Capítulo II - Infância

Nem tudo na vida de Lucas foi sucesso, a vida não foi um mar de rosas. Como contei sua origem é pobre, quase miserável.

Lucas nasceu e foi criado no morro do Dendê na Ilha do Governador, nunca esqueceu suas origens e sempre sentiu orgulho de ser cria do Dendê.

Morava com os pais. Dona Jurema, sua mãe, naquela altura com quarenta e poucos anos, mas aparência de mais velha.  A vida lhe desgastou, a pobreza e a miséria lhe marcaram o corpo e a alma.

Mas dona Jurema não podia abrir espaços na vida para lamentações. Ela que sustentava a casa com seu trabalho. Trabalhava como cozinheira, diarista, o que pintasse ela trabalhava para provir o sustento da família. Algumas vezes quatorze horas por dia se preciso fosse.

Uma mulher de fibra, de coragem.

O pai se chamava Waldomiro, mas ninguém lhe conhecia pelo nome. Capaz do mesmo ser chamado assim na rua não reconhecer que era consigo. Waldomiro era mais conhecido como Balão.

Esse apelido vem desde adolescente por adorar soltar balões.

Balão era o típico malandro na juventude. Boa pinta, como diz uma música “negão de tirar o chapéu”. Casou com Jurema, mas continuou mulherengo e beberrão.

Balão não trabalhava, só queria saber de samba e sonhava ser um compositor e cantor famoso. Fazia parte da ala de compositores da escola de samba União da Ilha do Governador e era um compositor de sucesso ganhando quatro concursos de sambas de enredo na agremiação.

Quatro sambas dele desfilaram com a União da Ilha pela Marquês de Sapucaí, alguns deles fizeram muito sucesso. Vocês têm noção de quanto um compositor recebe ao ter um samba seu desfilando na Sapucaí e transmitido na Globo pro mundo inteiro?

É muito dinheiro. Não dá pra ficar rico, mas dá pra construir uma vida confortável, mas Balão não deu isso a sua família. Gastou o dinheiro com bebida, jogatina e mulheres.

Um dia a vida cobrou essa dívida. Balão se tornou alcóolatra e não conseguiu mais fazer sambas de qualidade nem cantar bem. Fazia seus sambas pra concorrer na União da Ilha, mas virou motivo de risos e chacota ao se apresentar bêbado quase caindo do palco.

O outrora campeão agora era um bêbado desprezado, esquecido e proibido de disputar sambas na agremiação por provocar constrangimento e repulsa.
Tentava arrumar emprego, mas seu alcoolismo não deixava que parasse em lugar nenhum. Começou a viver de “bicos”, mesmo assim não podia pegar qualquer coisa, pois, alegava ter hérnia de disco.

Dessa forma Jurema, que mesmo com essa vida de cão com o marido nunca cogitou se separar comandava a família e não foram poucas as vezes que teve que ir de madrugada ao bar buscar Balão quase não se aguentando em pé pra levar pra casa.

Ela e as crianças. O casal teve quatro filhos.

Mariano, o mais velho degenerou. Desde pequeno andou em más companhias. 

Com apenas doze anos entrou pro tráfico de drogas trabalhando como “fogueteiro”. Ele que avisava quando a polícia chegava.

Depois com o tempo arrumou desavença com os traficantes e teve que sair do morro. No asfalto assaltava, sequestrava, até que um assalto acabou mal.

Ele e dois comparsas foram roubar um carro e o motorista estava armado. Mariano percebeu que ele sacaria a arma e atirou antes dando três tiros no peito do motorista matando o homem.

Não demorou muito para a polícia botar as mãos em Mariano e ele pegar por seus crimes sessenta anos de cadeia.

Lucas, dez anos mais novo que Mariano foi o segundo filho, Jonas o terceiro e Jéssica, a única menina, a caçula.

Os três estudavam no colégio público chamado Rotary. Jurema queria os três com estudo, queria um futuro melhor para eles futuro diferente de seu presente e do irmão mais velho.

