JESUS FAVELADO NO PAÍS DA MISÉRIA
Conto da coluna "O buraco da fechadura" publicada no blog "Ouro de Tolo" em 16/11/2013
Próximo ao fim do ano, uma chuva
torrencial caía sobre a cidade do Rio de Janeiro. As pessoas
trancaram-se em casa sabendo que sempre com essa chuva vem o caos, mas
nem todo mundo tem a sorte de ter uma casa.
Um casal não tinha essa sorte e, pior, a
mulher estava grávida. O casal andava pelas ruas da cidade encharcada,
com o marido tentando proteger a esposa daquele temporal.
Andaram por várias ruas da cidade
pedindo ajuda nas casas, mas ninguém abriu as portas para receber o
casal. Medo da violência, de ser um truque, ou mesmo falta de compaixão
impediam a ajuda.
A mulher, desesperada, entrava em
trabalho de parto e o marido pediu que se acalmasse. Foram para debaixo
de uma marquise úmida e mofada e o homem, sem jeito e com o instinto de
pai, pediu que a esposa relaxasse e começou o parto.
Parece que sob uma luz divina o homem
conseguiu fazer o parto como se fosse um médico experiente e a mulher,
mais calma, pariu um lindo menino.
Como por encanto, a chuva parou quando o
menino nasceu e imediatamente a noite ficou estrelada com uma delas,
mais forte, parecendo querer sinalizar a presença do menino. Um arco
íris surgiu no céu enquanto as pessoas saíam de casa para acompanhar
aquele estranho fenômeno de um arcoíris à noite.
O homem enrolou seu menino em um pano
encontrado no local, fazendo deste um manto, e o entregou nos braços da
mãe, que, molhada de suor e chuva, deu um beijo em sua testa dizendo
“meu menino”.
Guiados pela estrela mais forte do céu,
três mendigos chegaram embaixo da marquise e perguntaram se ali que
acontecera um nascimento. O pai respondeu que sim e os três se
apresentaram como Belchior, Baltasar e Gaspar e que viviam próximos
dali. Contaram também que tinham presentes para a criança e ofereceram
umas notas amassadas de real, um maço de cigarros e uma lata de leite em
pó.
O homem agradeceu e Belchior perguntou
seu nome. Ele respondeu que era José e sua esposa Maria. Baltasar
comentou que era muita coincidência e só faltava o menino se chamar
Jesus. José respondeu que sim, ele se chamava Jesus e Gaspar,
ironizando, perguntou se era a volta do Messias.
Maria, cansada do parto e deitada em um
papelão com o menino, respondeu que sim, seu filho era Jesus Cristo e
voltava à Terra para novamente nos salvar. Os três mendigos começaram a
rir e José pediu paciência à esposa, que passaria muito por isso.
José e Maria, católicos fervorosos, se
conheceram no interior do Nordeste e combinaram se casar. Ainda noiva,
Maria contou a José que um anjo aparecera e contara que ela viria a
conceber do Espírito Santo. O homem de início não aceitou a gravidez e
afastou-se da noiva, mas, tenente a Deus, José sonhou com o anjo e o
mesmo lhe contou toda a situação, com ele aceitando.
Dessa forma se casaram.
Familiares e amigos achavam os dois
loucos e aos poucos se afastaram do casal, depois, com a gravidez de
Maria, passaram a hostilizá-los e José, pensando no menino, propôs à
esposa que vendessem tudo e fossem para o Rio de Janeiro.
Chegando na rodoviária carioca foram assaltados e ficaram sem nada, acabando naquela situação relatada no parto.
Sem dinheiro e sem conhecer ninguém na
cidade, tiveram de ficar pelas ruas. Vagavam de rua em rua, marquise em
marquise, papelão em papelão e o menino ia crescendo nessa situação.
José trabalhava catando latinhas para vender enquanto Maria tomava conta
do filho.
Antes de fazer dois anos, Jesus e seus
pais viviam com outros moradores de rua debaixo de um prédio desativado
no centro da cidade quando uma das crianças roubou no trânsito a bolsa
de um oficial do BOPE. A vingança veio de madrugada quando policiais
fortemente armados e com toucas ninjas para não serem reconhecidos
apareceram no local e metralharam todas as pessoas que encontravam pela
frente, principalmente as crianças.
