AMAR DE NOVO: CAPÍTULO III - QUARENTA ANOS


Sentado nas pedras do Arpoador que amo tanto sentia o peso da idade chegar. Não era mais nenhum garoto. O tempo passava, a vida andava e a impressão que eu tinha era que ficava para trás.

"Você não ficou para trás, apenas não aceita que o tempo aja".

Olhei para o lado e estava ela sentada ao meu lado. A minha vida. Minha Camila.

Sorri e disse que estava com saudades. Camila, com o sorriso mais lindo que a vida já me deu o prazer de ver, respondeu "Não sei porque, estou sempre com você".

Camila me olhou nos olhos e me deu parabéns. Agradeci e ela comentou que eu ficava bem de cabelo grisalhos. Ri respondendo que não estava e ela completou "Começa a ficar aos poucos e vai te dar um charme todo especial".

Ficamos um tempo em silêncio. Camila passou a mão em meus cabelos e pediu "Não crie tanto juízo assim. Você é feito de amor assim como eu". Olhei para ela que perguntou "Me ama?". Como todas as vezes respondi "Pra sempre".

Camila levantou e em desespero perguntei quando iria com ela. Meu amor sorriu, me mandou um beijo e acordei.

Ainda não era minha hora de ir.

Abri os olhos e como sempre olhei ao lado na cama. Como sempre ela não estava lá. Levantei e fui ao banheiro. Molhei o rosto, esfreguei os olhos e me olhei no espelho.

Quarenta anos..Me sinto acabado nos meus quarenta anos de idade apesar de todos falarem que estou bem. Como diria Stevie Wonder o pior cego é aquele que não quer enxergar. Mas é que já passei por tantas coisas que sei lá. Quarenta anos...

Quando a gente é novo vê uma pessoa de quarenta anos como anciã. Quando chega nessa idade vê que estávamos certos. A vida foi madrasta, mas também soube ser generosa. Trabalhei duro, muito e ganhei dinheiro. O moleque que defendia um trocado como DJ ao lado de amigo agora era dono de gravadora, tinha carro do ano, apartamento top na Zona Sul carioca e ia pelo menos três vezes por ano ao exterior.

Sim. No começo ganhei empurrão de meu sogro, mas depois tudo que consegui foi graças ao meu esforço e talento. Chegar a dono de gravadora e sócio de uma casa de shows e um restaurante não foram situações da noite pro dia. Trabalhava até doze horas por dia, muitas vezes domingo. Esquecendo que tinha vida social, família ou amigos.

Quinze anos sem Camila..

Deus do céu!! Quinze anos!! Se engana quem diz que essa dor diminui com o tempo porque a dor de perder alguém não acaba!! Não teve um dia nesses quinze anos que não pensei em Camila, poucos foram os dias que não derramei algumas lágrimas no quarto na hora de dormir. A hora de dormir sempre foi a pior hora. A hora de ficar sozinho com meus pensamentos.

Querem saber? Conquistei tudo isso que falei na vida, mas voltava tranquilamente a ser o DJ de festas adolescentes se pudesse pelo menos mais uma vez beijar a Camila.

Gabriel, fruto de nosso amor, já tinha vinte anos. Criei o melhor que pude mesmo sendo um cara sem tempo, mas não precisei criar sozinho tendo ajuda de todas as pessoas que nos amam. Minha mãe, Osmar, Bia, Nando, Samuel, Anderson, Suely que foi morar nos Estados Unidos, mas a cada semestre vinha, até o doido do Guga que o que tinha de brilhante advogado tinha de desajustado amorosamente.

Gabriel era bem diferente de mim. Jovem, impetuoso, aventureiro, cativante. Muito parecido com a mãe. Era um garoto do bem, apesar de topetudo, não abaixava a cabeça pra ninguém, nem para mim quando se julgava certo.

E quem diria? Aquela história de ser árvore deu frutos, literalmente, o moleque estudava teatro e era ator dos bons.

