TODO AMOR QUE HOUVER NESSA VIDA
*Conto publicado na coluna "O buraco da fechadura" do blog Ouro de Tolo em 1/12/2012
O amor pode ser uma coisa muito boa, o perfume que exala
de nossa alma uma doce essência, como pode ser uma casca de ferida que
arrancada pode trazer toda nossa dor a tona. É o bem, o mal e poder ser de
todas as formas.
Serginho desde pequeno sabia que era diferente. Filho
caçula entre quatro irmãos, três mulheres e ele, Serginho nunca curtiu muito
jogar bola ou praticar brincadeiras de menino. Preferia sair para brincar com
suas irmãs e invariavelmente brincava de bonecas com elas. Era sempre o pai da
família, o médico..era o bendito fruto entre as mulheres.
Cresceu assim e o pai, senhor Arlindo não gostava.
Serginho não se interessava por nenhuma atividade masculina. Pegou o filho e o
levou na zona escolhendo a menina mais bonita para lhe tirar a virgindade.
Algum tempo depois Serginho saiu do quarto sorrindo e o pai tinha a certeza que
o rapaz cumprira sua missão. Mas nada..depois Arlindo ficou sabendo que
Serginho apenas bateu papo com a moça no quarto e trocou receitas de maquiagem.
Arlindo deu uma surra em Serginho e exigiu que ele arrumasse
uma namorada. O menino que não sabia o que acontecia com ele e porque era
diferente acabou sucumbindo as exigências do pai e engatou namoro com uma amiga
do colégio Ludmila.
Arlindo finalmente suspirava aliviado por ver o filho “bem
encaminhado” enquanto Serginho começava a descobrir quem realmente era.
Frequentando a casa de Ludmila sentia-se atraído por seu irmão. Ele não sabia o
porque, aquilo o atormentava, deixava confuso, não queria ter aqueles
sentimentos.
Mas não teve jeito, era gay e não podia fugir disso.
Com o irmão de Ludmila teve sua primeira experiência
sexual, mas o rapaz depois ameaçou Serginho contando que se ele falasse para
alguém o que aconteceu lhe matava. Dessa forma o menino sufocou seus
sentimentos e vontades ficando noivo de Ludmila.
As famílias comemoraram, Arlindo estourou champanhe e nem
se lembrava mais do passado de Serginho. Todos felizes, menos um, menos
Serginho.
Que depois foi afogar as mágoas em um bar gay da zona Sul
do Rio de Janeiro.
Arrumou um emprego tradicional e seguiu os trâmites de
homem heterossexual. Casamento marcado com Ludmila não lhe restou mais nada
além que subir a altar.
Arrumando-se para ir a igreja na casa dos pais Serginho
era a imagem da desolação quando sua mãe apareceu e perguntou se estava tudo
bem. Serginho suspirou respondendo que sim e a mãe frente a frente com o filho
pegou em seu rosto e disse “não minta para mim”.
Serginho desviou o olhar e respondeu que não mentia. Sua
mãe contou que ele não precisava esconder nada, que não era boba e sabia que o
filho não queria aquele casamento nem aquela vida.
Serginho não sabia o que dizer. Sua mãe se encaminhou para
a porta e disse “Não me importa se você gosta de homem ou de mulher, apenas que
seja feliz”.
Saiu e deixou o filho sozinho para refletir.
Arrumado para o casamento saiu e foi caminhar pela praia.
Seu celular tocava desesperadamente enquanto ele sentado na calçada olhava o mar
e as ondas batendo nas pedras. Teria que decidir o que fazer, sua vida e seu
destino.
Muito pensou e decidiu se encaminhar a igreja. Chegando ao
local encontrou todo mundo desesperado com sua demora, o carro da noiva dando
voltar entorno da igreja esperando sua chegada e seu Arlindo vermelho de raiva.
Mas casou, seguiu o protocolo e no fim quase todos estavam
felizes na festa, menos ele.
Casou jovem, com apenas vinte anos e assim seguiu sua vida
de casado. Ludmila trabalhando como professora, ele em um escritório de
contabilidade. Não tiveram filhos nesse período mesmo tendo cobrança de seu
pai. Não era feliz, mas levava sua vida como dava.
