ACORDE FINAL



*Conto da coluna "Enredo do meu samba" publicado no blog Ouro de Tolo em 25/5/2013



A mesa caiu em uma grande gargalhada com o fim da história. Enfurecido Penteado disse que o fim era mentira e não tivera nada com Pai Xoxó. Maneta, que estava na mesa, jurou que era verdade e eu pedi então que Penteado contasse o verdadeiro final, qual era a segunda parte do trabalho.

Penteado desconversou e disse que não queria falar sobre o assunto. Todos voltaram a rir e irritado Penteado pediu que voltassem a tocar que era melhor. Nisso Jéssica se juntou ao grupo perguntando porque ríamos tanto.

Um olhou para o outro não sabendo o que responder até que Penteado disse que Maneta tinha caso com um Pai de Santo. Antes que cavaquinhista pudesse dizer algo Penteado “puxou” um samba da Viradouro e todos acompanharam.

O samba rolava com bastante alegria quando vi um homem de terno e bíblia na mão entrar no recinto. Acredito que fui o único que percebeu e comecei a olhar para dentro do bar. O homem foi ao segundo andar e conversou um tempo com Manolo. Apertaram as mãos e o pastor desceu. Ainda deu tempo que eu ouvisse enquanto ia embora o pastor falar baixinho “isso vai acabar”.

Um pouco depois Manolo desceu e ficou da porta olhando a roda de samba. Cheguei perto do homem e perguntei se estava tudo bem. Manolo respondeu que sim e que recebera a primeira parte do dinheiro da igreja.

Comentei que era bom pra ele e o homem respondeu que dedicou
sua vida inteira ao bar e não sabia como viveria sem ele.

Perguntei se ele tinha certeza que estava fazendo a coisa certa e Manolo respondeu que não, mas era necessário.

Ficamos ali assistindo a roda de samba enquanto Manolo me convidava para a feijoada de sábado. A feijoada da “Casa de Bamba” era uma das mais tradicionais da cidade e naquele caso a última.

Agradeci o convite e confirmei minha presença. Pensei que seria uma ótima oportunidade de reaproximar minha família e convidaria Bia e Julinha para o evento.

O samba parou para um intervalo quando uma senhora passou pela calçada. Maneta cumprimentou dizendo “oi tia”. A mulher parou, deu um beijo na testa de Maneta e conversaram um pouco. A mulher se despediu e continuou sua caminhada.

Maneta se aproximou de nós e comentou “dona Elza, pessoa maravilhosa, mãe do melhor cavaquinhista que conheci, o Betinho”.

Manolo disse “pobre Betinho” e não entendi perguntando o porque daquela expressão. Manolo falou que Betinho dava uma grande história e pedi que Maneta me contasse.

E Maneta contou a história de Betinho.

Betinho era aquilo que podemos chamar de bom filho e bom irmão. Dona Elza era baiana da Caprichosos de Pilares e quituteira de mão cheia. Ganhava a vida vendendo salgadinhos que produzia.

Betinho vendia os salgadinhos de porta em porta e no fim de semana na praia. Acordava sempre bem cedo e pegava tudo que a mãe produzira de madrugada para vender. Eram uma família pobre, mas honesta, além de muito queridos.

Elza, como já disse era baiana da Caprichosos de Pilares, a chefe da ala e Betinho cresceu dentro da agremiação aprendendo a admirar nomes como Carlinhos de Pilares, Fernando Leandro, Jackson Martins, Zé Paulo Sierra e tantos grandes nomes que explodiram para o sucesso através da escola de Pilares.

Ainda criança aprendeu a arte do baticumbum começando com caixa e logo passando para o tamborim. Era uma as principais promessas da bateria da Caprichosos, mas seu alvo de paixão era outro.

Adorava o som do cavaquinho. Ouvia os mestres dedilhando, transformando tudo aquilo em harmonia e queria ser um deles, mas não tinha dinheiro para comprar um cavaco.

Ganhou de presente de Natal do cavaquinhista oficial da escola, aquele que se transformou no dia mais feliz de sua vida. Aprendeu com afinco e rapidamente já conseguia tocar em rodas de samba.

Dividia sua vida entre a escola, que sua mãe fazia questão que continuasse, o trabalho vendendo salgadinhos e o cavaco. Dormia com o instrumento na cama e sonhava em ser o cavaco oficial da Caprichosos um dia.

Aos poucos começou a tocar nas disputas de samba da escola e mostrando seu talento a ganhar dinheiro. Entrou para um grupo de pagode de meninos da área e dessa forma passou a ajudar mais ainda em casa melhorando a situação financeira da família.

Aos poucos foi ganhando a confiança da direção da escola até que o diretor de carnaval lhe chamou para conversar.

Nervoso perguntou se fizera algo de errado e o diretor respondeu que não, muito pelo contrário e perguntou se ele queria fazer parte do carro de som da agremiação, ser um dos cavaquinhistas da escola.

