A LIGAÇÃO
*Conto publicado na coluna "O buraco da fechadura" do blog "Ouro de tolo" em 06/04/2013
Lara era uma menina feliz, cheia de vida. Recém formada em
publicidade e propaganda conseguiu um bom emprego numa das principais agências
do país e começava a percorrer uma nova estrada.
Noiva de Guto planejavam casamento. O rapaz era advogado e
os dois tinham um amor em comum, por esportes radicais. Nos fins de semana praticavam
alpinismo, rapel, trilhas, vôo livre, eram cheios de saúde e energia.
Compraram um apartamento, móveis, eletrodomésticos para o
local e casaram-se na igreja da Candelária no Rio de Janeiro. Uma mega festa
foi realizada pelos pais do casal, pessoas ricas e no fim uma viagem a Paris
para a lua de mel.
Voltaram e caíram dentro do trabalho para as conquistas do
dia a dia. Guto e Lara cada dia que passava estavam mais apaixonados e a menina
tinha sonho de filhos. Depois de dois anos de casamento o casal resolveu que
era hora de tentar e começaram a pensar no primeiro rebento.
Algum tempo depois Lara notou o atraso de sua menstruação
e sentiu enjôos. Todos começaram a sentir esperanças e a moça resolveu fazer o
teste. Guto quando chegou em casa encontrou um sapatinho de bebê preso na porta
do quarto e começou a chorar. Lara estava grávida.
A moça teve uma gravidez tranquila, fez pré natal sem
problemas e descobriu que seria mãe de um menino a quem decidiram dar o nome de
Luis Antonio em homenagem ao pai de Lara.
Tudo ia bem e foi marcada cesariana. O casal decidiu
passar o fim de semana anterior ao nascimento na Serra. Estava friozinho então curtiam o tempo com fondue, vinho e a expectativa da
chegada do menino. À beira da lareira Guto e Lara faziam planos para o futuro,
imaginavam como seria a vida do filho, seu crescimento, a profissão que
escolheria e não conseguiam segurar a felicidade com o momento em que viviam.
Zezinho era um cara esforçado, trabalhador. Não teve muito
estudo na vida largando a escola no ensino fundamental. Desde pequeno
trabalhava para ajudar a família e aprendeu a fazer de tudo um pouco.
Eletricista, soldador, serralheiro, encanador, pintor, o que pintasse ele
fazia.
Conseguiu dessa forma juntar um dinheiro e comprou um
terreno na favela que morava. Com ajuda dos amigos aos poucos construiu a casa
própria, seu maior orgulho.
Tímido, nunca foi namorador, mas se apaixonou por uma
vizinha chamada Jurema. Tornaram-se amigos e um dia Zezinho tomou coragem e
conseguiu e declarar. Recebeu em troca um beijo apaixonado e assim foi o começo
do namoro.
Namoraram por um tempo e depois Zezinho sentindo-se
sozinho e com vontade de criar uma família decidiu chamar Jurema para morar com
ele. Em dois dias fizeram toda a mudança e começaram a dividir o lar.
Tiveram um início feliz. A grana era curta, mas dava pra
levar e o mais importante era que nada faltava em casa. Com o tempo compraram
tv nova, geladeira, coisas que a classe C tem oportunidade em tempos de melhoria
econômica.
E um ano depois veio Ramon, o filho do casal. Zezinho
gritava pela favela que agora tinha um herdeiro e comprou uma caixa de cervejas
pra comemorar com os amigos.
Zezinho trabalhava o dia todo prestando serviços em casas
da redondeza e começou a estranhar não encontrar a mulher em
casa. Desconfiava que era traído e a confirmação veio em uma manhã de domingo.
Zezinho acordou com o choro de Ramon e chamou por Jurema,
não obteve resposta. Levantou da cama, viu se o filho estava bem no berço e
procurou pela esposa na casa sem achar. Estranhando aquele sumiço encontrou uma
carta em cima da mesa na cozinha.
Leu a carta e era de Jurema. Nela a mulher pedia desculpas
por sua decisão e não ter tido coragem de falar pessoalmente. O chão de Zezinho
sumia a cada linha que lia. Jurema contou que se apaixonara por Adalberto, um
caminhoneiro da redondeza, eles começaram um caso e o homem chamou para morarem
juntos em Belém, sua terra natal.
A mulher aceitou o convite e naquela manhã eles foram embora
para o Pará. Mais uma vez Jurema pedia desculpas e que Zezinho tomasse conta do
filho que não teria como levar.
