LIVRE DO AÇOITE DA SENZALA
*Capítulo da coluna "Enredo do meu samba" do blog Ouro de Tolo publicado em 31/08/2013
Quando acabou de contar a história desliguei o gravador e comentei “Você ta de sacanagem né?”. Ele perguntou porque e respondi “Conheci a Cristiane, ela fez uns serviços lá em casa, você não pegou aquela mulher”.
Luisinho sorriu e comentou “Ela está no Brasil, férias”. Assim que comentou seu celular tocou e ele atendeu. Disse que já estava descendo e mandou beijo. Desligou, olhou o relógio, comentou que estava na sua hora e mandou que eu olhasse pela janela depois que ele saísse.
Falei nada. Observei Luisinho levantar e quando o rapaz chegou na porta apontou para a janela. Quando saiu dei um tempo pra que ele chegasse na portaria e corri pra janela.
Lá observei uma mulata estonteante encostada em um carro importado. Luisinho apareceu, deu um beijo de tirar o fôlego na mulata e antes de entrar no carro acenou para mim. Era Cristiane.
Comentei sorrindo “que safado” e voltei ao trabalho. Meu telefone tocou. Era meu pai convidando para ver o jogo do Flamengo na sua casa.
Saí do trabalho e fui direto para a casa do meu pai. Cheguei logo com uma caixa de cervejas e seu Jair já preparara os petiscos que eu tanto gostava. Batatinha, calabresa, uma beleza.
Sentamos bebendo a cervejinha e assistindo ao jogo do Mengão quando meu celular tocou. Atendi e era Bia.
Engoli em seco e respondi que não teria como já que o jornal me designara pra cobrir um campeonato de surf em Santa Catarina e esse duraria uma semana inteira. Era verdade, não tinha motivo pra não querer ficar com minha filha.
Bia ironizou e comentou que eu já estava velho, estava na hora de evoluir e não trabalhar nesse tipo de eventos. Irritado respondi que era meu trabalho e pelo menos eu não era treinador de equipe de Handball como Zé. Antes que ela perguntasse se eu estava duvidando da masculinidade do namorado perguntei se ela tinha mais algo a dizer.
Bia respondeu que não, deixaria Julinha com a mãe e sem querer deixar escapar “tadinha”. De novo antes que ela dissesse algo falei que estava com meu pai vendo jogo do Flamengo, me despedi e desliguei.
Fiquei em silêncio enquanto o jogo rolava. Depois de um tempo perguntei se perdera algo e meu pai respondeu que o Bangu fizera um gol. Comentei “que chato” e meu pai disse “É, parece que o negócio entre eles está ficando sério”.
Olhando a partida falei que era o que parecia e comendo uma linguiça completei “O Zé vai levá-la até a casa dos pais para apresentá-la. Os pais devem ficar surpresos, pois deve ser a primeira vez que apresentará uma mulher como namorada”.
Meu pai riu, encheu meu copo de cerveja e comentou “O que eu gosto de você é seu humor”. Agradeci a cerveja e melancólico comentei “Foi só o que me restou”.
O Flamengo empatou o jogo e comemoramos. Falei que até que enfim uma coisa boa acontecia e meu pai disse que lembrara de uma história para o livro e me contaria no intervalo.
Quando acabou o primeiro tempo cobrei de meu pai a história e ele perguntou “lembra do Proença?”. Respondi que não e ele emendou “Um cantor, vou te contar a história”.
Realmente eu não conhecia. Proença era considerado uma das maiores revelações do carnaval carioca. Assim como Luisinho começou cedo como cantor. Tornou-se o principal intérprete dos “Filhos da Águia”, escola mirim da Portela.
Em pouco tempo já fazia parte do carro de som da agremiação de Madureira e defendia sambas concorrentes. Proença sempre foi obstinado. Estudava, trabalhava com o pai em sua loja de material de construção e ainda arrumava tempo para aulas de canto com Chico Donadoni. Considerado um dos papas do assunto.
Sua evolução era nítida, tanto que já nem precisava trabalhar com o pai. Arrumava um bom dinheiro defendendo sambas pelas quadras da vida e ajuizado como era, sabia guardar esse dinheiro para o restante do ano. Investia na sua carreira, seu talento. Seu sonho era ser o cantor principal de uma grande escola.
Um dia conversava com o pai em sua loja quando um dos irmãos entrou correndo no local. Proença perguntou o que ocorria e o irmão disse que tinha um pessoal em casa querendo contratá-lo pra defender um samba no Arranco de Engenho de Dentro.
Proença correu para casa e acertou tudo com os compositores.
O sonho de Proença começava a se realizar. O Arranco não era uma escola do grupo especial. Mas era uma escola tradicional, respeitada e certamente servia para seu começo de carreira.
