ERA DA VIOLÊNCIA 2 : CAP IV - DIÁRIO DE UM DETENTO
Meu coração parou por uns
instantes..
Sim. Sou um cretino. Um assassino,
traficante, drogado, pulha, tudo de ruim que possa existir, mas ainda tenho um
coração e nos resquícios dele vivem Juliana e Rebeca. Não pensei que um dia
veria Juliana novamente e ela estava lá. Linda, mais velha, mas com ar maduro,
mantendo aquele olhar que me apaixonou muitos anos atrás, mas madura.
Enquanto a via ali bonita, charmosa,
via como tempo fizera bem a ela passei a mão em meu rosto. A vida tinha me
maltratado e com certeza eu estava horrível. Espelho? Tempo que eu não via um.
A parca auto estima que ainda existia em mim não permitia que eu olhasse meu
reflexo.
Tudo isso que pensei foi numa
fração de segundos, entre o “Juliana” que eu disse e sua resposta.
“Oi Gilberto”. Foi o que ela
respondeu. Seca, séria.
Sentei-me à sua frente e com toda
a falta de intimidade que cerca ex-casais que não se veem há tempos olhei para
ela envergonhado e balbuciei “Pensei que nunca mais lhe veria”.
Juliana respondeu o mesmo e
perguntou “Por quê você fez isso comigo?.
Sorri e respondi que não imaginava
do que ela falava. Juliana contou que fora arrolada como
testemunha de defesa no meu processo. Mostrei surpresa e
realmente eu estava. Não sabia de nada e completei “Deve ser coisa do
Eduardo”.
Ainda séria Juliana me puxou para
perto de si e contundente afirmou que era governadora daquele estado prestes a
começar uma campanha por reeleição e não podia ter seu nome ligado a um
traficante.
Argumentei que não teria jeito,
ela teria sempre o nome atrelado a mim, pois fomos casados e tivemos uma filha.
Juliana levantou, andou pela sala, virou-se pra mim e disse “Não tenho culpa
das suas escolhas Gilberto”.
Levantei e falei que ninguém
tinha, só eu, mas ela tinha como melhorar o meu futuro, era só contar a
verdade, o porque eu fugi da cadeia.
Cheguei em seu ouvido e completei
“Não se esqueça que nós dois somos assassinos”. É, pra quem não lembra Juliana
matou o pai.
Juliana perguntou se era uma
chantagem e respondi que nunca teria coragem de fazer algo assim com ela, mas
que a diferença entre um mocinho e um bandido é apenas a oportunidade.
Ela disse “Eu fiz aquilo pra te
defender”, completei “Então me defenda de novo”.
Juliana ficou um tempo em silêncio
e mudou de assunto perguntando como eu estava. Respondi “morto”.
Ela riu e comentou que iria ver o
que poderia fazer por mim. Ver o que poderia fazer por mim. Ela
realmente virara uma política.
Sentei e laconicamente agradeci.
Juliana passou por mim, deu tapinha no meu ombro e saiu.
Foi assim nosso reencontro. Uma
merda.
Voltei para a cela e deitei
naquele colchonete velho e esburacado pensando na Juliana. Mais uma vez não
tive coragem de dizer que éramos irmãos. Mas dizer por quê? Mudaria o que?
Poderia trazer traumas irreversíveis pra ela, afinal, teve filhos comigo,
muitas trepadas. Trepadas gloriosas, diga-se de passagem.
Enquanto meu pensamento estava
distante o carcereiro abriu a cela dizendo que teríamos um novo amiguinho. Abriu
e entrou um negão tipo “armário”, cara de mau. Não sei porque, mas aquilo me
provocou um arrepio.
O negão sentou em um canto e ficou
me olhando fixamente. Eu não sabia como agir, me desconcertei. Depois começou a
cantar uma espécie de mantra. Assustador.
Pela primeira vez na vida,
acredito, tive sono leve e dessa vez não sonhei com nenhuma musa. Sonhei com
Pardal e Lucinho.