Mas com o tempo Lucas viu que a coisa não seria fácil. Era apenas a mãe pra sustentar uma casa com cinco pessoas e uma noite, como em muitas anteriores todos tiveram que ir pra cama sem janta por não ter comida em casa.

Lucas com fome deitou e chorou baixinho. Quando quase adormecia ouviu o barulho da porta. Era seu pai chegando em casa.

Ouviu os gritos de sua mãe que socava o peito de Balão perguntando onde o homem se metera. Balão mal conseguia falar de tão bêbado e Jurema esbravejava que os filhos tiveram que dormir com fome por não ter um real pra comprar comida.

Balão ainda tentava falar, mas a língua enrolava. Jurema chorando aos gritos dizia que nem corpo tinha mais pra se prostituir e dar de comer aos filhos e que se ele não tomasse jeito na vida iria embora com as crianças.

Lucas chorava baixinho quando Jonas acordou perguntando o que acontecia. Lucas respondeu que nada e que o irmão voltasse a dormir.

Antes de dormir novamente Jonas disse que estava com fome e Lucas prometeu que o irmão nunca mais sentiria fome.

Só um adendo. Daquela vez Jurema bateu em Balão, mas o normal era ele bater nela. Muitas vezes Jurema teve que sair de casa com olho roxo, boca cortada, mas botava a culpa em quedas. Nunca revelou a ninguém que apanhava por vergonha e pra manter sua família.

Apenas seus filhos sabiam, mas todos se calavam.

Na manhã seguinte Lucas arrumou uma caixa de engraxate e graxa e correu atrás de Léo, seu melhor amigo. Léo vendia doces e balas em ônibus e Lucas perguntou se poderia ir junto.

Léo concordou e assim Lucas foi até a Central do Brasil. Lá com a caixa gritava que era engraxate, mas ninguém lhe dava atenção.

Lucas desanimou, sentou no meio fio e pediu uma luz, algo que pudesse lhe ajudar a mudar aquele destino.

Nesse momento passou um rapaz ouvindo música. Ouvia funk. Lucas sempre gostou de funk, apesar de nunca ter ido a um baile devido a idade e daí teve uma idéia.

Começou a oferecer seus serviços de engraxate fazendo rimas improvisadas como em um rap. Isso chamou atenção dos transeuntes e aos poucos começaram a sentar no banquinho para que Lucas engraxasse.

Dessa forma Lucas botou o marketing na sua vida. Cantando rap, cantando funk, exalando simpatia através daquele sorriso que marcaria pra sempre sua vida seu primeiro dia de trabalho foi um sucesso.

Chegou em casa apenas de noite e sua mãe já lhe esperava com cinto na mão. Pegou Lucas no colo, colocou de bunda pra cima e começou a bater com o cinto contando que ele sumiu, não foi pra escola e quase lhe matou de preocupação achando que tivesse morrido.

Lucas gritava pra mãe que estava com dinheiro. Nesse momento Jurema parou de bater e perguntou que dinheiro era esse que ele falava.

Lucas ficou de pé e Jurema perguntou se era dinheiro de assalto, disse que não iria visitar dois filhos na cadeia nem iria enterrar filho. Lucas respondeu que não, que trabalhava como engraxate e mostrou o dinheiro.

Não era uma fortuna, mas praquela família era muito. Lucas entregou o dinheiro na mão da mãe e disse que era dela. Jurema espantada com aquela quantia perguntou se ele arrecadara aquilo tudo apenas engraxando e Lucas respondeu que não, engraxando e cantando funk e mostrou seu método.

Jurema sorriu..era dificil arrancar um sorriso daquele rosto cansado pela vida, mas ela sorriu e abraçou o filho agradecendo e pedindo desculpas.

Lucas respondeu que ela não precisava se desculpar. Aquele era apenas o começo e ele ajudaria a mãe em casa. Jurema disse que tudo bem, mas ele só poderia trabalhar de manhã tinha que continuar estudando de tarde para ser alguém.

Lucas concordou e Jurema gritou por Jonas para que ele fosse ao açougue comprar carne.

A mulher olhou para Lucas e passando a mão em seu rosto disse “Hoje vamos comer carne”.