José e Maria esconderam-se com Jesus
dentro de uma caçamba que recolhia lixo e a mulher desesperada pedia
para o filho ficar em silêncio. De dentro da caçamba viram o tenente
Herodes comandar a chacina e no final revistar e chutar cada corpo
procurando pelo relógio até que encontrou e chamou os comparsas para
irem embora e voltarem depois pra eliminar quem sobrou vivo.
José e Maria, sabendo que corriam
riscos, foram embora e continuaram vagando pela cidade até que José
conseguiu um emprego como carpinteiro. Com o tempo conseguiram dinheiro
para alugar um barraco na favela Nova Jerusalém onde, finalmente,
estabeleceram moradia.
Ali, Jesus cresceu e tornou-se adulto,
um adulto especial, diga-se de passagem. Culto, sério, sem cair na
tentação da promiscuidade ou do ilícito Jesus, se tornou uma referência a
todos na comunidade sendo respeitado até pelos traficantes.
Com poderes de cura, Jesus atendia a
todos em sua casa que sofriam de algum mal sem distinguir branco de
preto, pobre de rico. Todos esperavam em fila, não importando se
chegassem na favela de carro do ano ou se viessem debaixo de uma
marquise como foi com ele no início da vida.
E curava todos os tipos de enfermidade,
até mesmo as piores. Andou sobre as águas para salvar uma criança que
era levada pela enchente numa terrível chuva que caiu sobre o Rio e
dizem até que ressuscitou um morador da favela que morreu debaixo dos
escombros de seu barraco que desabou nessa mesma chuva.
Os seus feitos e suas palavras que cada
vez alcançavam mais adeptos começou a chamar atenção fora da favela. O
governador pedia para que o secretário de segurança ficasse atento para
ver se aquele homem não lhe traria problemas e a imprensa ávida quis
saber informações daquele homem.
Foi convidado a participar de um
programa do tipo “mundo cão” que passa de tarde na TV e mal deixaram o
Messias falar. Toda hora Jesus era interrompido para falarem do ator da
novela das oito que foi flagrado traindo a esposa em um show e por uma
mulher com voz de taquara rachada que vendia câmera digital que custava
um real por dia.
Um jornalista em especial assistia a
tudo pela TV entediado esperando começar o jogo do seu time. O nome dele
era Franco Barroso e trabalhava em um jornal chamado “Quinze minutos”,
que o povo falava “carinhosamente” que se “espremesse saía sangue”.
Além de entediado, Franco estava
enjoado, acabara de chegar do médico e sua empregada perguntou se estava
tudo bem, Franco respondeu que sim e qualquer coisa lhe chamaria.
O homem se interessou por aquele
personagem na televisão e ligou para o diretor do jornal perguntando se
ele via aquela cena. O homem respondeu que não e Franco mandou que
colocasse na emissora. Depois de um tempo, o diretor falou “ele é um
farsante” e Franco sem tirar os olhos da TV pediu “me deixe
entrevistá-lo, me deixe desmascará-lo”.
Franco subiu a favela e foi até a casa
de Jesus. Viu o homem atendendo os doentes, orando sobre seus corpos
para curá-los e a todo tempo falando frases que pregavam o amor e a paz
aos homens de boa vontade. Franco ria e falava baixinho que aquilo era
quase um livro de auto ajuda quando Jesus lhe chamou e disse “é sua
vez”.
Franco sentou à sua frente e respondeu
que foi ali entrevistá-lo, não se consultar, e Jesus perguntou há quanto
tempo ele tinha câncer.
O repórter se assustou, pois,
pouquíssimas pessoas sabiam de sua doença e perguntou quem havia lhe
contado. Jesus colocou sua mão sobre o estômago de Franco, o local que
estava doente e rezou um “Pai Nosso”.
Franco, assustado, assistia à cena de
Jesus concentrado, encostado em seu estômago, e, depois de um tempo, o
santo homem virou para Franco e contou que ele estava curado.
O homem imediatamente foi embora e
furioso por achar que Jesus brincou com sua doença. Foi à redação do
jornal e escreveu uma matéria arrasando o Cristo e no dia seguinte o
jornal bateu recordes de venda.
De tarde, Franco foi ao médico fazer
exames de rotina e em alguns dias voltou ao local para pegá-los.
Encontrou o médico espantado e Franco assustado perguntou qual era o
problema.
O médico pediu que ele se sentasse e,
sentando lentamente, como se recebera um baque, o médico contou que
Franco estava curado. O repórter boquiaberto pediu que o médico
repetisse e o doutor contou que não existia nenhum resquício de câncer
em seu organismo, era um milagre.
