AMOR SEM FIM
*Conto publicado na coluna "O buraco de fechadura" no blog Ouro de Tolo em 12/01/2013
Como eu já disse antes todo mundo sonha em encontrar o
amor, sua alma gêmea, aquela pessoa que faz nosso coração acelerar, a boca
ficar seca, que só de olhar a gente diz “é ela” e sonha em ficar com essa pessoa
para sempre. Casar, ter filhos, netos, ter com essa pessoa não só amor, mas
companheirismo, amizade e ficar com ela até o fim de seus dias.
Dorival conseguiu isso, é o que podemos chamar de um
privilegiado. Mas o pra sempre não existe.
A única certeza que temos na vida, desde que nascemos é
que um dia iremos morrer então não dá pra cravar o “e foram felizes para
sempre”. Se o casal não morrer junto um vai ficar e ficará com toda a dor da
ausência, da saudade.
E isso também ocorreu com Dorival. Estava prestes a
completar noventa anos de idade. Um orgulho para qualquer pessoa, noventa anos
de uma vida intensa, de trabalho, suor, ajudando a construir esse país. Em
qualquer país decente um homem chega a essa idade e é tratado como um herói, um
sábio, mas as coisas aqui são diferentes.
Trabalhou por mais de cinquenta anos de Sol a Sol, sem
faltar uma única vez para receber do INSS dois salários mínimos de
aposentadoria, dinheiro que mal dava para seu remédio. Apesar da boa saúde e do
raciocínio pleno Dorival já era velho e não tinha mais como se manter sozinho.
Vivia com Dori, seu filho mais velho e sua esposa. Um neto ainda vivia com ele,
o Zeca que morava com sua esposa, eram recém casados.
Dorival tinha uma casa que comprou assim que se casou e ao
longo do tempo deixou como queria. Mas não tinha mais como morar lá sozinho então a mesma foi alugada.
Na parte material Dorival não podia reclamar de nada, ele
recebia tudo que precisava, mas não recebia afeto. A impressão que dava é que
era um estorvo, um peso que a família tinha que carregar, mesmo criando e
sustentando a todos por décadas e ajudar no orçamento da casa com o aluguel da
sua. Por falar em casa os filhos queriam vender a de Dorival que se negava por
ser a única lembrança de sua vida.
O velho era sempre o primeiro a acordar e ia para a
varanda cuidar de seu passarinho na gaiola. Dava alpiste, perguntava se estava
bem e ficava ali por horas. Parecia seu único amigo. Algum tempo depois o
restante das pessoas da casa acordava e antes mesmo de dar bom dia Dori reclamava
que o pai urinara novamente na cama. Dorival constrangido falava nada enquanto
o filho esbravejava que ele tinha que usar fraldão. Baixinho Dorival comentava
com o passarinho que quem usava fralda era bebê.
Todos sentavam a mesa para tomar café e conversavam sobre
tudo. Menos com Dorival que comia devagarzinho seu pão com café e era
totalmente ignorado pelo restante da família. Quando tentava falar algo ninguém
lhe ouvia, era como se fosse um fantasma.
Só lembravam dele quando sem querer deixava derramar o
café na toalha de mesa. Dori gritava com o pai reclamando e sua esposa
comentava que estava mais que na hora de levá-lo para um asilo.
Humilhado Dorival levantava da mesa e se encaminhava para
a sala. Lá sentava em uma cadeira de balanço e passava o dia todo olhando para
o relógio, para o passarinho. Não ligava tv, rádio, nada, só ficava ali perdido
em seus pensamentos até a hora de ir dormir.
Essa era sua rotina, parecia só esperar a morte chegar.
Mas antes chegou seu aniversário de noventa anos. Como
todos os dias Dorival acordou cedo e foi cuidar de seu passarinho. Enquanto
dava o alpiste Dori se aproximou e em vez de dar as broncas de todas as manhãs
deu um beijo rápido no pai desejando feliz aniversário e saiu. Da porta pediu
que o pai não fosse dormir cedo e colocasse uma roupa bonita porque de noite a
família se reuniria para comemorar seu aniversário.