Com dois anos de casado Serginho estava em seu escritório
quando o celular tocou. Atendeu e era sua mãe desesperada porque o pai tinha infartado.
Correu para o hospital e encontrou a todos chorando na
sala de espera. Ficou lá abraçado com a mãe até receber a notícia que ninguém
queria.. Seu Arlindo morrera.
No cemitério vendo o caixão do pai descer a sepultura sua
irmã mais velha colocou a mão em seu ombro e disse do último desejo de seu
Arlindo, que ele fosse pai. Serginho ouviu a tudo calado, sem esboçar nenhuma
reação.
Depois do enterro foi andar pelo calçadão pensando em sua
vida, no pai, nos seus desejos reprimidos e tudo que deixara pra trás. Tinha
apenas vinte e dois anos, muito para viver e não queria mais ser infeliz, queria
seguir suas vontades, anseios, mas não sabia como, o que fazer.
Andando viu uma boate gay, que frequentava antes de casar.
Lá ele conhecia rapazes como ele e via show de transformistas. Ele gostava de
ver aqueles homens vestidos como mulheres apresentando show, verdadeiros artistas que não tinham
vergonha de se expor como realmente eram.
A vergonha que ele tinha, que o seu pai impôs.
Foi ali que Serginho se tocou que não precisava mais ter
uma vida falsa, não tinha mais que agradar seu pai. Lembrou-se das palavras da
irmã no enterrou, olhou para o alto e disse “sinto muito pai, mas agora eu vou
atender aos meus desejos”.
Voltou para sua casa e chamou Ludmila para conversar.
Contou a esposa que não aguentava mais aquela vida de mentira, não era feliz e
queria se separar. Ludmila se desesperou, tentou de todas as formas convencer o
marido do contrário, mas em vão. Na hora dele sair ela gritou perguntando se
tinha outra mulher no meio. Serginho com a mão na porta virou para a esposa e
respondeu “não tem mulher, tem eu”.
Foi na casa da mãe e contou que estava se separando pra
começar nova vida. Recebeu apoio e desejo de boa sorte. Alugou um apartamento
na Lapa e decidiu começar sua vida do zero.
Com o tempo a vida de Serginho mudou completamente. Largou
o emprego tradicional e colocou sua verdadeira vocação pra fora. Era um artista
e foi trabalhar em uma casa de shows voltada para turistas imitando a Madonna.
Sim, show de transformismo como ele sempre admirara.
Rapidamente se tornou a principal atração da casa, sua Madonna era considerada
perfeita e Serginho conhecia o que era felicidade.
Mas faltava uma coisa.
Queria ter um diploma. Como casara cedo e teve que ir
trabalhar largou os estudos, mas queria terminar a faculdade. Com vocação para
artes tentou o vestibular para cinema e passou.
Pronto agora estava tudo completo. Livre das amarras do
pai conseguia ser como queria.
De dia estudava, de noite fazia shows, assim era a nova
vida de Serginho que fez amizades na faculdade. Bem articulado, simpático, bonito
Serginho era o centro das atenções no curso que também tinha gente que lhe
chamava atenção.
Logo no primeiro dia de aula Serginho fazia anotações no
caderno quando um rapaz se aproximou e perguntou se a cadeira ao lado estava
vazia. Serginho levantou o rosto pra dizer que sim e na hora seu coração gelou.
Viu um rapaz bonito, sorridente olhando pra ele e em
pensamento Serginho disse “é ele”. Seu coração sabia, nunca sentira nada assim.
O rapaz sentou e cumprimentou Serginho dizendo que se chamava Jofre.
Fizeram amizade imediata fazendo parte da mesma turma.
Viraram os melhores amigos, dupla em voley de praia, saindo sempre pra tomar um
choppinho e Jofre fez de Serginho seu confidente contando sua vida e suas
confusões com as mulheres.
Jofre era mulherengo, uma mulher por dia e contava ao
amigo suas aventuras. Serginho não contara sobre sua homossexualidade nem como
ganhava a vida e sofria com aquela situação. Sentia-se amarrado como era junto
a seu pai.