A rotina de Lucas passou a ser essa. Acordava todos os dias cinco da manhã. O primeiro a acordar na casa e encontrava com Léo na frente de casa pra descer o morro.

Não foram poucas as vezes que os traficantes paravam os dois perguntando aonde eles iriam tão cedo e que se matavam de trabalhar a toa, ganhariam muito mais com eles.

Os meninos ignoravam e pegavam ôninus pro centro. Léo passava a manhã toda de ônibus em ônibus tentando vender suas balas e doces enquanto Lucas engraxava na Central.

No fim da manhã os meninos se encontravam e iam pra frente do Ferraço Hotel, hotel luxuoso do Centro. Sentavam no meio fio esperavam pacientemente dona Jurema que trabalhava de manhã no hotel e de tarde fazendo faxinas levar duas marmitas pra eles. Lá eles comiam e depois pegavam ônibus de volta pra Ilha do Governador e ir ao colégio assistir aula.

No fim da tarde voltava pra casa ainda a tempo de jogar bola com os amigos. Lucas era o craque do morro e sonhava jogar no Flamengo.

Ficava lá jogando, muitas vezes sujando o uniforme do colégio e só entrava em casa quando a mãe gritava que a janta estava pronta.

Jantavam, melhor ou pior dependendo de quanto Lucas arrecadava, fazia o dever de casa e deitava morto de cansaço para as cinco da manhã no dia seguinte começar tudo de novo.      

Aos domingos era dia de missa. Jurema e as crianças acordavam cedo e botavam suas melhores roupas para ir à igreja. Balão ficava em casa dormindo descansando das bebedeiras e farras do sábado a noite, isso quando ele já estava em casa. Muitas vezes só chegava segunda de manhã.

Jurema na missa agradecia a Deus por ter podido alimentar sua família naquela semana e que Deus conservasse a todos com saúde. Pedia também por Mariano na prisão, que Deus acalmasse seu coração.

Lucas pedia pra continuar ganhando dinheiro, ajudar sua mãe e que o Flamengo vencesse.

De tarde eles iam para a cadeia. Era dia de visita e não tinha um domingo que não fossem visitar Mariano apesar do rapaz pedir que não fossem por não ser lugar pra eles.  
  
Mas eles iam. Enfrentavam aquela fila enorme pra entrar, o calor escaldante e a revista constrangedora.

Naquela semana Jurema levou um bolo de fubá e Mariano ao mesmo tempo em que devorava o bolo morrendo de saudade dos quitutes da mãe falou que não precisava aquele esforço dela, desperdiçar dinheiro com ele.

Lucas sorriu e contou que agora estava mais fácil, pois, ele estava trabalhando.
Mariano intrigado puxou o irmão ao lado e perguntou que história era aquela.  Lucas respondeu que agora trabalhava como engraxate e nunca mais deixaria a mãe nem os irmãos passarem fome.

O presidiário deu um abraço no irmão falando que tinha orgulho dele, confiava e sabia que ele teria um grande futuro.

Lucas agradeceu e Mariano pediu que o irmão prometesse que sua vida seria diferente, ele seguiria o caminho do bem e seria o orgulho da família.

Lucas prometeu e Mariano pediu que prometesse também que não iria mais lá, pois, não era lugar para um menino como ele. Lucas disse que não e nunca abandonaria o irmão.

Mariano sorriu e deu um abraço forte no irmão dizendo que o amava.
Lucas com apenas dez anos de idade era o homem da família.

Continuou trabalhando na Central e estudando até que um dia engraxava os sapatos de um homem que disse que ele tinha um sorriso muito bonito e jeito carismático.

Lucas estranhou e respondeu ao homem que gostava era de mulher. O homem riu e perguntou quantas mulheres Lucas já tivera na vida e o menino mentindo respondeu que um monte.

O homem gargalhou e falou que o menino era um mentiroso. Antes que Lucas se ofendesse o homem sacou um cartão do bolso e disse que era dono de uma agência de figurantes e que o procurasse.

