ERA DA VIOLÊNCIA 2: CAP VI - ESSA TAL LIBERDADE
Enfim livre. Mas a liberdade por
si só não bastava, algumas coisas tinham que ser resolvidas. Onde iria viver?
Do que iria viver? Por quê Assassino com cara de bebê, que foi um cara que eu
ajudei quis me matar? Por quê o negão antes quis me matar? Por quê o Assassino
citou o negão?
Será que tinha alguém por traz
disso tudo querendo me matar?
Bem. Era hora de recomeçar. Peguei
a graninha que economizei na cadeia, do salário da coluna e aluguei uma
quitinete. Fui até o jornal para me apresentar, ver como me utilizariam.
Fui direto ao diretor do jornal
perguntar se eu iria fazer reportagens, além de continuar com a coluna e o
homem pediu que eu me sentasse. Sentei e ele contou que infelizmente não
contariam mais com meus serviços.
Perguntei qual era o problema e o
diretor foi franco. Eu era um cara marcado, cercado de problemas, com um
péssimo histórico e poderia não ser bom pra imagem do jornal me ter ali.
Estranhei o fato e perguntei “Mas
não fui problema para a imagem de vocês na cadeia, muito pelo contrário, minha
coluna era popular”. O diretor respondeu “Acontece que você era um presidiário,
uma situação curiosa, agora você não passa de um ex detento”.
Ex detento. É, era isso que eu
era, um ex detento. O diretor pediu que eu passasse no RH e não me deu mais
atenção. Saí do jornal desempregado e tinha que arrumar
um emprego para sobreviver.
Bati na porta de vários jornais, de
alguns conhecidos, pessoas que me deviam favores e consegui nada. O preconceito
já é grande com um ex presidiário, difícil alguém dar oportunidade a quem sai
da cadeia e a minha situação parecia ainda pior. Eu parecia uma figura queimada
na grande mídia. As atitudes que tive, os rolos que me meti parece que fizeram
as pessoas criarem repugnância por mim. Seria ainda mais difícil recomeçar.
Mais do que eu pensava.
Vivia fazendo bicos aqui e ali
para sobreviver. Ainda tinha um pouco de dinheiro do trabalho na cadeia e dessa
forma continuava procurando um emprego fixo. Apesar de não ter computador em
casa continuava atualizando meu blog, agora contando como era a vida de um ex
detento, as agruras que passa alguém que tenta se consertar na vida, mas a
sociedade não permite.
Apesar de ter uma visitação
expressiva eu não conseguia patrocinadores para o blog. Ninguém queria associar
sua marca a um ex presidiário, principalmente a mim. Todos viraram a cara,
ninguém estendia a mão. Até Pardal e Lucinho sumiram.
Minha rotina todos os dias era
essa. Passava uma hora por dia numa lan house atualizando o blog e o restante
do tempo procurava emprego ou patrocínio para o blog. Como jornalista já via
que não conseguiria nada. O jeito era procurar outros tipos de emprego.
Andava “limpo”. Tempo que não me
drogava e nem bebendo estava. Muito também por falta de dinheiro. Mas eu queria
provar que estava recuperado.
Até que finalmente consegui
arrumar um emprego. Não era grande coisa, mas foi o melhor que conseguiu.
Empacotador de compras em um supermercado.
É parceiro. Parecia que eu
chegava ao fundo do poço. Eu que era um jornalista foda, fui rico, tive luxo,
tudo do bom e do melhor, amigos importantes e sempre fui vaidoso agora
trabalhava em um supermercado colocando as compras de madame em sacos plástico.
Maluco, como eu odiava aquilo, mas precisava sobreviver.
Oito da manhã estava no mercado
trabalhando até seis da tarde. Quando
saía ia até a lan house mexer no blog e contar aos leitores como estava minha
vida. Desistira de procurar emprego como jornalista ou patrocínios, procurava
aceitar minha nova condição.
Até conseguia ser feliz na medida
do possível. Sem dúvidas era melhor que estar na cadeia. Mas a vida sempre foi
difícil pra mim malandro, não seria ali que ela facilitaria.