Franco, zonzo, lembrou de Jesus e subiu a
favela atrás do Messias. Entrou na casa que ele atendia e emocionado
andou devagar até o homem e ajoelhou-se a sua frente. Jesus pediu que
ele levantasse, limpou as lágrimas de Franco com as mãos e com sorriso
largo falou “sabia que você voltaria”.
Franco quis escrever nova matéria no
jornal sobre Jesus, mas a direção não deixou. Escreveu então em seu blog
mostrando com mais seriedade o trabalho do homem, revelando que fora
curado de um câncer por ele e admitindo no fim que ele era Jesus Cristo.
A reportagem caiu como uma bomba no
país, o blog teve recorde de acessos e a mídia do Brasil inteiro foi
atrás de Jesus querendo saber mais quem era esse homem.
Jesus aproveitou para passar suas
palavras, o que incomodou muito o governo. O homem pregou contra os
governantes e a forma que esses tratavam o povo e, como era época de
eleição, o governador ficou prestes a “ter um filho” gritando que aquele
homem tinha que calar a boca.
Ao mesmo tempo Jesus desafiava os
traficantes expulsando os mesmos de sua casa quando percebeu que alguns
deles tentavam vender drogas na fila do atendimento. Os dois lados
“queriam” sua cabeça e se uniram para eliminar o inimigo.
Através de um de seus doze auxiliares
nos atendimentos, descobriram todos os hábitos de Jesus e não foi
difícil que em uma noite traficantes lhe pegassem sozinho entrando em
casa e dizendo que precisavam ter uma conversa.
Deram uma surra no homem e fizeram com
que ele carregasse um tonel até o alto da favela. Jesus todo machucado
carregava o tonel nas costas enquanto os moradores da favela pediam
piedade a Pilatos, o dono do tráfico. Maria, com um pano, limpou o rosto
do filho e implorou por sua vida, com Pilatos mandando que tirassem a
mulher do caminho.
Chegaram com Jesus no alto da favela e
mandaram que ele colocasse o tonel no chão. No local tinha um ouro
bandido. Um estuprador de crianças e Pilatos mandou que seus comparsas
escolhessem um pra matar e outro pra soltar. Eles escolheram soltar o
estuprador e Pilatos virou para Jesus dizendo “lavo minhas mãos, ta
ligado?”.
Gritou “rala peito” pro estuprador, que
desceu correndo e colocaram Jesus dentro do tonel. Encharcaram seu corpo
com gasolina e Pilatos acendeu o fósforo para jogar. Jesus gritou “Pai,
por que me abandonaste?” e Pilatos jogou o fósforo ateando fogo no
Cristo.
Passado um tempo apagaram o fogo e jogaram o corpo de Jesus em um matagal usado para desova dando o serviço como feito.
Mas não foi bem assim. A mídia deu
grande importância ao fato e os dois dias seguintes foram de terror na
cidade. As revistas e jornais escancararam as ligações do governador com
o crime e com outros crimes e ele não aguentou a pressão, se enforcando
em seu gabinete. O povo revoltado enfrentou os traficantes e seus fuzis
linchando os bandidos e matando Pilatos a pancadas.
A polícia tentou intervir tentando
acabar com a fúria do povo e, debaixo de uma chuva torrencial, como no
nascimento de Jesus, entraram em confronto, enquanto algumas pessoas
tentavam achar seu corpo no matagal.
Tiros de borracha de um lado, paus e
pedras no outro, enquanto os amigos de Jesus gritavam que seu corpo
sumira. Era o caos misturado à chuva e à lama.
Até que de repente a chuva parou e a noite e suas estrelas apareceram.
Uma grande luz surgiu e todos abismados
viram Jesus subindo ao céu naquele facho de luz. Ele subia com uma
túnica branca no céu estrelado do Rio de Janeiro e com sorriso no rosto,
enquanto a população olhava sem pronunciar uma palavra.
De repente, ele abriu os braços como se
fosse o Cristo Redentor e desapareceu. Todos continuaram olhando até que
um a um foram pra casa sem falar nada, apenas o silêncio acompanhava
aquela noite.
Franco voltou para a casa, ligou o
computador e ficou olhando para ele, pensando em tudo aquilo que
presenciara e no que poderia escrever sobre aquela noite fantástica para
o blog. Ficou um bom tempo olhando para a tela até que escreveu uma
frase, desligou o computador e foi dormir.
A frase era..
…livrai-nos sempre do mal, amém.
Feliz Natal
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