O homem pagou a engraxada e levantou. Caminhava se afastando quando Lucas gritou perguntando o que era figurante. O homem respondeu que era quem fazia figuração.

Lucas continuou sem entender.

Chegou em casa contando a novidade e assim como ele a mãe não sabia o que era figuração. Balão chegou naquele momento e contou que figurante era a pessoa que aparecia em programas na televisão sem fazer nada, só pra preencher o cenário.

Lucas respondeu que devia ser legal e ele queria ir. Balão disse que não iria porque televisão era coisa de “viado”. O menino insistiu que sim e o homem enfurecido respondeu que não e que ele deitasse.

Lucas deitado ouvia a gritaria na sala. Balão pedia dinheiro a Jurema que contava não ter. Do quarto Lucas começou a ouvir o pai bater na mãe e colocou o travesseiro em cima do rosto pra não ouvir mais.

Da sala ouvia-se gritaria, choro e som de tapas. Lucas pressionava o travesseiro contra o rosto e pedia baixinho que Deus parasse com aquilo e protegesse sua mãe.  

De repente a casa ficou em silêncio e Lucas dormiu. Alguns minutos depois Jurema entrou no quarto e acordou Lucas contando que era questão de honra e ela levaria o filho na agência de figurantes.

No dia seguinte Jurema faltou o trabalho e escondida de Balão levou Lucas na agência. O homem reconheceu o menino engraxate e se apresentou como Pedro Dias. Contou a Jurema que o menino era muito expressivo e podia ganhar dinheiro aparecendo em TV.

Assim Lucas foi catalogado na agência e de vez em quando aparecia pontas em novelas, filmes e programas que lhe rendiam um dinheirinho. Não era o suficiente para tirar a família da pobreza nem que ele parasse de engraxar, mas ajudava no orçamento.

Com o tempo os trabalhos aumentaram e Pedro procurou Lucas na Central pedindo que ele fosse com urgência no dia seguinte à agência que tinha uma ótima proposta pra ele. O menino foi e Pedro contou que a Globo começaria uma novela de época que falava de escravidão e estava escalando negros pra história.

Dessa forma Lucas fez teste e passou para interpretar um filho de escravos.
O papel era pequeno, não ganhava tanto dinheiro, mas a família passava por seu melhor momento financeiro e pelo menos no morro Lucas ficou famoso chegando a dar autógrafos.

O pai acabou aceitando que ele trabalhasse em televisão mesmo sendo “coisa de viado”. Balão roubava dinheiro da caixinha da casa, dinheiro guardado para compras e bebia.

Quando Jurema reclamava apanhava.    

A novela acabou e Lucas não teve mais oportunidades na televisão, o trabalho de figuração também diminuiu então o menino voltou a focar no trabalho de engraxate. 

Dessa vez tendo a companhia de Jonas que ia ao trabalho com o irmão.
Uma sexta Lucas, Léo e Jonas voltavam cansados do dia dificil de trabalho e escola quando viram na frente da Acadêmicos do Dendê uma faixa anunciando baile funk.  Seria a primeira vez que teria um baile na comunidade e os meninos se empolgaram.

Lucas correu pra casa, tomou um banho caprichado, jantou rápido com a mãe pedindo que ele comesse devagar pra não passar mal e saiu correndo dando um beijo na testa de Jurema e contando que lhe amava.

Lucas na frente da escola de samba se encontrou com Léo e se encaminharam à portaria. Com o dinheiro na mão ávidos por entrar tiveram uma decepção. O porteiro anunciou que o baile era censura dezesseis anos então eles não poderiam entrar.

Os meninos desanimados sentaram no meio fio e ficaram um tempo olhando pra quadra, olhando pro nada quando Léo anunciou que iria embora e perguntou se Lucas também iria com o menino respondendo que não. Léo levantou, deu um tapinha no ombro do amigo e foi embora.

Lucas ficou lá vendo as pessoas na fila e entrando no baile. O som estava alto com todo o ritmo que o menino sempre gostou.

Mesmo do lado de fora Lucas estava maravilhado com o baile, mal ele sabia como o baile e o funk mudariam sua vida.





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