O CARRO VERMELHO
* Conto publicado no blog Ouro de Tolo em 16/2/2013
Todos
riram da desgraça do sequestrador e até onde eles sabiam o cara nunca mais
praticara crimes na vida. Meu pai rindo comentou que a sogra do Dr Bezerra era
uma bela punição para todos os meliantes.
Rindo
bebi mais um gole de cerveja e lembrei de minha sogra, contei que ela era
parecida com a sogra do Dr Bezerra e meu pai contrariado respondeu que não era
bem assim.
Perguntei
“Como assim não era? A mulher é o cão!!”. Meu pai irritado respondeu que não e
que dona Elza era uma boa pessoa.
Coloquei
uma batata frita na boca e falei que bem que todos desconfiavam que meu pai
“pegara” dona Elza. Meu pai irritado demais mandou que eu respeitasse minha
ex-sogra e a memória de minha mãe.
Retruquei
que não havia falta de respeito nenhum, minha mãe já morrera e meu pai era um
homem desimpedido então nada proibia. Completei que muito da personalidade da Bia,
minha ex-mulher, devia vir da mãe “filha de surucucu, surucucu é”.
Meu pai
respondeu que Bia era um doce de pessoa e retruquei que eu devia ser diabético,
evitar doces e perguntei se meu pai sabia que ela estava namorando. Meu pai
sorriu e não só confirmou que sim como disse “é um bom rapaz”.
Pronto,
me emputeci. A galera vendo o clima de tensão na mesa logo
pegou cavaco, surdo e propôs que começasse uma roda de
samba.
Levantei e disse “vou ao banheiro” e saí com a rapaziada preparando o
samba.
Enquanto
estava no mictório pensava na desgraçada da Bia e seu novo namorado. Na pensão
que tinha que pagar a nossa filha Ana Julia para que a Bia desfrutasse com o
“novo garotão” e ficava mais puto ainda. Almeidinha urinava ao meu lado e
comentou “você ainda gosta dela”.
Perguntei
se ele ficara maluco e o garçom respondeu que não, eram anos trabalhando
naquele bar, ouvindo e conhecendo histórias e sacramentou “o garçom é um
psicanalista que serve cerveja”.
Agradeci
a “consulta grátis” e emendei “Freud, deixa um chopp lá na mesa pra mim”. Almeidinha
colocou a mão no meu ombro e disse “se gosta, corra atrás dela”.
O garçom
saiu do banheiro, pensei alguns segundos e gritei “porra Almeidinha, você pegou
no meu ombro sem lavar as mãos!!”.
Saindo do
banheiro ouvi o som da batucada e me sentei. Meu pai bebia um chopp e me disse
“o Almeidinha trouxe pra você e peguei, pede outro”.
Pedi e a
rapaziada me apresentou ao Baltazar, sujeito que chegara há pouco na mesa.
Continuaram cantando sambas antigos, quando aquele ex-harmonia da Unidos da
Ponte que citei disse “vamos cantar uma música que não é samba em homenagem ao
Baltazar”.
Deu o tom
ao cavaquinhista e mandou “meu carro é vermelho, não uso
espelho pra me pentear”. A galera caiu na risada, Baltazar ficou puto e eu nada
entendi. Perguntei a meu pai qual era o problema e ele me contou.
Baltazar
cabelinho, apelido ganho devido ao cuidado que sempre teve com o cabelo, é
compositor de samba-enredo dos bons ganhador de samba em escolas como Vila
Isabel, Unidos da Tijuca e São Clemente. Dizem que é dono de vários outros sambas
do carnaval e tem um “escritório” de samba-enredo, isto é, compõe sambas em
diversas escolas para outros assinarem, mas Baltazar sempre negou essas
histórias.
Renomado,
querido, idolatrado Baltazar sempre passou uma ótima imagem e principalmente de
credibilidade, isso fazia que ele recebesse vários convites durante o carnaval
para ser julgador de desfiles por todo o país.