Um dia estava no trabalho e fiquei
até o fim normalmente como todos os dias. Fui para a lan e depois para minha
quitinete dormir. Estava lá sonhando com a Kelly Key, sim sou um
tradicionalista, quando bateram na minha porta quase arrombando.
Sonolento abri a porta para ver o
que era e o dono do mercado entrou com mais dois caras perguntando onde estava
o dinheiro. Respondi que sabia de nada e perguntei de que dinheiro que ele
falava.
Ele deu um soco na parede de ódio
e gritou “O dinheiro da caixa registradora que você trabalha sumiu, sobrou
nada, nem um centavo!!
Ainda tentei argumentar que sabia
de nada. Saí do trabalho e a menina do caixa disse que anda ficaria alguns
minutos contabilizando o dinheiro quando um dos capangas me deu um soco no
rosto que me fez cair no sofá.
Levantei com a mão no rosto
perguntando qual era o problema e furioso o dono do mercado gritou “Não se faça
de santo seu filho da puta!! A grana sumiu e quem estava preso até outro dia
era você!! Devolve logo o dinheiro seu merda!!”.
Mais uma vez contei que sabia de
dinheiro nenhum e o homem mandou que os dois capangas me batessem.
É..Bateram muito em mim naquela
noite e como eu não sabia de dinheiro nenhum nada faria com que parassem de
bater.
De manhã eu já estava todo
quebrado, sem forças nenhuma e o dono do mercado limpando o suor de seu rosto
mandou que os capangas parassem dizendo “Isso é bandido casca grossa, não vai
dizer onde colocou meu dinheiro”.
Agradeci pela ordem para pararem
de bater e o homem esbravejou “ladrão filho da puta”. Antes que saíssem
perguntei “Será que posso faltar ao trabalho hoje? Não estou em condições
físicas, depois apresento um atestado”.
O homem nem respondeu. Os três
saíram e fiquei com a leve impressão que estava despedido.
Sim. Eu estava e o que era ruim
ficou ainda pior. Além de estar queimado em toda as redações de jornais agora
estava com o comércio local. Não conseguia um novo emprego e o dinheiro foi acabando..acabando até que acabou.
Não tive mais como pagar o aluguel
da quitinete até que fui despejado. Sim, parei na rua com uma mão na frente,
outra atrás e uma mala com roupas sem saber o que fazer. Não tinha para onde
ir. Não tinha a quem buscar. Não me restou alternativas.
Fui morar na rua.
Sim amigos. Eu disse acima que
chegara próximo ao fundo do poço. Ali eu poderia dizer que cheguei. Eu, o
grande jornalista, o bandidão, parei embaixo de um viaduto com minha mala,
tirei uma coberta de dentro dessa mala, pois estava frio e com chuva e dormi
ali, na rua.
Tentando dormir com barulho de
chuva e frio ouvi a voz de Pardal “Que vergonha hein? Virou mindingo”. Virei
para ele e corrigi dizendo que não era mindingo e sim mendigo. O fantasma
completou. “Você não anda com moral pra corrigir alguém”.
Mantive a pose e revidei “Pior
você e Lucinho que sumiram quando viram que eu estava na merda”. Pardal riu e
comentou “Já tive uma vida de merda, quer que eu tenha uma morte também? Se
vira aí” sumindo no ar.
É. Eu estava na merda mesmo.
Tentava sobreviver catando
latinhas nas ruas para vender. Dessa forma conseguia comprar alguma comida pelo
menos uma vez por dia e não morrer de fome. De noite era aquele inferno. Dormir
na rua. No frio, no calor, embaixo de chuva ou Sol forte, assim eu tentava
sobreviver.
Fora às vezes que eu tinha que
sair na porrada com algum mendigo maluco que achava que eu estava tomando seu
ponto de dormir.
Era o inferno na Terra. Foram
quatro meses assim.
