VAI COMEÇAR DE NOVO..2001, UMA ODISSEIA NA SAPUCAÍ




No próximo sábado começa a disputa de samba na Portela. Por causa disso irei republicar aqui no blog nas próximas semanas uma trilogia que fiz no Ouro de Tolo em 2011 por ocasião do começo das disputas para o carnaval 2012. 

Achei que a trilogia ficou bem legal. Teve ótima repercussão na época então repasso a vocês. Espero que gostem. 

Divirtam-se 

2001, UMA ODISSÉIA NA SAPUCAÍ
 
 
Oi amigos! Como vocês que acompanham a coluna já sabem, sou compositor de samba-enredo e farei agora uma trilogia sobre o assunto, hoje e nas próximas duas semanas.  

Com o nome “vai começar de novo”, contarei minhas experiências como compositor e como funciona uma disputa de samba-enredo. Para essa primeira dei o nome de “2001 uma odisseia na Sapucaí” e a partir de agora explico.  

Domingo, 25 de fevereiro de 2001, 7 horas da manhã, Marquês de Sapucaí - Rio de Janeiro.  

Nesse momento minha vida mudava... Não só a minha vida, mas a vida de uma agremiação carnavalesca: o Boi da Ilha do Governador.  

O Boi é uma agremiação tradicional da Ilha do Governador, não é tão famoso quanto a co irmã União da Ilha, mas é uma agremiação de respeito..  

Começou como bloco em 1965 e tem esse nome porque nos primórdios pessoas saíam no carnaval acompanhando uma pessoa que carregava uma cabeça de boi. Elas cantavam os versos “boi, boi, boi, boi lá vem a polícia montada no boi/ boi, boi, boi, boi o povo pergunta o que foi o que foi”. Esses versos, inclusive, viraram nosso alusivo antes das apresentações de nossos sambas concorrentes nos últimos quatro anos na escola.  

Alusivo, para quem não conhece, é a estrofe de uma música cantada antes de começar a apresentação do samba. Pode ser da própria composição ou não.  

O bloco foi responsável pelo surgimento de muitos sambistas que depois se consagraram na União da Ilha e em outras escolas, como o cantor Quinho (hoje cantor do Salgueiro), os compositores Bujão, J.Brito, Mauricio 100, Marquinhus do Banjo e Carlinhos Fuzil. Pela agremiação também passaram Didi, Aurinho da Ilha, Aroldo Melodia, João Sergio, entre muitos outros... Todos grandes nomes da escola, e a quadra se chamava quadra “Jorge Bossa Nova”  - que veio a ser um dos grandes e pouco conhecidos poetas insulanos.  

Virou escola de samba em 1988 e não foram poucas as vezes que emprestou componentes para União da Ilha; suas disputas de samba-enredo por muitas vezes foram consideradas mais difíceis que as da União. Não raro ter tantos sambas na disputa que tinham que usar a semana toda para apresentar as chaves com os concorrentes.  

E o principal para mim: o Boi ficava na esquina da minha casa e mesmo não sendo frequentador da agremiação eu acabava aprendendo os sambas de minha janela mesmo. E que sambas!! O Boi tem pouquíssimos sambas ruins. É verdadeiramente uma escola de samba. 

Mas não era uma agremiação muito conhecida fora da Ilha e naquela manhã de domingo de carnaval de 2001 ganhou um maior alcance junto comigo, Paulo Travassos (foto), Silvana da Ilha e Clodoaldo Silva. Graças muito também à internet, que já se popularizara na época e fez com que a agremiação, nossos nomes e o samba ganhassem até o Japão.  

Enfim, deixe-me contar como chegamos naquela linda manhã de Sol.  

Eu já tinha três anos como compositor, escrevendo para União da Ilha, Boi da Ilha e Acadêmicos do Dendê. Fiz duas finais no Boi da Ilha e perdi, participei de duas disputas no Dendê e eliminado no primeiro corte um ano e nas quartas de final em outro e três vezes na União da Ilha, duas caindo no primeiro corte e uma no segundo.  

É... Para um cara vaidoso que sempre teve orgulho de escrever bem, não era um currículo nada legal.  

Entramos pelo ano 2000. União da Ilha e o Boi entregaram suas sinopses pro carnaval 2001, a União vinha com “A União faz a força com muita energia” e o Boi com “Orun Aye”; o Dendê só entregaria a sua quando a disputa das duas acabasse.  