É. Não tinha jeito, esses dois
nunca sairiam da minha vida. No sonho mandavam que eu tivesse cuidado com o
negão. Lucinho ria e falava que ele queria me comer. Pardal completava dizendo
“Ele não vai só te comer, vai te matar pelo que fez comigo filho da puta!!”.
Eu indignado respondi a Pardal que
ele matara minha filha e devia ir pro inferno. No meio da
discussão acordei assustado.
Acordei e reparei no negão sentado
e me olhando. Ele olhou fixamente pra mim e sorriu. Um sorriso com alguns
dentes de ouro e outros careados. Enquanto olhava assustado para esse ser ouvi
a voz de Lucinho dizendo “vai te enrabar”.
Não. Na minha bunda ninguém toca.
Passei os dias me sentindo
monitorado pelo tal negão. Vigiava meus passos, parecia me seguir e me comer
com os olhos. Relatei ao advogado o que ocorria e ele dizia ser mania de
perseguição. Em um dos meus sonhos Lucinho disse “se prepara, ele vai te
enrabar”.
Um dia eu estava no banho e ele
entrou, todos os detentos saíram do banheiro e eu não percebi o que ocorria.
Quando dei conta ele já abria o chuveiro ao lado. Tentei sair, mas ele me
segurou e arremessou contra a parede tirando um canivete da boca.
Na boa. Não seria com um simples
canivete que ele iria me comer. Teria luta. Ignorei o tamanho dele e parti pro
enfrentamento. Brigamos, me desviei do canivete enquanto pude e percebi os
olhares dos detentos na porta esperando o que iria acontecer.
Em determinado momento ele
conseguiu me acertar a barriga com o canivete. Caí no chão com muita dor,
sangrando e ele me virou de costas para tentar o estupro. Tentou deitar sobre
mim com o canivete no meu rosto, mas antes que conseguisse consumar a violência
consegui me desvencilhar, sair debaixo e usei a força do seu braço contra ele
passando o canivete em seu pescoço.
Notei que ele caiu desmaiado e sem
forças senti minha visão turva, escurecendo. Antes de desmaiar
ainda tive tempo de ver nossos sangues se misturando e descendo pelo ralo.
Acordei em uma cama de hospital.
Meio zonzo ainda me perguntando o que ocorria. Um enfermeiro me perguntou se eu
estava bem e respondi que tudo bem. Ele contou que chamaria o médico pra me ver
e saiu. Ao sair notei uma pessoa na cama ao lado. Era o negão estuprador.
O médico entrou e perguntou como
me sentia. Respondi que bem, mas um pouco zonzo e com dor. O médico contou que
era normal. Eu ficara três dias em coma e me recuperava aos poucos.
Olhei de novo pro lado e perguntei
“E esse aí?”. O médico olhou e respondeu “Também está se recuperando, mas de
forma mais lenta”. Balbuciei que não tivera culpa de nada e o médico antes de
me dar uma injeção respondeu que sabia.
Ele e o enfermeiro saíram e fiquei
novamente sozinho com o negão. Um em cada cama.
Enquanto eu fechava os olhos no
momento que a dor deu uma pontada ouvi uma voz dizendo “Esse cara vai se
recuperar e te matar, ta com ódio”. Abri os olhos assustado e mais assustado
ainda fiquei quando vi quem era.
“Lucinho!!’.
Sim. Era o Lucinho, o fantasma
dele ou delírio meu, mas ele estava lá.
Gaguejei que ele não podia estar
ali, estava morto e o bandido fantasma respondeu “se você não fizer nada quem estará morto em
dias será você”.
Eu apenas ouvia e ele continuava
“Qual é Gilberto? Aprendeu nada porra?? Esse negão vai acordar puto com o que
você fez e vai se vingar!! Vai te matar!!”.
Perguntei o que ele sugeria e
Lucinho respondeu. “Pega o travesseiro e asfixia. Mata esse filho da puta!!”.
Pensei um pouco e Lucinho
completou “Mata porra!! Mata logo!!”.