Um dia consegui grana para
almoçar, não era todo dia que conseguia. Parei em um bar e pedi a refeição do
dia. Devorava a comida como se fosse um prato de comida. Ok, pra esse tipo de
situação não serve essa velha metáfora. Não conseguia nem parar pra respirar
quando uma mulher bonita entrou e se sentou ao meu lado com cara de cansaço, se
abanando devido o calor e pedindo uma água.
Olhei para ela com aquele jeito de
“conheço você de algum lugar”. A mulher tentou disfarçar, mostrou claramente
que estava incomodada quando lembrei de onde conhecia e falei:
“Bia!!”.
Bia para quem não lembra é Beatriz
Quintanilha. A mulher que no presídio apareceu com a proposta que eu publicasse
um livro.
Ela ouviu seu nome e olhou para
mim não me reconhecendo de cara. É, minha imagem depois de quatro meses na rua
não era das melhores. Dei um sorriso e ela reconheceu “Gilberto?”.
Fiquei feliz, tentei lhe dar um
abraço. Mas antes disso, lembrei que fazia um tempinho que não tomava banho e
desisti. Assustada Bia perguntou o que acontecera comigo, respondi que era uma
longa história e a mulher disse “Tenho tempo, vem comigo”.
Fomos ao seu apartamento. Antes de
qualquer coisa ela me entregou uma roupa que o irmão
esquecera, uma lâmina de barbear, toalha e disse que me esperava na sala.
Tempo que não tomava um banho tão gostoso,
água tão quentinha! Fiz a barba ficando com cara de bebê. Não, prefiro não
lembrar essa expressão. Voltei para a sala e Bia elogiou “Uau, parece outro
homem!”.
Sentei na sala agradecendo a ajuda
e ela pediu que eu contasse o que ocorreu. Contei tudo. Desde minha fuga da
casa de Juliana quando ela me ameaçou entregar à polícia, como virei dono do
morro do Trololó, a prisão pelo BOPE e minha passagem pelo presídio com todas
as agruras. Terminei contando minha via crucis como ex presidiário que não conseguia
se restabelecer.
Bia ouviu a tudo atentamente e no
fim disse “É uma grande história, mais uma grande história”.
Pegou minha mão e disse “Vem
comigo”. Levou-me até a editora que lançou meu primeiro livro e foi direto à
sala do diretor. O homem cumprimentou Bia efusivamente e perguntou “Que grande
história tem pra mim agora?”.
Bia apontou pra mim e perguntou
“Lembra dele?”. O diretor colocou os óculos e respondeu “Sim, claro. Gilberto
Martins, o jornalista bandido. Umas das histórias mais fascinantes da crônica
policial carioca”. Não sei se era pra agradecer, mas meu ego, como sempre
inflado mandou e sorrindo disse “Sim, sou eu sim”.
Bia continuou e contou ao homem
que o meu livro tinha sido o mais vendido da editora nos últimos vinte anos e
somente um livro poderia superar aquela venda. O homem perguntou qual e ela respondeu “A continuação”.
Bia pediu que eu contasse como foi
minha vida nos últimos quinze anos, mais ou menos o período após o livro e
contei. O homem ouviu fascinado e no fim comentou “É um best seller”. Bia
respondeu “Vai vender um milhão de livros e virar filme!!”.
Empolgado o dono da editora pediu
que eu escrevesse a história que ele queria publicar o livro. Bia respondeu que
eu iria escrever, mas precisava de um adiantamento. O homem na hora pegou um
talão de cheques, uma caneta, abriu e perguntou quanto.
Naquele dia mesmo comecei a
escrever “Era da violência 2 – Os senhores da morte”.
Fiquei no apartamento de Bia, no
quarto que era de hóspedes e escrevia praticamente dezesseis horas por dia. Não
parava para comer, dormir, nada. Bia que levava lanches para mim e mandava
descansar. Reativei o blog, parado desde que parei nas ruas e graças ao
conhecimento de Bia arrumei patrocinadores. Voltava a viver um bom momento.