Da sinopse é feito um samba-enredo, daquelas histórias contadas ali. Fizemos o da União sem muita dificuldade e começamos a nos organizar pro Boi. Éramos três parceiros, eu, Paulo e Clodoaldo (foto). Tivemos dificuldades de arrumar um quarto para completar a parceria. Aconteceram algumas recusas, chegamos a fechar com o hoje tricampeão da União da Ilha Gugu das Candongas, mas a parceria não deu certo. Chegamos à Silvana da Ilha.  

Começamos a fazer o samba a partir da minha ideia de refrão do meio que é quase o que foi para a avenida, mas encontrávamos muita dificuldade para fazer o restante. Várias reuniões e a coisa não acontecia. A disputa se aproximava e nada.  

Decidimos fazer mais uma e eu tinha o sentimento que aquela seria a última, se não saísse ali desistiríamos e tudo que eu queria era pelo menos um samba do nível dos outros dois com os quais chegamos em finais.  

Nos reunimos e nada saía de novo. Até que pela primeira e acho única vez até hoje fui “ditador” numa reunião de parceria de samba. Peguei o que tinha melhor do que os quatro fizeram, montei uma letra e falei que era aquilo e tinha que ser aquilo porque senão não rolava. Basicamente a letra é minha, de Paulo e Silvana(foto), enquanto Clodoaldo trabalhou a melodia. O samba estava quase pronto.  

Quase porque faltava um verso bom pra fechar o refrão do meio. Verso que veio quando batendo papo com Julinho, outro grande compositor insulano, ele contou que o samba do Meia Noite (sua parceria foi campeã no ano anterior) estava muito bom e que tinha um cara da parceria que parecia incorporar santo quando eles cantavam. Como ninguém falava na gente veio na mente o verso “a nossa força vem da humildade” 

Contratamos dois cantores que cresciam seus conceitos dentro do bairro, Duda e Nando Pessoa e a primeira apresentação foi ruim. Minha namorada da época, hoje mãe da minha filha Bia Michele passou mal no começo dela e tive que levá-la para o banheiro vomitar. Vi nada, só conseguia lá da privada ouvir as vozes desencontradas.  

Situação que piorou porque os dois foram contratados pelo Gugu das Candongas para defender seu samba no Porto da Pedra e tivemos que usar o Clodoaldo como cantor. As semanas foram passando desastrosas para a gente. 
 
Caímos na União da Ilha no primeiro corte pela terceira vez em quatro anos e a situação no Boi não melhorava, dando a nítida impressão que cairíamos. Por nossa sorte pela pouca quantidade de sambas na disputa, sete, só teria cortes na sexta semana - mas ela se aproximava.  

Meu aniversário chegou: 9 de agosto. 

Eu estava desanimado com o corte na União, os problemas no Boi e pela primeira vez na vida vez pensei em largar o samba. Pensei se era aquilo mesmo que eu devia fazer, se valia a pena e fiquei triste porque se tem uma coisa que odeio mais que perder é desistir - e o caminho era esse.  

Ganhei um cd do Jorge Aragão ao vivo e fiquei na sala ouvindo e pensando na vida, nos sambas... Até que começou a tocar a música “enredo do meu samba” de Jorge Aragão e Dona Ivone Lara. A música fala de um amor perdido, mas usando termos de um desfile de escolas de samba. 

E a música foi mexendo comigo. A medida que ela ia passando eu pensava que não, não era por ali. O samba não era ruim, então algo tínhamos que fazer. Poderíamos até perder, mas sem desistir. 
 
Reuni meus parceiros e falei que como não tinha mais disputa da União da Ilha era hora de ousar, gastar mesmo e sugeri contratarmos o Roger Linhares, cantor de ponta dos concursos da União da Ilha.  

Eu e Paulo Travassos, envergonhados, chegamos nele e perguntamos quanto ele cobraria. Roger deu um preço lá no alto e nos assustamos, depois ele rindo falou que não era pra perguntar quanto ele cobrava e sim dizer quanto podíamos pagar.  

Fechamos com ele por bem menos que ele falou que cobrava e o Roger mudou a melodia praticamente toda. O samba do Gugu caiu e assim Nando e Duda voltaram pro nosso samba do Boi e contratamos o Bujão. Assim sendo tínhamos pra semana marcada para cairmos quatro cantores novos. 

O samba não caiu... 

Se classificou e foi se classificando, se classificando, crescendo e chegou na final. Um dos dias mais tensos da minha vida. Coisa de sair de casa e ir caminhando para a quadra na esquina e gente gritando “vai lá garoto, vai ser campeão”. Eu ouvia e minhas pernas tremiam.  

Amigos da faculdade vieram prestigiar, quadra lotada, calor insuportável. Um deles passou mal e eles tiveram que ir embora antes de nossa apresentação.  