Naquele
ano especialmente Baltazar ansiava pelo convite. O homem comprou uma casa nova,
teve gastos e estava na pindaíba sem um tostão no bolso e via um convite como a
solução mais
rápida já
que ele tirava pelo menos uns cinco mil reais julgando carnaval.
E o
convite não chegava, o carnaval se aproximava e ele ficava cada vez mais
preocupado. Até que um dia o telefone tocou.
Era seu
amigo Reginaldo, aquele que sempre descolava convite para que ele julgasse.
Reginaldo ligou marcando uma choppada com o amigo.
Marcaram
no “Casa de bamba” e ficaram em silêncio esperando que Almeidinha servisse.
Quando o garçom se distanciou Reginaldo brindou
com o amigo e disse “agora podemos falar”.
Baltazar
não entendia o porque de tanto mistério e ansioso perguntou se tinha algo pra
ele. Reginaldo respondeu que sim e Baltazar abraçou o amigo agradecendo.
Constrangido
Reginaldo se desvencilhou e sem olhar os olhos do amigo contou que o cachê era
de dez mil reais. Baltazar agradeceu e comentou que era uma grana suficiente
para se segurar até receber os direitos de arena dos sambas que venceu.
Direito
de arena é um dinheiro que o compositor recebe geralmente um mês depois do
carnaval equivalente a venda de ingressos na Sapucaí e direito de transmissão.
Muito
constrangido Reginaldo lembrou Paulinho da Viola e comentou que nesse caso
tinha um “porém, ah porém”. Baltazar não entendeu e em seu ouvido Reginaldo
contou que o carnaval “estava encomendado”.
Baltazar
nada entendeu e Reginaldo explicou “o carnaval já tem campeão, é a Unidos do
Vermelho e Branco, escola nova que tem um bicheiro por trás e pagou um milhão
pra liga pra ser campeã”.
Baltazar
comentou que não se metia em nada roubado e agradeceu o convite recusando.
Reginaldo mandou que o amigo parasse de besteira que aquela atitude não enchia
barriga de ninguém e ele estava precisando. Baltazar já se levantava pra ir
embora quando Reginaldo emendou “cada jurado vai ganhar um carro”.
Aquela
notícia balançou Baltazar que mesmo assim foi embora.
Em casa o
compositor contou a história para a mulher e tomou uma bronca “seu imbecil,
como assim você não aceitou? Sabia que tem que pagar colégio? Ta em época de
matrícula como André e Cláudio vão estudar??”.
Baltazar
ainda tentou retrucar, mas sua esposa emendou “Nem é aqui no Rio é em outra
cidade e se a tal escola tem bicheiro e dá um milhão pra ganhar deve usar
dinheiro pra cacete pra fazer um grande desfile, ganharia por bem ou por mal”.
Baltazar
pensou bem e ligou para Reginaldo aceitando o convite. A mulher mandou que ele
perguntasse a marca do carro, Baltazar perguntou e Reginaldo respondeu que não
sabia, apenas sabia que era vermelho da cor da escola.
Baltazar
viajou para a cidade no carnaval, a cidade de Trololó do Oeste que ficava a dez
quilômetros do nada e vinte quilômetros de coisa nenhuma. Parecia uma cidade
fantasma, pequenina e Baltazar se perguntava como aquilo ali poderia ter carnaval.
Mas tinha
e Baltazar foi para o local de desfile, subiu até a cabine e foi designado para
julgar harmonia. Era um jurado por quesito, dez quesitos então dez carros
vermelhos seriam distribuídos.
Os
desfiles começaram com escolas simples, uma pior que a outra. Baltazar bocejava,
quase dormia, mas tinha o consolo de que pelo menos a Unidos do Vermelho e
Branco “trucidaria” as co-irmãs. Chegou a hora de seu desfile e ele já preparou
a caneta pro dez.
Começou o
desfile da agremiação campeã e o que passou por seus olhos assombrou Baltazar.
A escola era péssima, horrível, horrorosa, parecia um bloco de bêbados
conseguindo ser a pior de todas.
