O SERVO DE DEUS
*Conto do livro "O buraco da fechadura" publicado no blog "Ouro de Tolo" em 5/10/2013
Cela úmida, um gotejar que incomoda a
quem não está acostumado, mas a Ezequiel não. Ratos passeiam pelo local
para cima e para baixo como se fossem os donos dali, os únicos com
direito a liberdade e naquele lugar super lotado em que as pessoas se
revezam para dormir e aproveitando o pouco de luz que entra Ezequiel lê a
Bíblia. Ezequiel lê o livro sagrado todos os dias, quando acorda e
antes de dormir. Reflete sobre a vida, os ensinamentos de Cristo e a
diferença que os mandamentos fizeram em sua vida.
Mas nem sempre foi assim…
Ezequiel nasceu no inferno e foi criado
como filho do diabo. Nascido e criado em Goiás Ezequiel era o mais velho
de quatro irmãos tendo uma mãe crente e um pai bêbado. Muito menino
conheceu a violência. O pai violento era na verdade um grande inimigo da
família. Gostava de bater na mãe com cinto, madeira, o que encontrasse
na frente e foi capaz de cegar um dos filhos que tentou defendê-la em
uma briga.
De tanto apanhar a mulher um dia não
aguentou e foi embora de casa com os filhos indo para a casa de uma
irmã. O homem não se conformou e rondou a casa, perseguia a esposa e
fazia ameaças para que ela voltasse. A mulher deu queixa na polícia e o
pai de Ezequiel sofreu uma medida cautelar em que não podia se aproximar
a menos de duzentos metros da esposa.
Mas ele não quis saber de ordem
judicial, policial, de nada. Apareceu armado na casa da tia de Ezequiel
disposto a matar a esposa.
Aproveitou que ela estava sozinha em
casa e surrou a mulher. No fim, ela encharcada de sangue caída no chão
viu o marido tirar a arma da cintura e apontar. Ezequiel chegou em casa e
viu toda a cena entrando em desespero não sabendo como salvar a mãe.
Enquanto o pai engatilhava a arma Ezequiel achou uma barra de ferro e
viu o pai dar um tiro no peito da mãe.
Quando ele apontou para a cabeça da mulher pronto para dar o tiro fatal Ezequiel não pensou duas vezes e deu com a barra nas costas do pai. O homem caiu e Ezequiel cego pelo ódio partiu para cima do homem batendo com o ferro.
Ezequiel não conseguia parar, parecia
com o diabo no corpo e espancou o pai até a morte. A polícia chegou e
encontrou Ezequiel batendo em seu pai já completamente desfigurado e lhe
conteve. O garoto queria bater mais e foi algemado, enquanto médicos
chegavam pra tentar salvar a mulher.
Ezequiel foi levado para um centro de
reabilitação e no local descobriu que sua mãe não resistira e morrera.
Não esboçou nenhuma reação com seu olhar tomado pelo ódio. No mesmo
instante descobriu também que matara o pai e apenas respondeu “que ele
esteja no inferno”.
Ezequiel com apenas quatorze anos de idade já era um assassino.
Ficou algum tempo no centro de
reabilitação e lá aprendeu a ser bandido. Era matar ou morrer tendo que
aprender a se defender pra manter sua integridade física e aos poucos se
tornou um líder dos jovens delinquentes. Matou um rival a facadas e
deixou pendurado no gol em que jogavam futebol, para mostrar sua força.
Com um ano de internado no lugar, a surpresa. Ele foi liberado.
Nem o próprio Ezequiel acreditou. Ele
andava até a porta da casa quando viu o diretor do instituto conversando
com um homem com chapéu de couro, o diretor espantado perguntava “O
senhor tem certeza que levará esse moleque? Ele é o cão”. O homem fumava
um charuto e respondeu “é desse tipo que eu preciso”.
Ezequiel se aproximou e o diretor contou
que ele iria embora com o coronel Viriato, o coronel estendeu a mão
para que Ezequiel beijasse e ele respondeu cheio de ódio: “não beijo mão de ninguém nesse mundo”.
O diretor dava broncas em Ezequiel pela audácia enquanto o coronel dava
sua baforada e gargalhava: era exatamente o que ele queria. Coronel
Viriato era o homem mais poderoso da região, o mais rico, mais temido e
maior detentor de terras.
Levou Ezequiel para sua casa e lá o menino perguntou o que o homem queria com ele. Viriato olhou bem para Ezequiel e respondeu “você já conhece bem a morte, sabe matar um homem como se mata um passarinho”. O menino respondeu que a morte era sua companheira e Viriato contou que também seria sua fonte de renda.
Ezequiel fora tirado do centro de
reabilitação para matar. Tornou-se assassino profissional, tirando do
caminho todos os inimigos do coronel, seja outro fazendeiro, policial,
bandido ou algum sindicalista, sem terra… Não poupava ninguém e ninguém
era louco de contestar o coronel, que ganhava passe livre para seus
desmandos. Ezequiel tornava-se uma pessoa temida mesmo tão jovem.
