ERA DA VIOLÊNCIA 2: CAP III - A CASA CAIU
Mais alguns anos antes..Morro do
Trololó...As crianças felizes soltavam pipa, rodavam pião, brincavam com
videogame. Senhoras com latas de água na cabeça se cumprimentavam. Outras das
janelas observam a rua e os traficantes calmamente tomavam conta das ruas e
vielas com seus fuzis e granadas.
A rádio comunitária tocando funk.
Na certa algum “proibidão” e um dos meninos que jogava futebol na rua olhou
para o lado de baixo da favela e comentou “sujou”. A polícia estava do lado de baixo.
Normalmente isso não seria problema, era o “arrego” que os traficantes pagavam
aos policiais corruptos.
Mas não eram eles que estavam lá.
Era o “BOPE” e o “caveirão” quando começa a subir a favela é que vem chumbo
grosso aí.
O menino que fez a observação logo
se juntou aos amigos e se mandou. O “fogueteiro” percebeu e soltou os fogos
alertando os traficantes. Em pouco tempo começava o tiroteio.
Quem andava feliz pelas ruas saiu
correndo. Todos se protegeram como puderam e aquele lugar que estava tranquilo
virou uma praça de guerra. A bandidagem é arisca, conhece bem a área. Mas o
BOPE é bem treinado, fortemente armado e levou vantagem. Depois de muita troca
de tiros os traficantes perceberam que a “casa caíra” e trataram de fugir pela
mata. Menos um.
O otário que conta essa história.
Pois é. Eu estava dormindo em
minha mansão no alto do morro com algodões nos ouvidos e
travesseiro na cara sonhando com a Beyonce e não ouvi nada!! Vocês sabem como é
o meu sono. Pesado. Enquanto o BOPE tomava o morro e meu bando fugia eu estava
dormindo.
É parceiro, acho que eu não tinha
vocação para traficante mesmo.
Quando dei por mim estavam tocando
no meu ombro. Ainda resmunguei e virei para o lado e tocaram de novo. Puto,
tirei a venda dos olhos e gritei “O que é porra???”.
Quando percebi estava rodeado de
policiais do BOPE. Em pensamento disse “fodeu”, mas mantive a classe e
perguntei “os senhores querem alguma coisa?”.
O comandante olhou pra mim e sendo
tão cínico quanto eu respondeu “Sim, nós queríamos chegar na Avenida Atlântica
pra pegar uma praia e nos perdemos, sabe nos orientar a chegar?”.
Antes que eu falasse algo o
comandante me pegou pelo pescoço levando para o lado de fora da mansão. Senti
saudades do Major Freitas, pelo menos tinha mãos suaves como a de um bebê.
Enquanto era levado para fora meus
pitbulls começaram a latir furiosamente. Reclamei e perguntei “Agora que vocês
latem seus filhos da puta??” Um dos policiais respondeu que eles latiram, eu
que tinha sono pesado. Meu sono pesado!! Isso ainda me mataria um dia..
Será que seria hoje?
Fui levado para o meio da rua.
Deserta, com todos os moradores
se escondendo como podiam. Notei
que quase todos os policiais estavam encapuzados e não vi essa situação como um
bom sinal. Perguntei o que faria comigo e o comandante respondeu.
“Te matar, claro”.
Não gostei da resposta.
Todos os outros colocaram capuzes
enquanto o comandante, sem, respondeu que fazia questão que eu visse seu rosto.
Pensei em argumentar que adiantaria nada que eu visse, pois estaria morto e ele
debochando pediu a um policial pra fotografar e colocar no instagram.
Mandaram que eu me ajoelhasse e
apontaram as armas. Engatilharam e eu fechei os olhos pensando que pelo menos
reencontraria Rebeca. Na hora que pensei que ouviria tiros ouvi um “Para!!”.
Abri os olhos sem entender, o
comandante perguntou o que acontecera e o policial que deu o grito respondeu
que estavam filmando. Antes que o comandante perguntasse quem perceberam uma
senhora se escondendo na sacada de uma casa caindo aos pedaços.
Os homens do BOPE se encaminhavam
até a casa pra recuperar o material quando a imprensa oficial apareceu. Vários
jornalistas se aproximaram pra cobrir o fim da tomada do Trololó e percebendo a
oportunidade levantei com as mãos para o alto andando na direção deles e
gritando “Perdi !! Perdi!!”.
Melhor preso do que morto,
evidente.
O BOPE não teve alternativa. Não
podia me matar na frente da imprensa então teve que me algemar e levar. Na
maioria das vezes um traficante quando é preso tenta esconder o rosto. Eu não.