Dorival fechou a porta da gaiola e dessa vez não sentou na
sala, sentou na varanda e de lá ficou olhando a vista que era muito bonita.
Olhava o céu, as árvores, o mar e se lembrava de Teresa, o
amor de sua vida. Ausente há cinco anos já. Uma lágrima caiu de sua face
lembrando da esposa e de tudo que viveu com ela. Seu coração doía de saudades.
Setenta anos antes Dorival em nada lembrava aquele velho
triste. Era um garotão bonito, atlético e cheio de vida. Fazia parte da equipe
de atletismo do colégio e era o sonho das menininhas como um galã de cinema.
Além de ser amante dos esportes Dorival era boêmio.
Gostava de ficar até tarde na rua bebendo com os amigos, jogando sinuca e
carteado. Era amigo dos malandros e amante das prostitutas. Passava parte da
noite com elas e depois corria pra casa a tempo da mãe não desconfiar que
ficara tanto tempo fora.
De manhã ela batia no quarto e ele cheio de sono acordava
praticamente dormindo sobre a mesa no café da manhã. Sua mãe perguntava de onde
ele arrumava tanto sono se dormia cedo e Dorival com um sorriso safado no canto
da boca dizia que estava em fase de crescimento.
Tinha uma vida dupla, era um rapaz cheio de vida e saúde
com muito pela frente.
Um dia dormiu cedo de verdade porque tinha uma corrida
importante na manhã seguinte. Acordou cedo cheio de disposição, tomou uma
vitamina de banana, deu um beijo na mãe e saiu correndo para o colégio.
As arquibancadas do colégio estavam lotadas. Era uma
corrida inter colegial e Dorival era o representante do seu. O professor de
educação física chegou no rapaz, fez uma massagem em seus ombros e desejou boa
sorte dizendo que era apenas pra ele repetir o que fazia nos treinos que
venceria com facilidade.
Era uma corrida de dez mil metros. Dorival era um grande
fundista e estava tranquilo e pronto para vencer. Tomou sua marca e o juiz
atirou para o alto dando início a prova.
Um grande frenesi tomou conta das arquibancadas. No começo
da corrida Dorival manteve-se no meio do pelotão e na metade apertou o ritmo
tomando a dianteira para delírio da torcida. Dorival tomava conta da corrida
parecendo que venceria com facilidade.
Na última volta pela pista, perto da linha de chegada
Dorival era tão absoluto que se permitiu olhar a arquibancada e lá pela
primeira vez viu aquela que mudaria sua vida. Uma moça bonita, branca de
cabelos negros conversava com amigas na arquibancada nem ligando para a
corrida. Ela tomara a concentração de Dorival que não conseguia ver mais nada,
só a ela.
Em determinado momento ela também olhou para a pista e
notou o rapaz lhe olhando. Por alguns segundos os olhares de Teresa e Dorival
se cruzaram pela primeira vez até que o atleta saiu do transe com o grito
“Acorda Dorival !!”.
O grito era do professor de educação física. Quando
Dorival se deu conta do que ocorria foi ultrapassado por outro corredor. Tentou
desesperadamente ultrapassá-lo novamente, mas em vão. O outro atleta venceu com
Dorival ficando em segundo.
Dorival ficou frustrado com a derrota, mas o mais
importante naquele instante era descobrir quem era aquela moça. Subiu o pódio
para receber a medalha de prata sob olhar de reprovação do professor quando lá
do alto achou a menina. Ela estava indo embora com amigas.
Dorival deu um salto do pódio e correu atrás dela.
Alcançou e sorrindo disse a Teresa que ela o fizera perder
a corrida. A moça abaixou a cabeça e disse que não fizera nada continuando a
andar com as amigas que riam. Dorival não desistiu, alcançou novamente e disse
que ela lhe devia uma. Teresa respondeu que não tinha dinheiro e ele de bate
pronto falou que não queria dinheiro e sim que ela tomasse um sorvete com ele.
Teresa respondeu que não podia e as amigas insistiram que
ela aceitasse. Dorival ficou plantado a sua frente implorando até que ela
aceitou.
