AMOR: CAPÍTULO XIV - AMOR (PARTE II)
O tempo
passava e eu não reagia. Continuava bebendo e não arrumava emprego, com isso o
dinheiro ia acabando. Morava de favor no apartamento que Osmar nos deu ao
casarmos e gentilmente não pediu de volta mesmo com todas as besteiras que eu
ia fazendo. Mas aos poucos tinha que vender minhas coisas para continuar me
sustentando e bebendo. Dessa forma vendi meu carro que eu comprara com tanto
sacrifício.
Tomava
bronca diária de todos, principalmente de minha mãe que reclamava que eu me
tornara um irresponsável e usava a morte de Camila como desculpa. Argumentava
com ela que não era desculpa, estava doendo e minha mãe respondia “Você não é a
única pessoa que sofre no mundo”.
A maior
reclamação dela era que eu não visitava Gabriel. Já se passara alguns meses
desde que perdi a guarda de meu filho e eu nunca lhe visitara.
Até
que destino nos aproximou.
Eu andava
pelo shopping, o mesmo que eu perdi meu filho, quando ouvi gritos de papai. Quando
virei para ver era Gabriel com uma babá. O menino soltou a mão da babá e veio
correndo me abraçar. Demos um abraço apertado e ele disse que tinha um presente
para me dar. Curioso, perguntei o que era e ele abriu a sua mochila da escola.
Tirou um
desenho e me deu. No desenho estava ele, eu e sua mãe com asas de um anjo. Os
três de mãos dadas. Me comovi com aquele desenho enquanto meu filho disse “te
amo”.
Ali caiu
a ficha. Ali eu vi que Camila não tinha morrido e nem morreria. Ela viveria
para sempre em Gabriel. Nosso amor viveria para sempre nele que era o fruto
desse amor. Eu não podia perder meu filho porque aí era perder de vez a Camila.
Saí
daquele shopping e fui imediatamente para casa da minha mãe. Toquei a campainha
de forma desesperada até que ela atendeu acompanhada de Osmar. Aflita, minha
mãe perguntou se algo ocorrera e respondi.
“Preciso
de ajuda”.
Minha mãe
sorriu e me chamou para dentro dizendo “entra, essa casa sempre será sua”. No
dia seguinte fui para uma clínica de reabilitação. Não que eu fosse viciado em
bebidas, mas meu pai era o que
tornava tudo mais perigoso, me deixava mais próximo do vício. Eu também
precisava me desintoxicar e pensar em meu futuro.
Fiquei um
mês lá e saí renovado, pronto para tentar viver. Não conseguia parar de pensar
em Camila, ela não saía de meus pensamentos um segundo e isso me fazia sofrer.
Mas eu tinha que pensar em Gabriel e assim eu também pensava nela.
Osmar
ofereceu meu emprego de volta, mas não aceitei. Não tinha do que reclamar
daquele emprego, era um bom salário e fiquei alguns anos lá. Mas eu queria ser
feliz nem que fosse em meu trabalho.
Amava
música, tanto que antes era Dj e queria trabalhar com música.
Batalhei
emprego e graças também a ajuda de meu sogro e padrasto consegui trabalho em
uma gravadora. Seria responsável por novos talentos. Pelo menos
profissionalmente era um sonho que eu realizava.
Batalhei
bastante, trabalhava mais de doze horas por dia encontrando no trabalho um
“novo vício” para substituir a bebida. Chegava em casa exausto apenas tendo
tempo de tomar um banho e cair na cama para dormir. Cheguei a um acordo com
Suely e nos fins de semana via Gabriel. Levava a praia, parque, shopping,
coisas que pais e filhos fazem.
Mas um
novo projeto surgiu. Muito importante.
Um fim de
semana fui com Gabriel até a casa de minha mãe e Osmar me
disse que queria falar comigo. Sentamos no bar próximo para conversar, como
fazia com Pinheiro e ele me contou sobre o “projeto de sua vida”.
A criação
de uma ONG para cuidar de crianças com câncer. A Fundação Camila Pires.
Respondi
que era uma ideia bacana, comovente e ele pediu que eu tocasse o projeto.
Agradeci e respondi que não tinha como, estava muito ocupado com a gravadora.
Osmar bebeu um gole de cerveja e falou “confio em você”.
Não fujo
de projetos, ainda mais ambiciosos como esse e que seria uma grande homenagem a
Camila.
Chamei
Bia para me ajudar e juntos fomos tocando o projeto da ONG. Formalizamos o projeto,
arrumamos o local e fizemos uma reforma. Em poucos meses estava de pé a
Fundação Camila Pires.