Zezinho leu a carta e seu coração começou a sangrar. Puxou
uma cadeira, sentou e começou a chorar. A mulher que amava o abandonara da
forma mais vil com um filho pequeno para criar.
Mas Zezinho não conseguiu dar conta da situação. A dor do
abandono era grande demais e ele se entregou à bebida. Acordava e bebia de cara
um copo de cachaça e eram muitos por dia. Deixou de trabalhar e sua situação financeira
ficou precária.
Vendeu seus instrumentos de trabalho e rapidamente gastou
o dinheiro com bebida. As pessoas uma a uma desistiam de ajudá-lo excetuando
seu irmão Djair, o único que ainda acreditava em sua recuperação.
Mas um dia Zezinho caiu na real e viu que estava no fundo
do poço. Foi quando recebeu visita do conselho tutelar que recebera denúncia contra ele. A hipótese de perder o filho apavorou
o homem.
Sabia que tinha que arrumar um emprego, mas não tinha mais
seus equipamentos. Pediu ajuda a Djair que trabalhava como enfermeiro em um
hospital e prometeu ver a ele o que poderia fazer.
Dois dias depois voltou contando que tinha vaga de
faxineiro perguntando se interessava. Zezinho que conseguia aos poucos vencer o
vício da bebida não pensou duas vezes e topou dando um abraço no irmão. Não
deixaria que levassem tão fácil seu filho.
Começou a trabalhar no hospital com esperanças de colocar
sua vida novamente no lugar.
O fim de semana acabou e Guto e Lara tinham que voltar ao
Rio de Janeiro. Chovia muito na serra e o caseiro aconselhou que ficassem e só
fossem embora segunda de manhã, mas Guto respondeu que era impossível já que
ele tinha reuniões importantes bem cedo.
Os dois se despediram e pegaram o carro. A chuva
atrapalhava muito a visibilidade da pista e Lara ficou com medo perguntando ao
marido se não era melhor pararem em algum lugar. Guto respondeu que não e pediu
que a esposa ficasse tranquila que logo estariam em casa.
Mas não foi o que aconteceu.
Guto dirigia em alta velocidade e não percebeu quando um
ônibus cortou o carro que estava a sua frente e entrou em contra mão. Só em
cima Guto percebeu o veículo vindo em sua direção e em um ato de desespero
tentou desviar. Mas bateram em cheio.
Guto bateu com a cabeça e desmaiou enquanto Lara foi
lançada para fora do carro.
O socorro chegou rapidamente e levou o casal ao hospital
mais próximo. Guto sofreu apenas escoriações e estava fora de
perigo, o drama maior vivia Lara.
A moça não só entrou em coma como em trabalho de parto. Os
médicos ao mesmo tempo tiveram que lutar pela vida da mulher e da criança.
Conseguiram salvar o bebê, Luis Antonio nasceu com saúde, mas a situação de
Lara ganhava contornos de desespero.
Foi transferida de helicóptero para um hospital do Rio de
Janeiro onde foi realizada uma cirurgia para drenar o sangue do cérebro. Depois
de mais de oito horas de operação e três paradas cardíacas a mesma foi
encerrada.
O médico chamou aos pais de Lara e passou a situação. Ela
sobrevivera à cirurgia, mas estava em coma profundo e não dava pra garantir
quando ela acordaria, poderia ser questão de dias, semanas, meses ou até mesmo
nunca mais acordar.
Os pais de Lara entraram em choque. Tiveram a notícia
feliz da chegada do netinho e ao mesmo tempo aquela tragédia. Lara era uma
jovem cheia de planos, com um futuro brilhante pela frente e agora estava
condenada a uma cama de hospital Deus sabe até quando.
O tempo foi passando. No começo Lara foi tomada por
cuidados de toda a família e de Guto que não saíam de perto da moça, mas com o
tempo parecia que o conformismo tomava conta das pessoas, ninguém acreditava
mais na recuperação. Guto decidiu retomar sua vida, conheceu uma moça e foi
morar com ela. A família de Lara mal visitava, só a mãe ia as vezes ver como
estava a filha.
Dois anos se passaram, dois anos em coma.
Até o momento que Zezinho começou a trabalhar no hospital.
Zezinho passava pelo corredor recolhendo o lixo quando
olhou por curiosidade para um quarto. Viu uma moça dormindo, um sonho que parecia profundo. Era Lara.