Os dois foram a sorveteria e pela primeira vez Dorival
pegou em sua mão. Teresa nervosa tirou rapidamente o braço da mesa e Dorival
perguntou se ela não queria namorar com ele. A moça se assustou e respondeu que
não lhe conhecia enquanto Dorival emendou “teremos a vida toda para nos
conhecermos”.
Ela sorriu e contou que o rapaz teria que pedir a seus
pais. Dorival não se fez de rogado, convocou pai, mãe e foi com a família até a
casa de Teresa falar com seu pai.
Nervoso Dorival contou de suas intenções com a moça e como
estava perdidamente apaixonado. O pai de Teresa, um major do exército olhava
brabo para ele e perguntou o que queria com sua filha se ela não sabia lavar,
passar, nem cozinhar.
Dorival respondeu “com todo respeito meu senhor eu não
quero uma empregada, eu quero uma mulher para amar o resto da vida”.
Pronto, ganhou o sogro e Teresa para sempre.
Começaram a namorar indo a cinemas, lanchonetes e na maior
parte do tempo no sofá da sala sempre com o irmão menor de Teresa no meio.
Dorival largou as noitadas, as prostitutas em prol do amor.
Namoraram por três anos até que noivaram. Dorival começou
a trabalhar e planejaram casamento. Alguns meses depois Dorival levava Teresa
para o altar, para sempre em sua vida.
No começo vida difícil, mas Dorival conseguiu comprar um
terreno e de lá com seu suor e força de vontade construir uma casa onde viveram
por toda a vida. Os filhos vieram. Dori, o que lhe deu guarida no fim da vida o
primogênito, vieram mais três.
Teresa dando aulas e Dorival trabalhando no comércio
conseguiram criar os filhos e colocar a todos em faculdade. Com o tempo vieram
os casamentos e os netos. Família grande, de bem como os dois sempre sonharam.
E como é o normal da vida envelheceram. Juntos como sempre
sonharam. Felizes viam os netos crescerem e contavam nos almoços de domingo
como se conheceram e Dorival perdera a corrida. Todos já estavam cansados de
ouvir aquelas histórias, mas eles não de contar.
Completaram cinquenta anos de casados com uma grande festa
para celebrar as bodas de ouro, aos sessenta anos outra, mas aí Teresa já
apresentava sintomas de Alzheimer. Teresa foi aos poucos esquecendo de tudo com
Dorival o tempo todo ao seu lado, mostrando seu amor, carinho, devoção por
aquela mulher até sua morte.
E lá estava ele no dia dos seus noventa anos de idade com
uma saudade terrível de sua Teresa, a mulher que lhe fez perder uma corrida e ganhar a vida.
A festa começou, mas ninguém dava atenção a Dorival. Ele
também não queria interagir, parecia distante, triste. Em determinado momento
se despediu de todos dizendo que iria dormir e ninguém lhe deu atenção.
Deitado ouvia os filhos discutindo na sala, o assunto era
ele. Dori e seus irmãos debatiam sobre uma intervenção de Dorival alegando que
ele não estava bem de saúde e lhe colocação em um asilo. A esposa de Dori dava
força porque assim era possível que eles vendessem a casa e contou que várias
construtoras estavam interessadas em demolir o local e fazer prédios.
Chovia muito forte e Dorival levantou da cama. Passou pela
família que discutia seu futuro sem que ninguém percebesse e saiu de casa.
Andou debaixo de chuva até o cemitério, entrou e andou
pelo local até encontrar o túmulo de sua esposa. Olhando o retrato de Teresa na
lápide fez carinho em seu rosto e encharcado pela chuva e pelas lágrimas que
caíam de seus olhos perguntou porque a mulher lhe abandonara.
Chorando muito, uma chuva torrencial e Dorival deitou
sobre o túmulo da mulher parecendo que a abraçava e ficou ali deitado no lugar
que ele mais queria estar naquele momento, com a pessoa que lhe fez feliz.
Tudo o que Dorival mais queria era virar o seu passarinho
e voar para o céu atrás de sua amada.
Além do infinito através do amor.
De um amor sem fim.
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