Uma casa
simples, mas bonita. Com quintal, parquinho e muito amor para receber crianças
carentes com câncer. Dar tratamento a elas em um local que pudessem brincar, se
divertir e esquecer aquela doença maldita que já tinha me levado duas pessoas
queridas.
No dia da
inauguração, com Gabriel ao meu lado, lembrei Camila e disse em discurso que só
uma coisa poderia ser maior que qualquer enfermidade. O amor. O amor fez com
que aquela fundação fosse criada e o amor ajudaria aquelas crianças.
Bia ficou
de frente depois do projeto iniciado, mas eu passava todos os dias lá ficando
algumas horas para ver como tudo acontecia
e brincar com as crianças. Algumas vezes levava Gabriel e ele se
divertia com os meninos. Via meu filho brincar naquele ambiente criado com
tanto amor para oferecer amor e pensava que Camila poderia estar lá.
Ocupava
minha mente com a fundação e a gravadora. A vida continuava e a de todos
andava. Meu pai se recuperou totalmente do vício virando pastor e se
aproximando mais de mim. Samuel e Anderson se uniram fazendo um contrato já que
casamento ainda não era permitido e partiram para adoção. Ralaram, enfrentaram
preconceitos,mas conseguiram adotar um menino que se curou de câncer na
fundação.
Samuel,
Anderson e Francisco, esse era o nome do menino, constituíram uma família feliz
e normal como qualquer família feliz.
Bia virou
um grande nome de nossa cidade ganhando notoriedade por seu trabalho social.
Fazia também uma família feliz com Nando e Jessé e começavam a planejar um
segundo filho mesmo com Bia tão atarefada. Minha amiga, apesar de nunca
esquecer, conseguiu deixar a tragédia do estupro pra trás e seguiu sua vida.
Sobreviveu como me disse.
A maior
surpresa veio de Hellen e Osmar.
Minha mãe,
perto da menopausa, se descobriu grávida. Uma grande festa foi feita por todos
e no meio da mesma minha mãe brincou com Osmar e disse que não seria mãe
solteira. Osmar respondeu “Então vamos nos casar”. Minha mãe achava que o homem
estava brincando, mas ele falava sério.
Os dois se
casaram alguns meses depois. Minha mãe já com barriguinha
de grávida e eu conduzindo até Osmar. Assim como Camila e eu os dois inovaram.
Decidiram fazer o casamento no mercado
que minha mãe trabalhava, Osmar comprou e tudo começou.
Alguns
meses depois nasceu o filho deles, meu primeiro irmão que na verdade era irmã.
Uma menina linda chamada Ericka.
Que
lembrava demais Camila.
Ai
Camila..Os meses passaram, completou um ano, passou, mas o meu sentimento não
mudava. O amor era imenso, a saudade tão grande quanto e doía. Doía demais. Eu
trabalhava bastante, tentava viver, tentava sorrir, mas não conseguia, não era
a mesma coisa. Todas as noites me deitava na cama que era a nossa e chorava de
saudades antes de dormir. Invariavelmente sonhava com ela e acordava gritando seu
nome.
Até que
frustrado por perceber que tudo era sonho voltava a me deitar. Não há nada mais
cruel que o sonho porque o sonho lhe dá esperanças de ser real e não passa
daquilo. Ilusão.
Não era
fácil. Não era fácil ser eu. Ainda mais sem Gabriel no meu dia a dia.
Um dia
estávamos todos reunidos na casa de minha mãe. Eu brincava com Gabriel e minha
mãe comentou que eu me transformara em um pai de verdade. Agradeci e respondi
que tinha que viver para ele. Osmar perguntou se eu não tentaria a guarda
novamente dele.
Respondi
que sim. Tentaria quando me sentisse totalmente seguro que
poderia ser um bom pai. O homem então respondeu “Acho bom você se apressar”.
Perguntei porque e ele disse “Suely decidiu voltar
aos estudos e vai pros Estado Unidos fazer economia em Harvard”.
Gelei e
comentei que ela não podia fazer isso, não com Gabriel. Osmar respondeu “Pode
sim e pode levá-lo já que a guarda é sua”.
Me
desesperei e quando levei Gabriel de volta para casa de Suely pedi para
conversar com ela. A mulher perguntou o que eu queria e perguntei se era
verdade que ela se mudaria para os Estados Unidos.
Suely
respondeu que sim e argumentei que ela não podia fazer isso, não levando
Gabriel. Ela respondeu “Posso sim, a guarda é minha” e tentei amansar seu
coração dizendo que era seu pai e não podia ficar longe dele. Suely respondeu
“Você já provou que não é um bom pai. Perdeu seu filho em um shopping. Eu vou
para o Estados Unidos e vou levar o Gabriel”.