Sem ninguém por perto Zezinho entrou no quarto e viu Lara
em seu coma. Sentiu pena da moça, era uma mulher tão linda, com um jeito tão
sereno e lá naquele leito.
Zezinho olhou Lara por alguns minutos embevecido com sua
beleza e depois ao ouvir barulho no corredor resolveu sair, mas não conseguiu
esquecer a moça. Em casa enquanto jantava com o filho, assistia televisão ou
tentava dormir só pensou em Lara.
No dia seguinte de novo Zezinho olhava Lara pela porta. Ao
notar que não havia ninguém por perto entrou novamente no quarto, mas dessa vez
pegou uma cadeira, sentou-se ao lado e ficou admirando Lara.
Passou a mão em seus cabelos e comentou “como pode, uma
moça tão bonita numa cama dessas?”. Zezinho era um homem muito solitário e
acabou encontrando naquela mulher em coma uma companhia.
Naquela noite passou horas no quarto de Lara contando
sobre sua vida. Contou até sobre a traição de Jurema e a luta pela guarda do
filho. Abriu seu coração de uma forma que nunca fizera antes e só saiu do
quarto quando acabou seu expediente. Saiu do hospital aliviado.
E foi assim dia após dias com Zezinho sempre indo ao
quarto visitar sua “nova amiga”. O rapaz contava sobre tudo o que ocorria na
sua vida, seu dia a dia e que pesquisava em livros sobre a forma de ajudar alguém
em coma e prometeu que lhe ajudaria.
Zezinho levava revistas e livros e lia para Lara com as
dificuldades de alguém com pouco estudo. Levava músicas e colocava fone em seus
ouvidos para que ouvisse, o homem estava determinado a ajudar Lara.
Comentou com Djair que conhecera uma mulher muito
especial. O irmão ficou entusiasmado por ver finalmente Zezinho se empolgar por
outra mulher e perguntou quem era. Zezinho respondeu que ele não conhecia,
Djair perguntou se tinha futuro e o irmão respondeu “quem sabe quando ela
acordar”.
Uma manhã Zezinho ouvia rádio em casa antes de ir
trabalhar, ouviu uma música gospel linda e achou que essa música poderia ajudar
Lara. Saiu mais cedo de casa, foi a uma lan house e conseguiu baixar a música e
colocar no seu MP3.
Correu para o hospital na esperança de ver Lara ter alguma
reação. Percebeu o corredor vazio e entrou no quarto. Lara estava da mesma
forma de sempre, Zezinho então contou a moça que tinha uma surpresa, algo que
poderia ajudar e colocou o fone em seus ouvidos.
Zezinho assistia Lara ouvir a música com esperanças no
coração quando notou uma lágrima cair do olho esquerdo da moça, gritou “É
isso!! É isso” quando a mãe de Lara entrou no quarto com um medico e perguntou
o que ocorria.
Nem deu tempo de Zezinho responder nada. O médico chamou
os seguranças que entraram no quarto e tiraram o homem de forma violenta
enquanto ele gritava que ela acordaria.
Enquanto Zezinho era demitido na sala da direção Lara
abriu os olhos para espanto da mãe e do médico e perguntou o que acontecia.
Desolado, triste, fracassado Zezinho subia o morro sabendo
que nunca mais conseguiria ver Lara e sem emprego reduziria as chances de
manter a guarda de seu filho. Foi quando notou um caminhão descendo a ladeira e
pior, era o de Adalberto carregando Jurema e Ramon.
Zezinho se desesperou ao ver seu filho sendo levado e se
jogou na frente do caminhão sendo atropelado. Adalberto nem parou, foi embora
com Jurema e Ramon enquanto Zezinho era acudido por populares.
Homem pobre, em lugar pobre a ambulância demorou a chegar
e Zezinho foi levado a um hospital público com demora de atendimento no local
devido o excesso de gente e a falta de médicos.
Algumas semanas depois uma moça entrou no hospital, andou
pelos corredores cheios e subornou um funcionário para que pudesse entrar na
UTI.
Foi até um quarto e viu Zezinho lá todo entubado, em coma
lutando pela vida.
Era Lara.
A moça se aproximou da cama, abriu a bolsa e pegou um MP3
de dentro dizendo “você esqueceu comigo.”.
Colocou os fones no ouvido de Zezinho com a música gospel
que o homem lhe ajudara a acordar e acariciando seus cabelos falou “agora é a
sua vez”.
Uma ligação criada na dor que só Deus seria capaz de
explicar.
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