Fui para o fundo da patamo olhando o rosto de todos e feliz.
Colocaram-me e o comandante
irritado falou baixinho “escapou”. Olhei pra ele quase pedindo desculpas por
não ter morrido e ele fechou a porta violentamente.
As viaturas saíram em disparada
com a criançada correndo atrás e fazendo barulho de sirene. Aos poucos o morro
foi acalmando e o meu bando voltou. Lógico, rapidamente escolhendo outro nome
pra mandar no Trololó.
Só prender traficante não adianta
irmão, sempre aparece outro pra suceder. É esfregar gelo.
A patamo com minha pessoa chegou na
delegacia e a imprensa toda estava na frente do local me esperando. A polícia
me tirou do veículo e os flashes dispararam. Senti-me uma celebridade.
Levado para a sala do delegado dei
de cara com o coronel Rodrigo Saldanha. Secretário de segurança do governo de
minha dileta ex-esposa e irmã Juliana. Sentei na cadeira em frente ao delegado
e reclamei com o coronel que estava em pé olhando a janela que fui mal tratado
por seus homens.
Rodrigo virou para mim e respondeu
que qualquer coisa eu poderia reclamar na ouvidoria. O delegado falou que eu
tinha sorte de estar vivo. Respondi “Se eu tivesse sorte teria sono leve”.
O delegado pediu “Conta tudo”.
Retruquei “Tudo o que?”. Ele emendou “Tudo, eu quero tudo”.
Tentei novamente argumentar “Tudo
exatamente o quê?” E o coronel se aproximou e me deu uma porrada.
Começou a sair sangue de minha
boca e o delegado ironizou “tadinho, machucou?”. Gritei perguntando “Qual o
problema de vocês? To começando a achar que é pessoal!”.
Coronel Rodrigo Saldanha se
aproximou com raiva, pegou meu colarinho e exigiu que eu contasse tudo. Eu era
envolvido com Major Freitas, Lucinho, Pardal, senador Peçanha, Pittinha e
estava no meio de toda a cena da criminalidade fluminense dos últimos anos. Com
certeza sabia demais e devia contar.
Notei algumas pessoas da imprensa
encostadas na porta e respondi que só falaria na presença de meu advogado.
Adoro essas situações que ocorrem em filmes americanos. Antes que um dos dois
se aproximasse para bater em mim novamente emendei que a imprensa estava toda
ouvindo aquela conversa atrás da porta.
Sempre a imprensa me salvando. Não
à toa eu era jornalista.
Sim, jornalista, um dia eu fui.
Fui levado para uma sala até que
algumas horas depois um policial entrou com um advogado. Era o Dr. Eduardo
Feitosa. O advogado das celebridades ferradas.
Dei um abraço no velho amigo que
ironizou “Só se lembra de mim nas roubadas”. Emendei “Então me lembro sempre”.
Contei para ele toda a situação e Dr
Eduardo achou melhor que eu revelasse tudo o que sabia e assumisse minhas
culpas.
Lembrou que eu cumprira um terço
da pena e ainda teria mais dezessete anos pela frente, fora que iria a
julgamento por novos crimes, mas a “foda” que eu receberia seria atenuada com
confissões e ajuda à polícia.
E foi isso que eu fiz.
Voltei ao presídio depois de
quatro anos livre daquele ambiente. Confesso que não sentia saudades. Ao
contrário da outra vez quando parei ali apenas como um cara que se meteu em más
companhias ali eu era a má companhia. Traficante dos mais temidos, marketing
nessa vida é tudo, entrei respeitado pelos “colegas”. Era um dos chefes da
facção que representava e essa hierarquia prosseguia na cadeia. Virei líder de
pavilhão cheio de regalias.
Regalias com os outros presos e
também com a polícia que eu negociava um qualquer e tinha direito a frigobar,
ar condicionado, tv e um computador onde navegava todos os dias na internet sem
ninguém desconfiar de nada. Também dava churrascos com muita bebida e droga
para meus parceiros e colaborava com a polícia dentro do possível pra não
colocar meu pescoço numa serra elétrica.
Mas a casa caiu de novo e justo a
TV Mape descobriu minhas regalias na cadeia. Fizeram uma mega reportagem no
principal noticiário da emissora e o caso virou um escândalo.
Perdi todas as minhas regalias,
fiquei ainda mais mal visto pela sociedade e minha situação
complicava. Dr Eduardo foi me visitar na cadeia e perguntei o que poderia fazer
para reverter a situação.
Ele me deu dois conselhos:
“Venda uma entrevista exclusiva
pra televisão contando tudo e vire evangélico”.