Mas um dia o coronel morreu em um
infarto fulminante e Ezequiel se viu sem seu escudo a mercê dos inimigos
que criou ao longo do tempo. Não teve outro jeito e fugiu para o Rio de
Janeiro. Na capital carioca continuou com seu ofício trabalhando para
banqueiros do jogo do bicho. Mas mesmo com todo o poder que os bicheiros
tem eles não tinham as costas largas como o coronel e um dia Ezequiel
foi pego, sendo condenado a mais de trezentos anos de cadeia.
O começo na prisão foi bem complicado e
como no centro de reabilitação Ezequiel teve que usar toda a violência
que aprendeu para sobreviver até que um dia lhe convidaram para um culto
– e nesse culto sua vida mudou.
Conheceu Jesus, sua palavra e
transformou-se naquele homem que ilustrava o começo da história.
Ezequiel finalmente conheceu a paz, a serenidade, dava conselhos aos
mais jovens e a eles passava os ensinamentos do senhor. Faltava conhecer
o amor e até isso ele conheceu.
Graziela era uma estudante de serviço
social e fazia estágio na prisão onde gostava de conversar com os presos
e saber seus problemas, mas ela não era apenas isso. Graziela era uma
das mais atuantes membros de uma ONG a favor dos direitos humanos que
incomodava muito políticos, juristas e policiais corruptos por suas
denúncias e manifestações.
Um dia parou para conversar com Ezequiel
e ouvir sua história. Ezequiel era apenas um pouco mais velho que ela e
com sua intensa história de vida e sua boa e articulada oratória
Graziela surpreendeu-se e se comoveu com o que ouviu. Voltou para casa
pensando em tudo que escutara e ficava repetindo a gravação que fez.
Tornou-se amiga de Ezequiel e acabou
ajudando o homem em seus cultos. Com a ajuda da ONG e concordância do
diretor do presídio montou uma biblioteca na penitenciária e foi uma das
coordenadoras das festividades de dia das crianças quando os presos
puderam passar a data com seus filhos.
Ezequiel não tinha filhos e ficou em um
canto isolado de todos. Graziela chegou para perguntar o que ele tinha e
o homem contou do sonho de ser pai e de ser um pai diferente do que
teve, queria transmitir a seus filhos todo amor que nunca recebeu.
O homem começou a chorar e Graziela
comovida fez carinho em seu cabelo. Ezequiel levantou a cabeça e olhou
nos olhos de Graziela passando a mão em seu rosto. Graziela pediu que
ele não fizesse o que estava pensando, mas não teve jeito. Ezequiel deu
um beijo em Graziela, que retribuiu.
Começaram um caso com a mulher se
apaixonando completamente por ele. Os comentários já eram muitos e não
teve outro jeito para Graziela senão se transferir para outro presídio.
Mas começou a aparecer no horário de visitas para ver o amado, faziam
planos de casamento e tudo ia bem até que um dia Graziela encontrou o
amado tenso.
Ezequiel contou que sofria ameaças de
morte e precisava dar um jeito de sair dali. Graziela pedia para o amado
ter calma, mas Ezequiel desesperado pedia ajudar para sair da cadeia
senão morreria, pediu ajuda para Graziela que respondeu que não poderia
fazer nada, era contra seus princípios.
O homem desolado pediu à Graziela que ela fosse embora, precisava ficar sozinho.
Ela foi e atormentada não tirava
Ezequiel apavorado pedindo ajuda da cabeça, ela mesma sofria muitas
ameaças de morte e sabia o quanto àquilo era terrível, mas sua ética não
permitia ajudar Ezequiel. Até que um dia ela recebeu a informação que
Ezequiel estava internado em um hospital. Fora envenenado.
Graziela desesperada foi até o hospital e
encontrou Ezequiel algemado a uma cama. Chorando perguntou se ele
estava bem e Ezequiel devolveu perguntando se agora ela acreditava que
ele corria riscos. Graziela apenas chorava e Ezequiel com esforço
levantou a cabeça e falou em seu ouvido “não me deixe morrer”.
Graziela
deu um beijo em sua testa e disse que lhe ajudaria. Arrumou disfarce
para Ezequiel de enfermeiro e subornou o guarda que tomava conta do
quarto. Saíram pela porta da frente sem ninguém desconfiar.
Ezequiel estava livre e o casal foi para
um hotelzinho enquanto a poeira abaixava. Ezequiel fechou a porta do
quarto e deu um beijo apaixonado em sua amada, pela primeira vez fizeram
amor. No fim Graziela feliz olhava pela janela do quarto e Ezequiel
chegou por trás dando um beijo em seu pescoço. Graziela disse que se
sentia a mulher mais feliz do mundo e Ezequiel respondeu que ela ainda
não vira nada.
Graziela se virou para beijar Ezequiel e
enquanto se beijavam um estampido foi ouvido. Graziela caiu no chão
sangrando na barriga e assustada olhou para Ezequiel que friamente se
aproximou e atirou em sua cabeça, matando a moça. Logo depois pegou o
celular de Graziela e telefonou, quando atenderam do outro lado disse:
- “Serviço feito”.
Servo de Deus, filho do diabo.
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