Mais uma
vez implorei e pedi que ela me devolvesse a guarda. Suely repetiu “Eu vou para
o Estados Unidos e vou levar o Gabriel”.
Aquilo
foi um baque para mim. Saí da casa, entrei no carro e encostei a cabeça no
volante desesperado, sem saber o que fazer. Pedi uma luz a Camila, um caminho
para que não perdesse nosso filho e meu telefone tocou.
Era
Bia.
Aproveitei
e contei toda a situação para ela. Bia pediu que me acalmasse e que procurasse
um advogado para retomar a guarda.
Passou-me
o nome e o endereço mandando que procurasse. Ouvi o nome e perguntei
“tem certeza?”. Minha amiga respondeu
“Sim, procure imediatamente.”
No dia
seguinte cedo bati na porta do advogado. Ele abriu a porta e falei.
“Oi
Guga”.
Guga
ficou surpreso com minha presença. Perguntei se podia entrar e ele fez sinal
com a mão que sim.
Pois é.
Não sabiam que o Guga se tornara advogado né? Nem eu.
Sentei e
ele perguntou qual era o problema. Contei tudo o que ocorreu depois do enterro.
Minha irresponsabilidade, a perda da guarda, minha retomada de vida e o fato de
Suely ir morar nos Estados Unidos levando meu filho.
Guga
ouviu atentamente e no fim perguntei se ele poderia me ajudar. Ele olhou para
mim sério por alguns segundos e estendeu a mão dizendo “Tamos juntos, vamos
trazer seu filho de volta”.
Começamos
a conversar quase diariamente para montar a estrutura do requerimento de
guarda. Contei a ele tudo da minha vida, o que estava realizando, porque devia
ter a guarda de volta. Formamos uma equipe como era antigamente.
Não podia
deixar Gabriel ir embora. Devia isso a Camila.
Com tudo
estruturado entramos na justiça pedindo a guarda.
Guga
conversou com as pessoas que me cercavam. Familiares, amigos, todos que viram
meu processo de recuperação. Serviriam como testemunhas e Guga, otimista, me
dizia “Não vão tirar o Gabriel de você. Não vão tirar um filho de um pai”.
Suely
resolveu marcar sua viagem para logo após o julgamento o que me deixava aflito,
se eu perdesse até conseguir um julgamento de recurso ele estaria nos Estados
Unidos.
Chegou o
dia. Suely chegou na audiência e cumprimentou cordialmente. A juíza abriu os
trabalhos e as testemunhas começaram a ser convocadas. As minhas eram meus
familiares e amigos, inclusive Osmar, ex-marido de Suely. As dela eram
funcionários do shopping e policiais que encaminharam Gabriel para a Vara de
Infância e Juventude.
A
advogada de Suely batia muito na tecla de minha irresponsabilidade no período
pós-enterro e Guga me pedia autorização para citar a tentativa de aborto que
Suely quis fazer em Camila sem que a mesma soubesse. Pedi para que ele não
fizesse isso. Não queria abaixar o nível para ganhar a guarda de Gabriel.
O último
a falar fui eu. Fui convocado e a advogada de Suely me fez uma série de
perguntas. Depois foi a vez de Guga que me fez perguntas e na hora da última me
surpreendeu perguntando o que era o amor pra mim.
Ninguém
entendeu. Pedi que ele repetisse e Guga repetiu “O que é o amor pra você?”.
Comecei a
tentar falar, conectar as ideias.
“O amor?
O amor é você ser atropelado por uma pessoa e não esquecer mais seu rosto e sua
voz. Amor é reencontrar essa pessoa e não querer nunca mais que ela se afaste
de sua vida. Amor é se tornar amigo dela só para não ficar distante. Ajudá-la
em problemas amorosos só para se sentir útil. É vê-la feliz mesmo que isso
signifique minha infelicidade. Amor é saber sua comida e bebida preferida e
pedir ao garçom antes mesmo dela e ela olhar pra você aprovando. Amor é achá-la
linda quando está maquiada ou quando acorda. É rir das piadas dela por mais sem
graça que sejam. Ter um silêncio preenchido de carinho e afeto. Ter uma música
preferida com ela, se entenderem por pensamento e não saber como será viver sem
essa pessoa. Amor é perder essa pessoa, mas seguir em frente porque esse amor
deu frutos. E morrer de medo de perder esse fruto porque sabe que caso ocorra
essa perda seria como se ela morresse de novo e viver sem ela é meu fim”.
Guga, com
olhos marejados, disse que eu estava dispensado e a juíza saiu para definir o que
fazer. Algum tempo depois ela voltou e deu sua sentença. A guarda voltaria pra
mim.
