DOMINGO NO PARQUE
*Conto publicado no blog "Ouro de Tolo" em 19/10/2013
Gil e João eram aquele tipo de amigos
inseparáveis. Nasceram com espaço de quinze dias entre um e outro e
praticamente vizinhos. Suas mães já eram amigas e isso facilitou nessa
amizade, que parecia mais uma irmandade.
João, brincalhão, sempre foi
carismático. Bom de bola, galanteador com as meninas sempre fez sucesso
com o sexo oposto só não sendo muito bom nos estudos. Desde pequeno
fascinado com carros e motos aprendeu com o tio o trabalho de mecânica e
além disso vendia balas no trânsito e engraxava para arrumar um trocado.
Gil já era mais centrado, quieto, mas
também dono de temperamento explosivo. Se pisassem no calo dele virava
fera e não era raro brigar na rua. Aprendeu com o pai a lutar capoeira e
com o irmão mais velho boxe. Ao contrário de João Gil era muito bom nos
estudos e sempre tirava notas altas, mas também ao contrário do amigo
não conseguia ter sucesso com as meninas devido à sua timidez.
Gil e João, muito diferentes, mas que se completavam nessa diferença.
Saíam quando moleques juntos para
trabalhar. Gil acordava mais cedo e batia na porta de João chamando o
amigo. João descabelado e com cara de sono atendia a porta e pedia cinco
minutos ao amigo enquanto ia tomar um banho. Gil entrava na casa e
falava para a mãe de João “bom dia tia” sentando-se a mesa para tomar
café com eles.
E de lá saíam para a labuta. Iam para a
rua vender doces, pegavam ônibus oferecendo aos passageiros e João
entusiasmado falava do que aprendeu com o tio na oficina e contava ao
amigo que ainda teria uma.
Gil guardava para si seus sonhos e só
ouvia o amigo falando. Dividiram muitas histórias juntos, algumas vezes
não tinham o que comer e dividiam um salgadinho e um copo de guaraná
natural. Almoçavam um na casa do outro quando não tinha comida na sua e
dividiam sonhos, esperanças e medos.
E os meninos foram crescendo, virando
rapazes e correndo atrás de seus sonhos. João trabalhava na oficina do
tio, Gil como feirante sonhando em ter sua própria mercearia, ser
advogado e dar aulas de capoeira.
Tinham desejos como é o normal de
rapazes e todo sábado iam à zona aplacar suas vontades. Bebiam suas
cervejas, arrumaram uns chamegos e voltavam pra casa felizes e
embriagados para descansar e esperar a nova semana que surgia.
As vezes quando sobrava um
dinheirinho iam domingo ao parque de diversões novo que construíram
perto do riacho. Curtiam montanha russa, trem fantasma, roda gigante e jogos como pescaria, acertar bolas em latas e principalmente os que valiam dinheiro. E gostavam de paquerar as meninas também. Mais o João porque Gil era tímido e se retraía vendo o amigo agindo, mas teve um dia que sua sorte mudou.
João conversava animadamente com duas
meninas quando Gil se aproximou com um algodão doce. João apresentou as
meninas para o amigo e mandou que ele pegasse mais três. Ele foi e
buscou. Enquanto João batia papo com uma Gil e a outra garota ficaram
quietos de forma tímida. Gil tentando vencer a timidez perguntou seu
nome e ela respondeu Ritinha.
Passados mais alguns minutos ele de novo
se encheu de coragem e perguntou se ela estava gostando do parque.
Ritinha sem encarar Gil nos olhos respondeu que sim e João vendo que a
situação ali não de desenrolava chamou todos a ir à barraca de tiro ao
alvo. A brincadeira era com uma espingarda conseguir acertar uma bexiga
de gás e João tentou várias vezes, não conseguindo acertar. Gil era bom
com armas, aprendeu a atirar com o pai e num tiro só conseguiu acertar a
bexiga ganhando um bicho de pelúcia.
Gil recebeu o bicho e discretamente João
falou em seu ouvido “dá pra menina”. Gil ofereceu à Ritinha que com um
sorriso envergonhado agradeceu.
Mais tarde João já estava agarrado e
fazendo saliências com sua acompanhante no muro da igreja enquanto Gil e
Ritinha sentados na calçada comiam maçã do amor em silêncio até que Gil
se encheu de coragem e pegou na mão da menina com Ritinha aceitando.
A relação de João com sua
acompanhante só durou aquela noite, mas a de Gil com Ritinha acabou em
namoro. Namoro comportado de ir ao cinema, igreja, namoro em casa. A
família de Ritinha era religiosa e a moça não permitia muitas
liberdades, além de Gil ser respeitador.
Em poucos meses noivaram e marcaram
casamento. A despedida de solteiro de Gil foi organizada por João que
levou o rapaz à zona e mandou que ele escolhesse qualquer mulher ali que
pagaria. Gil agradeceu sorrindo, mas disse que não podia aceitar, pois,
seu coração e seu corpo já tinham dona. João olhou o amigo sem entender
e lhe deu um abraço desejando que ele fosse muito feliz.
No dia seguinte, no casório, João
parecia tão nervoso quanto Gil. O noivo brincava com o amigo dizendo que
parecia que ele que casaria e João que era o padrinho e pela primeira
usava terno reclamava que aquilo pinicava. Gil casou e durante a
cerimônia João limpava as lágrimas no seu rosto vendo o amigo ali no
altar. Na festa cortou a gravata de Gil em pedacinhos e vendeu, entregou
a grana ao amigo e mandou que ele não abusasse.
Gil conseguira juntar um dinheirinho e
conseguiu passar lua de mel com Ritinha na região serrana do Rio.