Levantei, peguei meu travesseiro e
andei calmamente até o negão. Olhei pra ver se vinha alguém e tendo a
confirmação que não vinha coloquei o travesseiro em sua cara. O negão começou a
se debater, mas estava sem forças então pressionei o travesseiro em seu rosto
com todo ódio do mundo.
“Morre estuprador filho da puta!!
Vai pro inferno seu tarado!!”. Eu estava em transe e quase gritava essas
palavras. Lucinho ao lado parecia torcedor de arquibancada de futebol. Vibrava
e gritava “Mata!! Mata!!”. Depois de alguns minutos senti o fim da resistência
e Lucinho contou “Pode parar, o porco parou de estrebuchar”.
Negão estava morto.
A injeção começou a fazer efeito e
com meu travesseiro voltei para a cama e deitei. Deitei para dormir meu sono
mais tranquilo dos últimos tempos. No dia seguinte notaram o falecimento do
anormal e em nenhum momento associaram a mim que dormia como um anjo.
A vida na cadeia continuou até que
um dia recebi visita de meu advogado. Dr Eduardo me informou que tinha duas
notícias para me contar. A primeira que meu julgamento fora marcado para dentro
de um mês, a segunda que um jornal queria me contratar.
A primeira, evidente, eu já
esperava, mas a segunda notícia me deu um susto. Como assim um jornal querendo
me contratar? Dr Eduardo contou que eu ainda era uma celebridade, provocava
curiosidade nas pessoas e o jornal queria que eu contasse em colunas semanais como
era a vida de uma celebridade presa.
Ri e comentei que aquilo era uma
loucura e o meu advogado emendou que o diretor do presídio não só autorizara
como cederia uma sala para que eu não só escrevesse a coluna em um computador
como montasse um jornal do presídio.
Continuava achando tudo uma
loucura e Dr Eduardo emendou “Ele não está sendo bonzinho, tem aspirações
políticas e você escrevendo diretamente da cadeia, contando que o presídio
trata bem seus presos, que serve realmente como um local de recolocação na
sociedade ele sai ganhando”.
Claro. Ninguém faz nada de graça.
Dr Eduardo completou “Você
trabalhando e conduzindo um jornal aqui mostra bom comportamento, é bom pra
você no julgamento”.
Ok, me convenceu.
Coloquei a mão na massa. Comecei
não só a escrever a coluna semanal como criei um blog contando a visão de um
preso sobre o mundo. Como não sou um cara nada original dei o nome ao blog de “Diário de um detento”. Alusão a
música dos Racionais Mcs.
Tanto o jornal e o blog estouraram
e o jornal do presídio ia muito bem contando seu dia a dia e já estreando
mostrando o campeonato de futebol interno. Dessa forma, com uma imagem muito
melhor chegou o meu julgamento.
Tipo de julgamento que chamou
atenção da mídia. Mas eu não era mais “inimigo público n°1” e voltava a ser um
jornalista, com bons serviços prestados que se desviou e tentava se redimir. O
fato da mídia e da opinião pública não querer minha cabeça mais já ajudava
muito porque no Brasil o suspeito vira culpado imediatamente e aqui seguem a
risca o provérbio “A voz do povo é a voz de Deus”.
Mesmo que o povo um dia tenha
libertado Barrabás.
Juliana foi ao julgamento, para
minha surpresa, acho que o fato dela estar com 74% das intenções de votos para
o governo do estado ajudou que ela fosse. Ela não escondeu nada (quase nada,
claro que não contou que matou o pai) e relatou que eu sofrera tentativas de
assassinato e por isso fugi da cadeia. Uma exumação no corpo do senador provou
que ele não morrera no tiroteio do galpão e sim na época que relatei e por fim
Juliana respondeu que não sabia dizer quem matou seu pai, mas garantiu que eu
não fui, pois estava ferido à época.
O depoimento dela ajudou bastante,
mas claro que não foi o suficiente para uma absolvição minha. Só que o
depoimento, mais o brilhantismo de meu advogado fizeram que eu fosse condenado
a trinta e dois anos de cadeia quando eu poderia pegar mais de cem.