Uma noite Serginho estava de folga quando a campainha
tocou. Era Jofre com duas mulheres, uma pizza e uma garrafa de uísque
perguntando se podia entrar. Serginho engoliu em seco e respondeu que sim.
Entraram e ficaram batendo papo, bebendo e se divertindo. Em determinado
momento as meninas foram ao banheiro e Jofre quis conversar com o amigo.
Perguntou o que Serginho achara da morena e ele respondeu
que era bonita. Jofre sorriu e deu um tapinha no ombro do
amigo dizendo que era sua.
Serginho fingiu alegria, levou o copo de uísque a boca e Jofre
perguntou se podia ir para o quarto de hóspedes com a loira. Serginho gelou e
não conseguia dizer nada. Jofre botou a mão no rosto de Serginho e implorou que
o amigo deixasse. Serginho com a mão de seu amado no rosto parecia flutuar, mas
se conteve e respondeu que sim. Jofre deu um beijo no rosto do amigo e disse
que lhe devia uma.
As meninas voltaram do banheiro e Jofre chamou a loira
para ir ao quarto. A morena sentou ao lado de Serginho e comentou que nem sabia
seu nome. Ele respondeu e ela disse que se chamava Dayse.
Serginho respondeu continuou bebendo. Dayse olhava para o
rapaz e comentou “você é afim dele né?” Serginho assustado virou para a moça
que continuou “só ele não percebe”.
Conversaram a noite toda e no fim Jofre e a loira saíram
do quarto e sentaram no sofá com Serginho e Dayse. Jofre perguntou ao amigo
como fora a noite e ele respondeu “maravilhosa”.
Assim prosseguia a vida e a amizade entre os dois rapazes.
Jofre perguntava o que Serginho fazia de noite que estava com quase todas
ocupadas e ele respondia “trabalho” Jofre queria saber que trabalho era e
Serginho desconversava.
Serginho vivia como ele queria, mas as coisas já não
estavam tão legais como no início. Estava completamente apaixonado, louco por
Jofre e não sabia o que fazer. Jofre era um daqueles heterossexuais clássicos,
mulherengo, machão, era capaz de encerrar a amizade com Serginho se soubesse
que era gay. Serginho sofria aquele amor impossível, queria esquecer Jofre.
Mas não conseguia. Um dia na faculdade Jofre contava entusiasmado que conhecera uma mulher maravilhosa e sairia
com ela de noite perguntando ao amigo se ele tinha alguma dica de local para
irem. Serginho desolado e aborrecido com aquela história respondeu que não,
Jofre ignorou e continuou falando da beleza e gostosura da mulher com a qual
sairia.
De noite Serginho foi para a casa de show. Triste se
maquiava e pensava em Jofre quando avisaram que era hora dele ir ao palco. Subiu
ao palco como Madonna começando a dublar “like a virgin” quando ouviu um grito
“Serginho!!”.
Quando olhou para a plateia era Ludmila, sua ex mulher,
pior, acompanhada de Jofre. Era Ludmila a mulher que ele tanto falara.
Serginho desesperado desceu do palco para falar com Jofre
e Ludmila se meteu na frente. A mulher socava o ex perguntando se era para aquilo
que ele tinha lhe deixado enquanto Serginho via Jofre ir embora sem poder fazer
nada.
No dia seguinte Serginho tentou falar com Jofre em vão, o
rapaz o ignorou, foi assim durante toda a semana até que Serginho não
aguentando mais de tristeza parou de frequentar a faculdade.
Trancou a matrícula, largou os shows e se entregou a
depressão. Não saía mais de casa. Nunca fora tão infeliz na vida, nem nos
tempos que era mandado pelo pai.
Um dia estava deitado e ouviu baterem na porta. Botou o
travesseiro sobre a cabeça, não queria atender, mas a batida era insistente e
resignado ele levantou pra ver o que era.
Abriu a porta e deu de cara com Jofre. Olharam-se um tempo
e Jofre entrou, bateu a porta e deu um beijo apaixonado em Serginho.
A essência do perfume, a casca de ferida, o que vale a
pena é amar.
Todo amor que houver nessa vida.
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