Quarenta anos. Não parecia ser tão ruim essa idade. Se ela estivesse aqui seria perfeito.

Saí do banheiro e o celular tocou. Era Amanda. Começou me dando feliz aniversário e nem deu tempo que eu agradecesse. Pediu para falar com Guga. Apesar de meu amigo estar na minha frente desesperado fazendo sinais passei o celular para sua mão e disse "se vira".

Guga começou falando para Amanda que seu celular estava ruim e que nunca bloquearia suas chamadas. Ficou o tempo todo falando "está bem, está bem", desligou e me falou "ia te desejar feliz aniversário, mas prefiro desejar que você vá a merda".

Comecei a rir e respondi "Mulher a gente se livra, ex mulher é para sempre". Meu amigo emendou com "maldita hora que tomei Amanda de você" e logo interrompi "Pera lá! Eu já tinha terminado com ela! Quem tomou alguém aqui fui eu que tomei Camila de você!".

Nisso perguntei qual era o problema da vez e Guga respondeu que colégio das crianças tinha aumentado e ela pedia mais dinheiro. Gargalhei enquanto ele dizia "nunca devia ter saído daqui pra casar com ela".

Pois é. Guga namorou Amanda. Alguns meses depois de sua viagem foi atrás dela. Emendaram namoro, casamento, tiveram dois filhos e Amanda pegou meu amigo "pulando a cerca". Separou, levou uma boa grana e Guga voltou ao apartamento.

Para ele estávamos quites. Mas eu que tomei Camila dele. Não perdi Amanda.

Enquanto Guga ainda reclamava que a troca foi injusta, sem aceitar que ele perdeu pra mim não eu pra ele, a campainha tocou. Fui atender e tinha uma multidão na porta.

Bia, Nando, Samuel, Anderson, Jessé, Ericka, Francisco, minha mãe, Osmar..Pessoas que eu amava e me faziam feliz...Bia vinha na frente comandando os parabéns e minha mãe por último carregando um bolo e dizendo que não teve tempo de fazer, mas comprou no melhor local da cidade.

Meus amigos sacanearam e arrumaram quarenta velas para botar no bolo. Enquanto os mais jovens acendiam e brincavam que teria um incêndio no apartamento minha mãe me defendia dizendo que  eu sempre seria seu bebê. Guga ao telefone brigava com Amanda, Osmar ria e falava que eu tinha me livrado de boa e por uns momentos quase fui feliz.

Cantaram parabéns e mandaram que eu fizesse um pedido. Não tinha o que pedir, meu pedido não iria acontecer. Apenas respirei fundo e assoprei as velas sob aplausos de todos e Guga reclamando que nunca mais “tomaria” mulher minha.

O coitado não se conformava mesmo.

Logo após o telefone tocou e atendi. Era Gabriel. Tempo que não via o moleque e estava morrendo de saudades.

Perguntei onde ele estava e Gabriel respondeu que escalava uma montanha no interior da Ásia. Nem me atentei para o fato dele naquele instante estar pendurado em uma montanha correndo riscos só para falar comigo e fiquei impressionado, na verdade, do celular pegar lá.

Perguntei a meu menino quando ele voltava e Gabriel respondeu “mais depressa que você pensa”. Insisti na pergunta até que gritaram da sacada “olha pra cá que você vai saber”.

Olhei e lá estava Gabriel pulando a grade da sacada para o lado de dentro com mochila nas costas e um sorriso no rosto que só via igual em sua mãe.

Corri para abraçar meu filho. Um abraço forte de dois parceiros, dois grandes amigos acima de tudo.

Isso. Dois grandes amigos. Nós éramos amigos, companheiros, cúmplices, pai e filho. Gabriel foi quem me manteve vivo depois da perda de Camila e o garoto soube retribuir se tornando um homem admirável. Tudo bem, cometia seus erros, tinha seus arroubos de juventude, mas normal. Gabriel era a presença física de Camila na Terra, de nosso amor e eu procurei o tempo todo honrar esse amor.