Voltaram e trataram de batalhar pra ter uma vida legal. Gil arrumou
emprego em uma loja de tintas enquanto fazia cursinho à noite para
entrar na faculdade. Ritinha fazia doces para festas em casa.
Estudou muito e conseguiu
passar para uma faculdade particular. Deu uma pequena festa em casa onde
João em discurso disse o quanto tinha orgulho do amigo e que tinha
certeza que um dia ainda lhe veria doutor. Até que no primeiro dia de
aula Gil todo feliz seguia numa Kombi estilo “lotada” para a faculdade e
ela correndo fez uma ultrapassagem perigosa e bateu de frente com um
ônibus.
Foi um drama. Gil ficou semanas em coma
entre a vida e a morte e foi um alívio quando acordou. Mas um drama
começava aí, porque ao acordar Gil não sentiu as pernas e perguntou ao
médico o que ocorrera. O médico sentou ao seu lado na cama e contou que
ele sofrera fratura na coluna cervical e que era um tipo de fratura que
infelizmente trazia problemas de locomoção.
Ritinha abraçada a João chorava ouvindo
tudo da porta e Gil perguntou ao médico se ele não voltaria mais a
andar. O médico olhou nos olhos de Gil e respondeu que infelizmente não.
Gil fechou os olhos e lacrimejando pediu
pra ficar sozinho. O medico se retirou e Ritinha entrou no quarto pra
tentar consolar o marido. Gil transtornado gritou com a esposa que
queria ficar sozinho e João entrou tirando a moça do quarto. Começava
ali o inferno. Gil não se conformou com a nova situação. Largou o
emprego, a faculdade e passou a beber em demasia. Tornou-se um homem
amargo, deixando aflorar seu lado brigão.
O relacionamento com Ritinha foi
deteriorando com o tempo. No começo a mulher apoiava, mas quanto mais
ela apoiava mais Gil se irritava e reclamava que ela tinha pena dele e
ele não precisava da pena de ninguém. Ritinha argumentava que não era
pena, era amor e Gil uma vez jogou um copo de cachaça contra a parede
dizendo que não precisava do amor dela nem de ninguém e que ela tinha
que ir embora porque nem transar ele conseguia mais.
Tentou também afastar o amigo João de
sua vida, mas João não deixou. Um dia encontrou Gil em casa bêbado na
cadeira de rodas e levou o amigo na marra para debaixo do chuveiro dando
lhe um banho gelado.
Enquanto Gil debaixo da água reclamava
da vida e mandava João sumir esse respondia que não sumiria e tinha
arrumado para Gil trabalhar na barraca de um primo seu na feira. Gil
reclamava que não podia mais trabalhar, nem capoeira podia mais jogar e
João mandou que parasse de reclamar da sorte, pois estava vivo.
Gil todo molhado virou para João e falou
“vivo? Da cintura pra baixo eu estou morto e isso me basta”. João sério
respondeu ao amigo “pois trate pelo menos de ressuscitar sua cabeça
antes que você perca sua mulher”.
Gil amargurado via João abrir sua
oficina, ganhar dinheiro e andar com mulheres lindas, praticar esportes.
Via Ritinha linda fazendo seus doces e chamada para abrir sociedade em
um buffet e ele em cima de uma cadeira de rodas tendo que ajudar a
descarregar peixes de caminhão para vender na feira e ganhar uma
miséria. A inveja e o ódio começaram a tomar conta do coração de Gil.
Comprou uma arma e colocou na cabeça tentando se matar, mas não teve
coragem e furioso arremessou o revólver longe.
Uma noite Ritinha dormia e acordou com
um clique. Quando olhou viu Gil completamente bêbado com a arma apontada
para a cabeça dela brincando de roleta russa. Desesperada pediu que o
marido parasse e ele rindo apertou o gatilho de novo, não tinha bala na
agulha e Gil gargalhou dizendo que ela estava com sorte. Aquela foi a
gota d`agua. No dia seguinte Ritinha arrumou suas coisas e foi embora
para a casa dos pais.
De tarde João foi até a casa do amigo
perguntar se ele estava louco e como pôde fazer aquilo com Ritinha. Gil
bebendo cachaça pela garrafa mandou que João não se metesse na sua vida e
fosse embora. João começou uma série de broncas em Gil que nem prestava
atenção até que pegou a garrafa de Gil e arremessou na parede dizendo
que agora iria lhe escutar.
Gil furioso gritou que não queria mais a
amizade de João e nunca mais ver sua cara. João olhou firme para o
amigo e respondeu “seja como você quiser” indo embora. Gil cada vez se
afundava mais na cachaça e acabou sendo demitido pelo primo de João. Os
meses se passaram e o homem amargurado procurou algumas vezes Ritinha
para tentar voltar e ela não quis, acabou se entregando de vez a bebida e
as drogas.
Recebia dinheiro da família para comprar
comida e em vez disso ia à bocas de fumo comprar cocaína e passar a
noite cheirando em sua casa ou ficava pelos bares bebendo cachaça.
Um domingo chegou cedo
para beber e ficou lá o dia todo. Enquanto estava com o copo um homem
jogava sinuca e perguntou se ele tinha visto Ritinha. Gil respondeu que
não e homem emendou que ela estava linda e um novo amor sempre fazia bem
as mulheres. Gil deixou o copo cair no chão e perguntou que história
era aquela de novo amor. O homem deu uma tacada e respondeu “vá ao
parque que você descobre”.
Gil pegou um táxi e foi ao parque. Rodou
por tudo procurando Ritinha até que lhe viu na roda gigante com um
sorvete de morango na mão.
Acompanhada de João.
Não tem mais confusão.. ê João..
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