Nesse meio tempo Proença decidiu deixar mais séria sua relação com Priscila, sua namoradinha de infância. Marcaram casamento pra logo depois do carnaval.
Priscila cuidava de tudo em relação ao casamento. Proença cuidava de sua preparação para cantar o samba na avenida e tudo caminhava bem.
No dia do desfile o rapaz estava bastante nervoso e a noiva o tempo todo tentava lhe acalmar. Na hora de sair o cantor pediu que ela lhe desejasse sorte e a noiva respondeu “Nós desejamos muita sorte amor”. Proença perguntou porque nós e Priscila respondeu em seu ouvido “estou grávida”.
Era tudo que Proença precisava, tudo que ele queria pra fazer um grande desfie. E fez. Cantou na Sapucaí como nunca cantara na vida e ganhou todos os prêmios, inclusive o S@mba-Net que vem a ser o principal prêmio do grupo de acesso.
O passe de Proença começou a ser disputado. O rapaz vivia um momento mágico. Casou-se, passou lua de mel em Poços de Caldas e voltou dizendo que devia muito ao Arranco e só deixaria a escola se fosse por uma do especial.
E o convite do especial veio.
Proença foi até Caxias conversar com os dirigentes da escola e acertou tudo. Seria apresentado numa grande festa na quadra no fim de semana como novo cantor da Grande Rio.
O rapaz saiu eufórico da quadra e na mesma hora ligou para sua esposa. Os dois choraram juntos ao telefone pela realização de seu sonho e Proença prometeu que o filho deles teria tudo, não faltaria nada para o menino.
O cantor pegou o carro feliz em direção de casa. Colocou o cd das escolas de samba daquele ano e cantava junto. Parou em um posto de conveniência e comprou uma sidra pra brindar com a esposa e uma caixa de bombons, coisa que ela tanto gostava. Não queria que seu filho nascesse com cara de bombom.
Voltou para o carro. Colocou as coisas no banco ao lado, sorriu e comentou “É neguinho, você conseguiu, você venceu”. Ligou o carro e partiu.
Andava distraído cantando sambas de enredo e passou próximo a uma favela. Sempre fez isso e nunca se preocupou, afinal, nascera em uma. Mas naquela noite seria diferente.
Três homens se jogaram na frente do carro apontando revólveres pra ele mandando que parasse. Proença tomou um susto freando bruscamente quase atropelando um deles.
Um dos homens foi com a arma até a janela de Proença e o cantor, nervoso, falou que poderiam levar tudo, só lhe deixassem vivo. O bandido respondeu que não iria assaltá-lo, só queria um “bonde”.
Os outros dois bandidos apareceram com um quarto baleado e abriram a porta de trás de Proença. Entraram com o bandido ferido e o líder, aquele que estava com a arma na janela, entrou no banco ao lado de Proença mandando que ele fosse até o hospital mais próximo.
O cantor não parava de chorar então o bandido apontou a arma pra sua cabeça e mandou que ligasse o carro senão morreria.
Proença ligou e partiu. Foram em direção do hospital com o rapaz pedindo proteção a Deus para que nada de mal lhe acontecesse.
Quando já estavam perto de chegar um carro da polícia mandou que parassem. O bandido mandou que Proença acelerasse e o cantor obedeceu. Acelerou e saíram em disparada com o carro da polícia atrás iniciando perseguição e tiroteio.
Mais na frente Proença acabou batendo com o carro em um poste e os bandidos desceram pra trocar tiros com a polícia. O cantor em desespero se abaixou no banco e colocou as mãos na cabeça não conseguindo parar de pensar em Priscila e no filho que estava para nascer. Chorava e pedia que Deus não lhe abandonasse.
Depois de cinco minutos de tiroteio percebeu um silêncio. Levantou os olhos colocando apenas uma parte da cabeça pra fora da janela e viu os corpos dos bandidos. Estavam todos mortos, inclusive o ferido no banco de trás do carro.
Desceu do veículo agradecendo a Deus por nada ter ocorrido com ele quando deu de cara com os policiais. Agradeceu aos homens da lei por terem lhe salvado quando um mandou que se ajoelhasse.
É..Macaco..Proença era negro como os bandidos.
O jovem se ajoelhou e o policial gritou “Olha pro chão crioulo”. Proença entendeu o que ocorreria quando o policial encostou o cano do revólver em sua cabeça. Baixinho disse “Te amo Priscila, te amo meu filho” e o policial atirou.
Morreu na hora. O sangue vermelho saiu do rapaz negro tomando conta daquela rua cinzenta.
A Grande Rio ficou sem cantor, Priscila ficou sem o marido e o filho que ainda nem nascera sem o pai..
..dá até vontade de chorar.
*Dedicado a Jackson Martins
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GAROTO MAROTO
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