Emocionado Betinho abraçou o diretor e respondeu que aceitava. Era a realização de seu sonho.

Tocou com a escola na avenida pensando em tudo que passara para chegar até ali. Enquanto chorava na Sapucaí seus dedos passavam pelas cordas do cavaco e sustentava o canto dos intérpretes e da escola. A Caprichosos fez um belo desfile e além de tudo o menino mostrou ser pé quente.

Mas o carnaval acabara e ele tinha que continuar ajudando em casa. Betinho além dos salgadinhos começou a fazer um curso profissionalizante como eletricista.

O grupo de pagode continuava também e faziam shows praticamente todos os fins de semana. O grupo era formado por rapazes bonitos, talentosos e não demorou que tivessem fã clube. No fim dos shows cada um saía com uma garota pela mão pra se divertir e quase nunca repetiam as meninas.

Após um show um homem , se apresentou como diretor da Unidos da Tijuca e perguntou se ele não queria ser cavaquinhista da escola. Betinho agradeceu, mas rejeitou falando de seu amor por Pilares, mas o homem fez a oferta financeira mesmo assim e era muito boa.   

Indeciso Betinho foi para casa e contou para a mãe da oferta. Dona Elza mandou o filho fazer o que o coração mandasse, mas que se lembrasse que era um profissional.

Betinho se deitou. Em seu quarto tinha pôster do grande cantor Jackson Martins e perguntou ao pôster o que fazer. Betinho fechou os olhos e pensou “Amo a Caprichosos, mas tenho que pensar no meu futuro”.

Dias depois o rapaz chorando se despediu da Caprichosos e integrou o carro de som da Unidos da Tijuca.

Betinho não trabalhava mais vendendo salgadinhos, não precisava. Ganhava um bom dinheiro com o grupo de pagode e na Tijuca e dessa forma além de ajudar em casa esbanjava comprando roupas de grife e tênis da moda.

O grupo se preparava para gravar seu primeiro cd e depois de fazer um show a bebida rolou solta no camarim. Betinho beijava uma fã na boca quando um integrante do grupo chegou pra ele e perguntou “vai ai?”.

Era cocaína.

Betinho, morador de comunidade e que sabia como eram essas coisas recusou dizendo “não ser a dele”, mas a pessoa insistiu e ele acabou aceitando.

E não aceitou apenas naquela vez. Aceitou muitas e muitas vezes depois e quando percebeu já não vivia sem começando assim um drama.

Betinho usava a droga diariamente e as pessoas começaram a perceber que ele estava diferente. O cavaquinhista emagreceu, andava irritadiço e reclamava de sempre estar sem dinheiro. Tocou com a Tijuca na avenida, mas quando começaram os ensaios para carnaval seguinte foi demitido devido às faltas.

Também foi demitido do grupo de pagode porque faltou shows e brigou com um componente do grupo, justo o que lhe ofertou cocaína. Já era nítido que Betinho tinha problemas graves e só ele não percebia.

Procurou emprego na Caprichosos, mas os dirigentes vendo seu estado disseram que não poderiam lhe empregar, mas podiam ofertar ajuda. Recusou. Passava dias sumido, fora de casa e comprava cada vez mais drogas com o pouco dinheiro que lhe restou.

Até que chegou ao fundo do poço. Pegou cocaína fiada na boca e não pagou tomando uma surra.

Betinho parou no hospital em coma e ao acordar viu sua mãe ajoelhada e com os braços na cama rezando. Ali o cavaquinhista entendeu o que ocorria. Com dificuldades passou a mão no cabelo da mãe e pediu ajuda.

Betinho saiu do hospital para recomeçar. Com ajuda das diretorias da Unidos da Tijuca e Caprichosos de Pilares Betinho foi internado e depois de alguns meses saiu da clínica recuperado.

Uma grande festa foi feita pro rapaz na quadra da Caprichosos e durante a festa o diretor de carnaval anunciou a volta de Betinho ao carro de som. Emocionado o rapaz pegou o cavaco e acompanhou os cantores da agremiação nos sambas da escola.

Voltou também ao curso de eletricista e uma noite voltava para casa quando os traficantes lhe cercaram e perguntaram se já tinha o dinheiro para pagar a dívida.

Betinho respondeu que não, mas iria arrumar pedindo paciência aos homens. O chefe do tráfico respondeu “perdeu playboy” e executaram Betinho com mais de quarenta tiros.

Betinho, menino bom, trabalhador, teve um desvio e pagou caro por ele. Seu corpo foi velado na quadra da Caprichosos de Pilares com bandeira da escola e da Unidos da Tijuca sobre o caixão. Dona Elza fortemente medicada perguntava “por que”.

Vai ver dona Elza que Jackson Martins e Carlinhos de Pilares precisavam de um cavaquinhista no céu.


E lá chegou um dos melhores.



ENREDO DO MEU SAMBA (CAPÍTULO ANTERIOR)


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