Trinta e dois mais os dezesseis
que eu tinha a cumprir (já se passara um ano de minha volta à cadeia) davam
quarenta e oito anos. É, seria um bom tempo.
Mas Dr Eduardo recorreu das duas
condenações e a soma de quarenta e oito caiu para trinta. Com todos os
atenuantes que a lei resguarda em cinco anos estaria fora do presídio.
Até que não seria tão ruim.
No presídio certo dia me preparava
para escrever quando ouvi uma voz. “É malandro, se deu melhor do que eu”.
Quando eu olhei para o lado vi que
era Pardal.
Assustado perguntei o que ele
queria, Pardal me respondeu “Ficou com meu morro, ganhou dinheiro pra caralho,
curtiu e vai ficar só uns aninhos na cadeia, enquanto eu morri. Vida injusta
essa.”
Meu susto virou raiva e lembrei
que ele matara minha filha. Pardal colocou a mão em meu ombro e respondeu “Sem
ressentimentos, eram só negócios”.
Puto pra caralho dei um soco em
seu rosto e ao contrário do que dizem os filmes com fantasmas minha mão não
passou no vazio acertando em cheio o rosto do bandido. Que soco!! Quanto tempo
queria fazer isso com aquele filho da puta!!
Pardal levantou e devolveu o soco.
Dessa forma brigamos feio nos esmurrando, rolando pelo chão e quebrando toda a
sala. Quando os guardas entraram eu estava caído, ensanguentado e furioso
querendo briga.
Desse jeito, ensandecido fui
seguro enquanto gritava que o Pardal estava ali. Todos sabiam quem era o Pardal
e que estava morto então resolveram me levar pra enfermaria e me deram um
sossega leão. Só acordei com Dr. Eduardo ao meu lado.
Perguntei o que ocorrera. Ele me
respondeu que eu tivera um surto psicótico. Fizeram exames, não detectaram nada
de anormal e ele alegou que eu estava sob forte stress e por isso provocara
aquele tumulto.
O doutor perguntou o que realmente
acontecera e confirmei que Pardal estivera comigo. Dr Eduardo fez sinal de
silêncio e disse baixinho “Nunca mais fale isso, quer parar em um hospício?”.
Respondi que não, mas que Pardal e Lucinho andaram me visitando. O doutor falou
“Não fale mais isso pra ninguém, nem pra mim. Entendeu? Se isso acontecer de
novo disfarce, guarde pra si senão vão te meter numa camisa de forças e dar eletrochoques
pro resto da vida”.
Concordei com meu advogado e ele
saiu do quarto. No mesmo instante Pardal e Lucinho reapareceram. Antes que eu
falasse algo Pardal disse “Para com essa porra, eu matei sua filha, mas você me
matou, estamos quites”.
Perguntei se nunca me livraria
deles e Lucinho respondeu “nem no inferno”.
Passei a conviver com os dois e
saber fingir que nada acontecia. O conserto da sala que quebrei foi pago com o
salário que recebia do jornal e a assim a vida continuou. Acabaram as suspeitas
de que eu estivesse louco e contava cada dia como menos um até minha liberdade.
Cada vez mais presos se
interessavam em trabalhar no jornal que agora também contava com uma rádio. Eu
montara um império de comunicação na cadeia. Uma tarde estava trabalhando
normalmente quando bateram na porta. Era um rapazinho ainda, cara de garoto
tímido perguntando se podia entrar.
Respondi que sim e ordenei a
entrada. Ele chegou à minha frente e disse que recém chegara na cadeia e queria
trabalhar, se ocupar perguntando se tinha algum serviço pra ele.
Eu ri e perguntei se ele já tinha
idade para estar em um presídio de adultos, se não devia estar em um
reformatório. Ele tímido abaixou a cabeça rindo e perguntei qual era seu nome.
O menino levantou a cabeça e com
olhar e voz firmes me disse.
“Assassino com cara de bebê”
ERA DA VIOLÊNCIA 2 (CAPÍTULOS ANTERIORES)
LINK RELACIONADO (LIVRO ANTERIOR)
Comentários
Postar um comentário