ABRINDO OS TRABALHOS

*Conto publicado na coluna "Enredo do meu samba" no Blog Ouro de Tolo em 29/12/2012


É manhã no Rio de Janeiro. Mais um carnaval passou e com ele surgiram as cinzas. Ainda se ouve um tamborim aqui ou ali. Pessoas embriagadas bambeiam pelas calçadas cantando “oh abre alas que eu quero passar”, outras fantasiadas dormem com a cara no chão enquanto cachorros lambem seus rostos.

O carnaval passou, mas o verão ainda não. O Rio de Janeiro, fevereiro e março, o Rio quarenta graus ferve. As praias lotadas aproveitam o fim da estação mais brasileira de todas. Homens jogam futvoley, mulheres se bronzeiam em micro biquínis, crianças brincam nas areias da cidade maravilhosa.

E ainda se respira um pouco carnaval. Estamos naquele período entre a quarta-feira de cinzas e o sábado das campeãs. Nos barracões as escolas agraciadas refazem seus carros. Nos grandes condomínios, hotéis de luxo ou favelas o desfilante orgulhoso cuida para que sua fantasia esteja tão linda quanto no desfile.

Seja sexta colocada, quinta, quarta, terceira ou vice-campeã o orgulho é o mesmo, de voltar a pisar no templo sagrado do samba. Pra campeã mais orgulho ainda, o de colocar a faixa de vencedora do carnaval no peito.

É um trabalho árduo amigo, de muito sacrifício. Pra muita gente o carnaval dura apenas quatro dias, mas para algumas pessoas o carnaval é o ano inteiro. Assim que o vento leva as cinzas as escolas de samba já começam a tratar do enredo do ano seguinte. Em agosto muitos já estão dando seu suor, seu sangue durante horas e horas em barracões e ateliês para que tudo saia certo, para vermos

o maior espetáculo da Terra.

São apaixonados pelo carnaval, por suas escolas de samba, por aqueles oitenta minutos na super escola de samba da Sapucaí ou mesmo quarenta minutos da Intendente Magalhães. Que vivem carnaval o ano inteiro, que respiram o carnaval como suas vidas.

Carnaval..Escolas de samba..Pra muita gente isso é coisa muito séria. Escolas, muitas quase centenárias, que exalam cultura, conhecimento, formação de caráter. Muitas vezes uma escola de samba é escola da vida, ensina, educa, cria. Muitos desses que chegaram pequenininhos ao samba só observando os bambas com seus instrumentos, vozes, rodopios e criação com o tempo tomam seus lugares e perpetuam a história.

Nascem, crescem, envelhecem e passam seus “anéis de bamba a que mereça usar”. O samba é uma história construída por heróis. Heróis que nunca pegaram em armas, mas pegaram em surdos de marcação, tamborins, caixas, microfones, bandeiras, rodopiaram na arte de um mestre-sala ou vigor de uma baiana e encantaram multidões.

E essas pessoas têm um lugar pra se reunir, ou melhor, tinham.

Um bar de dois andares, meio que caindo aos pedaços, de mais de sessenta anos por quais passaram muitos dos maiores sambistas desse país. Teve seus dias de glória, o apogeu como adoram dizer alguns carnavalescos, mas mesmo não sendo mais tão suntuoso ainda cultiva sua tradição e charme.

Em um canto do Estácio, o berço do samba, existe ou existia o “casa de bamba”. Ponto de encontro de sambistas da velha e nova geração.

Na casa os muitos quadros espalhados contavam a saga do carnaval carioca. Algumas engraçadas, outras nem tanto, mas cada uma ajudava a contar um pouco do que era nossa folia. Traziam gargalhadas, saudades, amarguras, motivos para mais uma cerveja e começo de batucada.

Naquela manhã não era diferente. A fila já era grande na frente do bar esperando que ele abrisse. O termômetro ainda de manhã marcava quase quarenta graus. Era o tipo de calor que o pastor deixava as irmãs irem ao culto de biquini e os freqüentadores já reclamavam da demora da abertura. Queriam começar os trabalhos com uma gelada.