Perguntei por onde ele tinha surgido, por onde subiu e com a cara mais normal do mundo respondeu “pelo lado de fora ué”. Dona Hellen, furiosa, dava tapas em Biel dizendo “São treze andares, por quê você não pega elevador como todo mundo?”.

Gabriel abria os braços e dizia sorrindo “Porque não sou qualquer um, sou Gabriel o rei do mundo!!” e ganhava mais tabefes da vó. Eu segurava o riso e comentava que numa dessas ele podia ser preso e meu filho botou a mão no ombro de Guga, ainda ao telefone, e disse “tenho o melhor advogado do mundo aqui”. Guga afastou o telefone apenas para dizer “esse moleque devia ser meu filho, parece em nada com você Toninho”. Mandei que ele parasse de ideia e se concentrasse em Amanda.

Gabriel era assim, aonde chegava era o centro das atenções. Todos se reuniram a sua volta e o moleque contou sobre suas andanças pela América do Sul e Ásia. Tribos indígenas em que dormiu, mosteiros que se abrigou, montanhas que escalou. Todos observavam sem dizer um pio, apenas ouvindo aquelas histórias deliciosas.

Ao fim pegou violão e cantou. Cantou músicas da Cássia Eller como poucos cantam. Sei disso, trabalho com gravadora, não é só corujice. Insistia muito para que ele tentasse gravar um disco, mas Gabriel queria ser livre e no máximo atuar.

Estávamos todos entretidos com as histórias quando ouvimos buzina e som alto. Estranhei, perguntei o que era e Samuel, rindo, respondeu “faltava o meu presente”. Fomos na sacada e quando vi o que era não resisti e gritei “Filho da..” Era um daqueles carros de telemensagem.

É. Tinha que rolar uma sacanagem dessas...

Era bom ter meu moleque de volta. Mesmo que ele não fosse fácil. Mesmo que debaixo das nossas caras ele tivesse um caso com Ericka, a própria tia, os dois com hormônios em ebulição. O moleque era esperto. Naquele dia mesmo deu uns amassos em minha irmã e conseguiu disfarçar quando me aproximei.

Mas era um grande parceiro.

Naquela tarde fomos ao Arpoador e em silêncio olhávamos o mar das pedras. Gabriel quebrou o silêncio perguntando “esse lugar é muito importante pra você né?”. Respondi “O mais importante”. Ele ficou mais um tempo em silêncio e completou “gosto daqui, me dá paz, mas meu lugar é lá embaixo”.

Pegou a prancha e foi surfar enfrentando as ondas revoltas.

Eu, do alto, assistia com orgulho. Orgulho do fruto do amor que eu e Camila tivemos e temos.

Amor que vive em Gabriel.

Mas nem só de amor vive o homem. Eu precisava trabalhar. Na manhã seguinte bem cedo já fui para a gravadora e assinava umas papeladas quando Nando entrou em minha sala e disse:

"Ela está aí".

Saí e um batalhão de fotógrafos eram afastados por seguranças. Outros traziam a estrela que acompanhada de seu empresário sorriu e veio em minha direção.

Era Luana Spencer. A rainha do axé. Cantora mais popular do país e dona do par de coxas mais estonteante.

Nando conduziu os dois até minha sala. O empresário trazia um pequeno poodle na mão e afetadíssimo reclamava que a imprensa não deixava sua diva em paz. Luana sorriu para mim e disse que era um prazer me conhecer. Eu, só pensando no trabalho, nem reparei que ela não parava de me olhar.

Pedi que se sentassem e pegando o contrato falei que era um prazer tê-la em nosso casting. O empresário explicou que tiveram várias propostas, mas sua diva preferiu fechar com nossa gravadora enquanto Luana emendou "Credibilidade é tudo e você tem de sobra".

Me senti lisonjeado e continuei explicando como seria nossa parceria.