Todos
comemoraram. Abracei forte Guga agradecendo por tudo. A advogada de Suely disse
a ela que iriam recorrer, mas ela pediu que parasse e se aproximou de mim
colocando a mão em meu ombro.
Virei
para Suely que me disse “Você sabe que posso recorrer, não sabe?”. Respondi que
sim e ela continuou “Não vou fazer isso. Lugar de uma criança é com seu pai e
você está pronto para ser pai”.
Agradeci
a ela que complementou “Em junho estarei no Rio. Quero passar uns dias com
ele”. Concordei e ela passou a mão em meu rosto indo embora.
Estava no
lado de fora, tomando um café, quando uma mulher se aproximou e com sorriso
largo disse “Antonio, quanto tempo!!”. Olhei para ela, sorri amarelo
cumprimentando e ela rindo perguntou “Não está lembrando de mim né?”.
Antes que
eu passasse a vergonha de responder que não ela me contou “Amanda, viagem para
Aparecida”.
Claro!
Como poderia me esquecer dela? A menina linda que me fez companhia em Aparecida
enquanto eu sofria por Camila?
Com
sorriso, dessa vez genuíno, respondi “claro que sim” e começamos a bater papo.
Ela me contou que agora era advogada e perguntou o que eu fazia ali. Respondi
que era um processo de guarda e ela comentou “sempre chato se separar
brigando”.
Respondi
que não era contra minha ex-esposa, era contra minha sogra e que minha mulher
falecera. Amanda lamentou e completei “pelo menos venci”.
Amanda me
deu parabéns quando Guga surgiu. Ele se apresentou e na hora de se apresentar
Amanda olhou para mim e disse:
“Meu nome
é Amanda, mas pode me chamar de recomeço”.
Logo
depois a moça me deu um cartão seu. Era com seu telefone e e-mail. Me deu um
beijo e pediu “me liga?”. Indo embora logo depois.
Guga
olhou pra mim e com aquele jeitão dele que tanto senti saudades e comentou
“Caramba!! Te deu muito mole!!”. Eu sorri e respondi
que era nada daquilo e meu amigo comentou “Tempo que não via um sorriso seu,
devia sorrir mais vezes. Faz bem”.
Logo após
completou “Sabe que sua história daria um livro?”. Falei que era bobagem dele
que continuou “Sério, dá um livro sim. Essa história de amor, tudo que ocorreu.
Pensa nisso com carinho, é sério”.
Será?
Caminhamos
para o lado de fora do Fórum tendo uma conversa inusitada. Guga ameaçou “É bom
correr atrás dela logo senão eu vou correr e vou tomar essa mulher de você. Te
dar o troco”.
Ri e
comentei que tomara mulher nenhuma, eu conheci Camila antes dele e ele que me
tomou. Guga gargalhando disse “Ninguém mandou você ser um Zé mané com
mulher!!”.
Andávamos
e eu gargalhei perguntando “Como assim Zé Mané?”.
Guga era
um querido amigo e seria para o resto da vida.
Saí do
Fórum e fui direto para o cemitério. Desde o enterro não ia lá.
Desci do
carro com um buquê de flores na mão e caminhei até o túmulo de Camila. Olhei
para o túmulo onde o amor de minha vida estava enterrado e me emocionei.
Segurei o
choro e comecei a falar:
“Tempo
que não venho aqui né? Me desculpe, mas acho sinceramente
que você não está aqui, está em um lugar bem melhor. Mas como precisava de um
lugar que você estivesse fisicamente para te dizer algumas coisas eu vim.
Vim
te entregar essas flores que você tanto gosta e dizer que ganhei a guarda de
nosso filho. Ele ficará comigo como sei que você queria. Pra finalizar eu
trouxe uma carta pra você. Acho que essa carta diz tudo
que eu
queria te falar nesse momento. Dizem que não existe nada
mais bobo
que carta de amor. Mas o que é o amor senão uma grande e maravilhosa bobeira?”.
Fiz o
sinal da cruz, pedi que ela ficasse com Deus e saí.
Fui para
a praia encontrar meu filho que estava com a babá. Antes de chegar vi um rapaz
quase ser atropelado por uma menina. Ela desceu apavorada, com o rapaz no chão
e o levantou perguntando se ele estava bem. O rapaz sorriu dizendo que sim, mas
só ficaria melhor recebendo seu telefone.
Eles
ficaram conversando enquanto eu continuava meu trajeto e ia encontrar meu
filho.
Rindo,
mas com o coração doendo.
A seguir: A praia (último capítulo)
CAPÍTULO ANTERIOR:
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