Quem se dava bem com isso era o Feitosa, o dono da banca de jornal. Enquanto o bar não abria o homem vendia jornais que falavam da polêmica do resultado do carnaval. Muita gente discordou do resultado e desconfiava de marmelada. A campeã daquele ano desfilou com um carro a menos pelo mesmo quebrar na entrada da avenida. A maldição do setor 1 e a promessa era de muitas vaias no sábado das campeãs.

A maioria xingava a escola com todos os nomes impublicáveis possíveis e um homem tímido tentava defendê-la quando chegou o Almeidinha, garçom do bar.

Os homens reclamavam pelo atraso de Almeidinha que pediu desculpas e abriu o estabelecimento. O garçom abriu e os cerca de dez homens que estavam na fila foram sentando nas mesas e pedindo cervejas e aperitivos enquanto discutiam o resultado do carnaval.

Almeidinha serviu a todos enquanto os outros garçons foram
chegando. O bar já estava cheio quando o dono do bar chegou.

Manolo, um espanhol na altura dos sessenta anos de idade chegou com cara de poucos amigos e não queria muita conversa com ninguém. Foi para o balcão ver algumas anotações e comentou com Almeidinha que era pra cobrar todos os fiados.      

Bem, no começo eu falei que o samba tem ou tinha um local próprio, explicarei agora o porque.

Meu nome é Pedro de Oliveira e meu carnaval fora uma porcaria. Separei-me a pouco de minha mulher e achei que seria uma boa viajar na folia de Momo. Fui para Búzios.

O problema é que muitos pensaram como eu. Peguei mega engarrafamentos na ida e na volta. A casa era uma droga, não tinha água, faltou luz, a praia cheia de gringos e lá minha filha ligou toda contente para contar que a mamãe estava namorando.

Voltei furioso antes mesmo do carnaval acabar e passei a terça-feira gorda comendo pipoca, bebendo cerveja e vendo filmes do Chuck Norris. Decidi que dormiria até segunda-feira, quando voltaria ao trabalho, mas antes disso me ligaram.

Era do jornal que eu trabalhava e queriam que eu fizesse uma matéria sobre um bar que fecharia e viraria igreja evangélica. Expliquei que isso hoje em dia era a coisa mais comum da cidade, até a Candelária em pouco tempo seria uma Universal, mas o meu chefe insistiu devido a importância do local.

Dessa forma saí naquele calor senegalês em direção ao Estácio ver
o tal bar. Dessa forma parei na “casa de bamba”.

Cheguei no bar, me apresentei como jornalista e perguntei a Almeidinha sobre o dono, pois faria uma matéria com ele. Os caras que estavam sentados em uma mesa comentaram “Ih, olha o Manolo ficando importante”, “na certa querem a opinião dele sobre a roubalheira do carnaval” e um senhor disse que foi diretor de harmonia da Unidos da Ponte e se eu quisesse podia entrevistá-lo.

Cheguei em Manolo, apertei sua mão me apresentando e comentei que queria fazer uma matéria com ele sobre a venda do bar para a igreja Universal.

Os garçons e freqüentadores do local ouviram o que eu disse e entraram em polvorosa. Rapidamente se aproximaram de mim me olhando como se eu fosse um ET.

Perguntei qual era o problema e todos numa grande confusão e gritaria perguntaram a Manolo o que ocorria.

O dono do estabelecimento confirmou a informação e disse que na noite anterior acertara a venda do bar para a igreja. O bar vinha tendo prejuízo e uma dívida enorme foi produzida. Não havia outro jeito.

Um “silêncio ensurdecedor” tomou conta do bar. O clima era de uma escola rebaixada após a apuração. Senti-me como um ser malvado que contava a crianças no Natal que Papai Noel não existia.

Perguntei a Manolo se poderia fazer a matéria com ele e o homem
respondeu que sim.

Aos poucos os freqüentadores voltavam a sentar naquele silêncio e os garçons a servir. Manolo virou para mim e pediu que fosse ao segundo andar com ele.

Dessa forma começava meu contato com o mundo do samba. Justo no fim de parte de sua história, mas que me traria personagens que dariam um livro.

























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