Alegorias
caindo aos pedaços, fantasias se desmanchando, bateria errando tudo, cavaco
desafinado, porta bandeira tomando tombo, cantor errando o samba. Os julgadores
constrangidos se olhavam sem saber o que fazer. Um dos julgadores olhou para os
outros e estendeu as mãos como se fizesse sinal de paciência e falando “fazer o
que? É dez”.
Baltazar
abismado olhava o desfile quando um buraco gigantesco entre alas começava a
abrir a sua frente. De propósito deixou cair a caneta no chão e ficou
procurando por minutos até que o jurado sentado ao lado contou que tinham
resolvido o problema, ele se sentou e deu o dez.
O desfile
da escola acabou e todos respiraram aliviados. Faltava apenas uma escola e já
tinham visto tanta coisa ruim que não custava nada ver mais uma e aquele
pesadelo acabar, foi a vez da Unidos do trololó.
E aí
aconteceu o drama. A escola estava linda. Alegorias perfeitas, fantasias de bom
gosto, bateria com ótima cadência, excelente samba-enredo, tudo perfeito. As
arquibancadas deliravam, cantavam o samba, gritavam “é campeã” e os jurados não
sabiam o que fazer.
A escola
passava compacta, linda, aguerrida na frente de Baltazar que apenas pensava
“fud...”. Olhava para os lados e os jurados atônitos não sabiam o que fazer.
Não tinha o que fazer, não tinha como descontar pontos daquela escola.
A cagada
estava feita.
O casal
de mestre-sala e porta bandeira começou a se exibir pro jurado do quesito que
estava ao lado de Baltazar e de repente Baltazar levantou e deu um grito
dizendo “A bandeira enrolou!! A bandeira enrolou!!”.
Todos os
julgadores olharam para ele que continuou “A bandeira enrolou que eu vi, vai
logo porra, desconta ponto do casal!!”. Pegando a mão do julgador e o
conduzindo pra anotar 9,5.
Pois bem,
ninguém sabe até hoje se a bandeira enrolou mesmo ou foi invenção do Baltazar.
A verdade é que as duas escolas tiraram 10 em tudo, mas a Unidos do Vermelho e
Branco foi campeã graças ao 9.5 que a Unidos do Trololó levou em mestre-sala e porta
bandeira.
Alguns
dias depois Reginaldo bateu na porta de Baltazar entregando o cheque de dez mil
reais e dizendo “bom trabalho”. Baltazar perguntou pelo carro e Reginaldo
apontou para o lado de fora.
O carro
estava lá, vermelho, lindo.
Baltazar
pegou a chave, se despediu do amigo e foi com a família passear com carro. Ao
voltarem entraram em casa debaixo de muita chuva e enquanto fechava a porta
ainda deu tempo de Baltazar ver um raio acertar uma árvore e ela cair em cima
do carro.
Perda
total.
Desolado
Baltazar foi no dia seguinte ao banco sacar o dinheiro e o atendente
disse que o cheque não tinha fundos. Baltazar sem carro,
sem
dinheiro, desorientado ligou várias vezes para Reginaldo e nada do “amigo”
atender.
Só restou
pegar um ônibus e voltar pra casa pensando no que diria pra esposa. Ao lado no
banco do ônibus um homem lia o jornal e ria, gargalhava. Curioso Baltazar
perguntou o que era e o homem respondeu.
“Você
acredita que teve suborno no carnaval de Trololó do Oeste? Um cara que se dizia
bicheiro fez acordo com a liga, os jurados, pagou todo mundo em cheque só que
eles não tinham fundo e nem bicheiro ele era. Era carteiro e se mandou da
cidade, como tem otário no mundo!!”.
Baltazar
com sorriso amarelo respondeu “é mesmo” e a viagem de ônibus prosseguiu sem
Baltazar saber que os carros eram roubados e a polícia estava na porta da sua
casa.
E na
ganância do carro Baltazar entrou de carona na roubada.
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