa branca com detalhes azuis, azul e branco são as cores da escola. Eles, os cantores e os músicos, todos com uniforme. Aliás, todas as parcerias tinham e o branco predominava parecendo um congresso de Pais de Santo.

Por falar em Pai de Santo a reta final de disputa se aproximava e estavam bem, mas tinha o samba de uma molecada que incomodava. Samba bom com refrães fáceis, torcida grande.

Eles não acreditavam que aqueles garotos tivessem feito, para a parceria também era de escritório. Lucinho distribuía amendoim e pipoca na hora do samba deles para sua torcida e assim atrapalhar o canto, mas não adiantava muito.

Então faltando dois dias para a final  Freitas e Zequinha foram a um terreiro que o Major frequentava. Terreiro de Pai Cadinho lá em Campo Grande.  

Ele perguntou qual era o problema e Freitas contou. O Homem disse que isso era fácil de resolver e pediu prospectos dos sambas adversários na final. Prospecto é uma folha que tem a letra do samba. Freitas entregou e o homem amassou, colocou na boca e engoliu para espanto do grupo.

Gargalhando depois deu uma fumada no seu cachimbo e disse para não se preocuparem mais que os samba inimigos estavam “amarrados” e ganhariam a disputa.

Foram confiantes para aquela final. Gastaram muito para que tudo desse certo e vencessem. Evidente que também jogaram sujo.

Lucinho descobriu de onde saía os ônibus com a torcida adversária e subornou os motoristas para que fossem pro lugar errado.

Foram os primeiros a se apresentar e deram um show. Rogério Guanabara era um grande cantor e parece que botou o coração na garganta naquela noite. Desceram do palco felizes e certos que venceriam ainda mais que Lucinho subornou os motoristas e acreditavam que teria ninguém para torcer pros adversários.

E realmente tinha ninguém. Uma apresentação pífia que quase fez os bandidos abrirem champanhes.

Só que não tinha acabado. Havia um terceiro samba na final, muito ruim pro sinal e que ninguém nem sabia como tinha chegado lá.

Falavam que esse estava lá  porque era samba da “comunidade”. Samba feito por pessoas que moram próximas da quadra, sempre frequentam e o presidente da escola teria levado até aquela noite pra agradar seu povo.

Mas o samba tinha muita torcida, demais, não parava de ir gente pro meio da quadra torcer. Espantados os bandidos olhavam aquilo e perguntavam de onde tinha surgido tanta gente. Quando Zequinha percebeu era a quadra quase toda torcendo por eles. O cantor do samba começou a gritar por sua comunidade para que apoiassem e o público levantou as bandeiras. Lucinho pôs a mão na cara e falou “fud..”.

Zequinha perguntou porque ele achava isso e Lucinho mandou reparar na cor das bandeiras. Zequinha olhou e eram vermelhas.

O bandido não entendeu porque das bandeiras vermelhas se as cores da agremiação eram azul e branco. Freitas mandou que ele parasse de ser ingênuo e tentasse lembrar o que significava o vermelho.

E Zequinha lembrou..Vermelho era a cor de uma famosa facção criminal do Rio de janeiro. Da facção que comandava a área que ficava a Acadêmicos da Guanabara e o presidente era um cara esperto. Ele nunca ficaria mal com os “homens”. Zequinha, Pardal, Freitas e Lucinho entraram pelo cano.

O presidente pegou o microfone e discursou que era uma escolha muito difícil, que eram obras lindas que se apresentaram lá difícil de escolher e todo aquele blá blá blá que só enerva.

No fim ele falou que deu empate e a diretoria havia se decidido por uma fusão de sambas. A primeira parte e o refrão do meio de um, a segunda parte e refrão de baixo de outro.   

O cantor oficial da casa iniciou o samba e o começo da fusão era do samba da comunidade. Os caras começaram a comemorar e pular feito doidos. Dava pra ouvir do lado de fora as rajadas vindas do morro em festa. Mas ainda faltava o restante do samba e com certeza seria deles falou Lucinho.

É, mas não foi. Cantaram a segunda e o refrão principal do samba que desviaram a torcida. Os dois sambas foram os campeões e os bandidos perderam sozinhos. Major Freitas olhou furioso para o presidente que fez cara de “não tive culpa” e os bandidos saíram da quadra derrotados.

Mas nem meter uma bala no presidente podiam, se rolasse isso os capangas metiam trezentas neles de volta.
  
Do lado de fora os três encostados no carro pensaram como aquilo ocorrera. Freitas então lembrou e gritou “Pai de Santo filho da p...!!”. Os outros dois olharam pra ele que concluiu “Comeu os sambas dos caras e eles ganharam, só não comeu o nosso e perdemos. Era pra ter comido o nosso porra !!!”

Entrou no carro e saiu em disparada. Alguém tinha que pagar o pato. Perderam o samba e o Pai de Santo ganhou um tiro no meio dos olhos. Não previu a derrota nem sua morte. Pai de Santo fraquinho...

Enquanto isso Lucinho e Zequinha foram beber e contar a notícia a Pardal por celular que falou que nunca mais queria saber ”dessa merda” de samba. Zequinha desligou e fez um brinde com Lucinho pela luta e decidiram também que suas carreira de compositores estava encerrada.

Aquele meio de samba-enredo era muito podre, ser bandido era mais honesto...

 

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