Luana já era uma estrela consagrada no Brasil. Dona de voz poderosa, grave, era popular, carismática mesmo cantando aquelas músicas cheias de vogais, quase nenhuma consoante, sem nexo, mas que servem pra pegar gente no carnaval. Gabriel adora, mas não era minha praia. Meu filho que explicou a importância de ter a artista na gravadora.

Luana queria fazer um trabalho mais autoral e gravar artistas da MPB. Queria mais credibilidade e o apoio da crítica. Procurou o local certo.

Contrato assinado e em alguns dias entramos em estúdio.

No dia que Luana colocou voz base em estúdio a garotada da família se fez toda presente. Francisco, Ericka e Gabriel que era o mais empolgado. Pegaram autógrafos, tiraram fotos e acompanharam o trabalho da estrela. Brinquei com meu filho que nunca tinha lhe visto no estúdio e Gabriel com cara de fascinação
respondeu que era um ótimo motivo.

Depois de um tempo meu filho me cutucou e disse "Ela não tira os olhos de você". Distraído, perguntei "ela quem?" e Gabriel apontou para Luana que dentro do chamado "aquário", local que se coloca a voz, me olhava e cantava uma música romântica.

Devia ser impressão dele...

No dia seguinte chegaram flores na minha sala. Eram de Luana Spencer. Continuava achando que era nada demais.

Meus amigos estimulavam. Falavam que estava "me dando mole" e eu respondia que tinha nada a ver, tudo era apenas trabalho e uma artista daquele quilate nunca iria querer algo com um cara sem graça como eu. Pra dizer a verdade, eu nem estava tão entusiasmado assim, apesar de fazer bem para o ego que alguém pensasse que a rainha do axé queria algo comigo.

No dia seguinte seu empresário ligou e perguntou se podia reservar o restaurante para um encontro reservado de sua diva. Respondi que era complicado, tinha muitas reservas. Mas o argumento oferecido em reais foi tão bom que acabei reservando a noite seguinte.

Como ela pediu no telefonema eu estava lá e sinceramente fiquei curioso para saber quem era o acompanhante misterioso de Luana. Na hora certa ela chegou. Deslumbrante em um vestido vermelho, entrou pelos fundos para que nenhum paparazzi pudesse lhe fotografar.

Dei as boas vindas e levei até a mesa. Ela sentou e comentei que o acompanhante estava atrasado. A cantora respondeu que não, ele estava bem em sua frente. Olhei para os lados, não entendi e ela
pediu "Senta".

É..O convidado era eu.

Sentei e ela pediu que eu chamasse o garçom.

Assim começou nossa noite.

A noite de Gabriel começava também. Foi a um bar com Ericka, Francisco e uma turma de amigos. Beberam um pouco antes de ir a um show de pagode que teria na Barra. Gabriel pegou o carro, com Ericka ao lado e os outros rapazes atrás. Ericka ainda argumentou se não era melhor que fossem de táxi já que meu filho tinha bebido e ele respondeu "Para de bobeira, nem bebi tanto assim".

Pegaram o carro e Gabriel a toda velocidade dirigia com Ericka pedindo que diminuísse. Certo momento ele perdeu o controle e bateu de frente em outro carro.

Algum tempo depois Ericka, que estava desmaiada, acordou e viu Gabriel ensanguentado ao seu lado e desmaiado. Se desesperou, mas conseguiu sair pela janela do carro. Do lado de fora pegou o celular e me ligou.

Eu no jantar começava a achar que talvez não fosse só impressão dos amigos o clima. Era um  jantar muito confortável, tão gostoso que esqueci que estava com uma super estrela. Falamos amenidades, dos gostos de cada um, da vida, dançamos um pouco e sentamos. Ao nos sentar o telefone tocou, pedi desculpas e atendi.

Ouvi a tudo e fiquei branco, pálido. Luana me perguntou o que ocorrera e respondi.

"Meu filho sofreu um acidente".


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