Três meses depois o livro estava
pronto e em mais três meses sendo lançado em uma grande livraria. A imprensa
toda presente, eu com um lindo terno lembrando em nada o mendigo de tempos
atrás.
Ou “mindingo” como disse Pardal
que também compareceu ao evento.
Dei autógrafo para muitas pessoas,
algumas delas personalidades da cidade. Entre elas Rubinho Barreto.
Rubinho comandava a construtora
Barreto. Parceiro de vários governos não só pelo país como pelo mundo.
Responsável por algumas das grandes construções de nosso tempo, que faturava
muito com as Olimpíadas do Rio de Janeiro que se aproximavam e o pior.
Novo marido de Juliana.
Bia levou Rubinho até a mim para
apresentar e o cumprimentei dizendo que já lhe conhecia. Além de ter ouvido
falar dele esteve com Juliana na noite de autógrafos de meu primeiro livro.
Rubinho sorriu e comentou que lembrava bem daquela noite.
Perguntei por Juliana e Rubinho
respondeu “Foi a Brasília em uma reunião do partido, se lançará em campanha
para o senado”. Assinei o livro, entreguei a Rubinho e comentei “Dê lembranças
a ela”. Rubinho apertou minha mão e se afastou.
Antes que eu me sentasse novamente
Rubinho se virou e disse “Ela pediu que você não se metesse em confusões
novamente e fique fora da cadeia”.
Respondi que iria me esforçar para
isso e ele se afastou, ainda falei baixinho “Filho da puta”.
A noite foi maravilhosa e emendei
em um restaurante com Bia. Bebemos muito, rimos mais ainda e quando percebi já
estava aos beijos com ela em sua cama.
No dia seguinte nos encontramos na
sala de seu apartamento em um silêncio constrangedor. Um não conseguia olhar
para o outro até que ela me estendeu a mão sorrindo e perguntou “Amigos?”.
Sorri e apertei sua mão
respondendo “Amigos”.
Livro já estava lançado, minha
vida encaminhada e no mesmo dia me mudei para um apartamento que alugara. Bia
era minha amiga e eu amigo dela e isso era mais importante que qualquer foda.
Como um anjo que some e aparece sempre na hora necessária Bia sumiu de novo.
Foi lançar projetos culturais pelo Brasil e só continuamos a ter contatos por
telefone e internet.
Mas era muito importante pra mim.
Sempre será.
Precisava trabalhar, ganhar
dinheiro. Ganhava com os direitos autorais dos livros, mas sabe como é direito
autoral no Brasil né? Também ganhava uma graninha com o blog e, por sugestão de
Bia, comecei a fazer palestras pelo Brasil sobre jornalismo, tudo o que passei
e como dar a volta por cima.
Quem diria. Virei exemplo.
Mas não era o suficiente.
Precisava de um emprego fixo e isso ocorreu no fim de uma de minhas palestras.
Uma das pessoas que assistiu veio até a mim parabenizando não só pela palestra,
mas pela história, que conhecia bem e perguntou se eu nunca pensara em ser
professor.
Olhei para ele e respondi que não,
nunca passara por minha cabeça, mas poderia ser interessante um dia. Enquanto
eu arrumava minha pasta ele fez a proposta “Sou coordenador do curso de
comunicação de uma Universidade e adoraria contar com você como professor. Tem
muito a ensinar”.
Olhei para ele. Lembrei que
precisava de um emprego e de supetão respondi com uma pergunta “Por quê
não?”.
Dessa forma virei professor de
jornalismo. Que chique.
Alguns dias depois, nervoso e com
minha pasta me encaminhei para sala de aula pensando “Vai dar tudo certo, já fui
traficante, mendigo, presidiário, fiquei no meio de tiroteios, dar aula é
fichinha”.
Respirei fundo e entrei na sala de
aula. Primeiro dia de aula daquela turma.
Turma de João Arcanjo e Rui de
Santo Cristo.
ERA DA VIOLÊNCIA 2 (CAPÍTULOS ANTERIORES)
LINK RELACIONADO (LIVRO ANTERIOR)
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