Entendi a situação da entrevista,
seria bom contar tudo sob minha versão e melhorar minha imagem, mas não entendi
a parte de virar evangélico. Ele completou.
“Todo bandido, facínora da pior
espécie quando vira evangélico é perdoado”.
É. Tem sentido.
No dia seguinte estava eu com os
evangélicos da cadeia me convertendo e “aceitando Jesus”. Gritei aleluia dei
meu testemunho, emocionei os crentes e assim oficialmente estava puro e
inocente junto ao mundo espiritual.
Voltei para a cela. Peguei uma
correntinha de São Jorge escondida, beijei e disse “Desculpe Ogum, mas é por
uma boa causa”.
Na semana seguinte a equipe da Tv
Mape, a mesma que me ferrou, estava lá para minha entrevista. Eu com calça
comprida, blusa abotoada até o pescoço falava baixinho “Que calor filho da
puta” e sorria para receber aqueles vermes que me foderam para a entrevista.
Caprichei na minha canastrice para
contar a triste história do jornalista que virou traficante.
Contei que depois que saíra da cadeia, ao sofrer tentativas de assassinato por
sinal, todas as portas se fecharam pra mim e não me restou alternativa que não
fosse traficar. Chorei diante da câmera contando que eu era um traficante de
bem, nunca matara ninguém, menti nisso, e queria uma vida nova depois de
conhecer Sr Jesus.
Tudo ia bem até a jornalista me
perguntar por Rebeca. Fazia tempo que minha filha morrera naquele atentado, mas
a ferida nunca cicatrizara, doía demais ainda lembrar daquela cena dela morta
em meus braços enquanto o trem do metrô pegava fogo.
Abaixei os olhos e comentei que
Rebeca era a única vítima de verdade daquela história. Pedi que encerrassem a
entrevista e fui atendido.
Dr Eduardo comentou em meu ouvido
que meu desempenho fora ótimo, especialmente o fim e pedi para voltar à cela,
queria ficar sozinho.
Não fiquei sozinho. Fiquei em uma
cela que cabem trinta pessoas e tem cinquenta, mas ao mesmo tempo consegui sim.
Encostado em um canto sujo, fedorento ouvindo roncos e outros barulhos
estranhos daquela madrugada me senti solitário. Solitário como eu realmente
era.
Pensava em Rebeca, na minha
companheira, amiga, filha..Pensei em Guilherme, o filho que nunca consegui
pegar no colo e em Juliana. O amor da minha vida, por maldição minha irmã.
No que minha vida se transformara?
Pensei se realmente não seria melhor pra todo mundo e até pra mim que estivesse
morto.
Arrumei um cantinho para dormir.
Tentar pelo menos.
O dia seguinte era de visitas, mas
nunca recebia mesmo, no máximo do Dr Eduardo então fiquei em um canto do pátio
tentando ignorar a felicidade dos presos com seus familiares. Pensava em
suicídio, se não era melhor pra mim e todos a minha volta. Cheguei a conclusão
que sim.
Pensei em me enforcar na cela de
madrugada, mas desisti quando imaginei que devia machucar o pescoço. Pensei em
me esfaquear, mas desisti. “Deve doer pra caramba”, pensei. Pensei em tomar
veneno de rato, desisti, “deve ter gosto horrível”.
Nem pra me matar eu sirvo.
Continuava olhando pro nada
pensando em ir pro Sol e morrer de insolação quando um guarda se aproximou e
disse “visita”. Não me atentei e ele repetiu gritando “Visita Gilberto”.
Olhei assustado e estranhei. O que
o Dr Eduardo queria? Tinha estado comigo no dia anterior! Será que dera alguma
cagada no meu caso? Andei com o guarda, mas não encontrei meu advogado
perguntando por ele.
O guarda respondeu que não era
ele. Era outra pessoa e não estava no pátio por ser gente importante.
Gente importante? Como assim?
Ironizei que podiam ao menos me deixar tomar um banho e passar perfume antes de
encontrar e o guarda revidou “Desde quando bandido precisa de banho?”.
Pela primeira vez em muito tempo
não gostei de ser chamado de bandido. Algo em mim estava
mudando.
Cheguei em frente a sala e vi
vários guardas. Estranhei. Um abriu a porta e mandou que eu entrasse. Rindo
comentei “Caramba, que emoção, parece fim de novela. Quem será?”.
Ao entrar e deparar com a pessoa
sentada em uma cadeira quem tomou o susto fui eu.
“Juliana”?
ERA DA VIOLÊNCIA 2 (CAPÍTULOS ANTERIORES)
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