E chegou a hora do nosso samba.  

Roger começou a entoar o alusivo “é Nagô/essa beleza é você Nagô/que mostra um mundo de esplendor/em uma linda história de amor” e eu me arrepiava, emocionava, a quadra estava com a gente. Parecia que seria nosso.  

Na hora do resultado a parceria toda abraçada, nenhum de nós autores havia ganho samba-enredo ainda. Eu abraçado com a Michele e o presidente Eloy (foto) no palco falando que não seria ele a anunciar: o cantor da escola Ronaldo Ylê que anunciaria cantando o samba campeão. 
 Amigo...

Quem é compositor de samba-enredo sabe, essa hora é terrível. O corpo fica gelado, é um sofrimento, uma tortura, a gente só quer que acabe logo.  

E o Ylê começou a cantar o campeão. Demorei uns segundos para entender qual era porque sempre começávamos pela 'cabeça' e ele foi pelo refrão, mas na hora que entendi qual era o samba...

 ... Entendi que era o nosso e é um momento que vou levar comigo pro resto da vida e que até hoje me emociono de lembrar. Chorando muito abracei forte a Michele que também chorava e sentia as pessoas pulando em cima de mim, gritando, chorando...

Era a realização de um sonho e o sonho se realizava naquela agremiação da esquina da minha casa que eu decorava seus sambas da janela.  

Ganhamos a disputa e o samba logo ganhou repercussão graças à internet. Foi considerado um dos melhores do Grupo de Acesso A de 2001 e um dos melhores do ano no geral. Mas faltava o desfile.  

O Boi, a humilde escola da Freguesia da Ilha do Governador entrou com Sol rachando na avenida, aquele Sol de 7 horas da manhã, aquele Sol de domingo de carnaval de 2001.  

Entrou berrando: muito prazer eu sou o Boi da Ilha e hoje peço paz, saúde e felicidade. Já ouvi e li vários relatos de gente que estava saindo da Sapucaí e voltou ao ouvir o samba e ver a escola. O Boi mostrava que na Ilha do Governador não existia só a União da Ilha.  

O Boi que foi a última escola confirmada no grupo A naquele ano, com orçamento menor que das outras conseguiu um honroso sexto lugar. O samba tirou 10. O Boi estava definitivamente apresentado para o público do samba, mas essa não foi sua única conquista em 2001 - nem a nossa.  

Manhã de terça 27 de fevereiro de 2001. Eu toda hora dava 'F5' e atualizava o site do jornal O Globo para ver os premiados com o Estandarte de Ouro. O Estandarte é considerado o Oscar do samba, o prêmio que consagra e é o sonho de todo sambista.  

Demorou até que vi o vencedor de melhor samba do grupo A. Era aquele samba que estava para cair no concurso que venceu. Daquela escola humilde e guerreira. Era o samba do Boi da Ilha. O nosso samba.  

O primeiro e até hoje único Estandarte de Ouro da história do Boi da Ilha, apenas o segundo Estandarte em samba-enredo da história do bairro Ilha do Governador. O outro é “Domingo” da União da Ilha de 1977. 

Fomos ao Olimpo receber o prêmio e com microfone na mão dediquei àquela que quando perdi meu primeiro samba ficou sozinha chorando e catando as alegorias de nossa torcida para guardar. Ela chorou de novo, mas dessa vez de alegria, por ver que valeu a pena. Dediquei à minha mãe. 

E em seu caixão quatro anos depois coloquei uma foto nossa com o Estandarte.  

Onze anos quase se passaram, muitas coisas ocorreram, mas parece que foi ontem. Relembro essa vitória, essa odisseia de 2001 nesse momento que começo a busca do último sonho que me falta no samba: a conquista da União da Ilha do Governador (Nota do editor: Essa conquista veio com o samba citado abaixo).  

Que os bons fluídos de “Orun Aye” nos soprem para “De Londres ao Rio, era uma vez uma Ilha”.  

Mas respeitando a todos os amigos que estarão no concurso porque..  

..a nossa força vem da humildade!
 
 
Essa coluna de hoje é dedicada a Paulo Travassos, Clodoaldo Silva, Silvana da Ilha, Roger Linhares, Nando Pessoa, Duda, Bujão, Rolando Ylê..  

... e a Eloy Eharaldt e minha mãe Regina Villar que hoje protegem nossos passos lá de cima.
 
 
A foto acima é da final da minha 6° vitória na escola ocorrida ano passado. É, os anos se passaram e nosso caso de amor está cada vez mais forte. 

Desfilando sob aplausos da ilusão.
 
 

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