AMOR: CAPÍTULO XIII - LUTANDO PELA VIDA
O médico
começou a falar e parecia que um pesadelo começava. Ele falava com tato, mas as
palavras que saíam de sua boca eram duras. Ele contava que havia alteração
importante no exame de sangue de Camila e que precisava de mais exames.
Camila
ouvia a tudo séria, sem mover o rosto e eu me sentindo desconfortável. Depois
de um tempo falando, explicando tecnicamente tudo o que poderia ser Camila
perguntou “Doutor, em português, o que realmente pode ser?”.
Ele deu
uma enrolada e ela perguntou “Posso estar com leucemia?”. Ele disse que
poderiam ser várias coisas e ela refez a pergunta “Pode ser leucemia?”. Sério o
médico respondeu “pode”.
Séria
Camila comunicou que na manhã seguinte estaria no hospital para fazer os exames
e nos despedimos do médico.
Saí dali
devastado. Devastado e com medo. Não podia ser. Entrei ali feliz porque seria
pai e saio com a mulher da minha vida podendo estar doente. Não podia ser, não
podia acreditar. Não conseguia imaginar e nem queria imaginar minha vida sem
Camila.
O médico
disse que poderiam ser várias coisas, até mesmo simples, mas o nome “câncer”
assusta pra cacete. É a hora que nos sentimos vulneráveis, mortais e eu já
tinha o trauma de Jessé, a mesma doença.
Lutava
contra minha mente tentando ser otimista, pensar que não era aquilo. Ela faria
os exames e tudo ficaria bem.
Camila
saiu em silêncio do hospital. Se para mim era ruim imagine para ela. Camila
entrou ali esperando que em alguns meses seria mãe novamente e agora pode estar
com a vida em risco.
Quando
saímos apenas peguei forte sua mão e andamos pelo estacionamento de mãos dadas.
Íamos entrar no carro quando ela pediu que não fizesse isso. Queria ir até o
calçadão tomar um sorvete.
Andamos
até o calçadão de mãos dadas. Copacabana cheia de pessoas alegres, saudáveis e
se divertindo. Fomos até a areia e ficamos alguns minutos lá olhando o mar.
Sempre de mãos dadas.
De mãos
dadas e em silêncio. Eu não tinha coragem de dizer nada, nem mesmo de
encará-la. Olhava para ela disfarçadamente e via minha esposa olhar firme o
mar. Olhava séria, mas não triste. Apenas séria.
Depois de
um tempo ela pediu para que fôssemos tomar o sorvete e fomos.
Sentamos
em um quiosque e trocamos as primeiras palavras dizendo o quanto nossos
sorvetes estavam gostosos. De repente em um rompante Camila disse “não adianta
não tocarmos no assunto. Ele está aqui nessa mesa com a gente”.
Minha
mulher sempre foi mais firme que eu, mais direta. Me surpreendi dela entrar no
assunto e disfarcei. Sorri e respondi “você não tem nada, isso é besteira”.
Camila
olhou uns segundos para mim e falou “você sabe que não é besteira, você não me
olha nos olhos, sabe disso”. Vi o olhar dela sério
para mim e também fiquei sério. Respondi “Não é besteira, mas será porque você
não tem nada”.
Camila me
disse que eu não podia garantir isso e respondi “eu garanto”.
Ela
estava certa. Eu não podia garantir.
Fomos
para casa. Gabriel estava com a babá e ao nos ver entrar correu para a mãe
gritando “mamãe, mamãe”. Camila se agachou e abraçou forte nosso filho. Percebi
lágrimas em seus olhos, mas preferi ficar em silêncio.
Nos
falamos muito pouco naquela noite, uma noite de medo e de incertezas. Ao
deitarmos Camila se aconchegou em meu peito e pediu “não comente nada com
ninguém até termos certeza de alguma coisa”. Dei um beijo em sua cabeça e
respondi “não vou comentar até porque você não tem nada”.
Dormi e
naquela noite tive um pesadelo. Sonhei que me afogava em alto mar e não
conseguia chegar na superfície. Nadava, nadava até a superfície e algo me
puxava para baixo. Tentava várias vezes sem conseguir e o desespero aumentava.
Acordei
sem ar, desesperado e Camila acordou com meu susto. Minha mulher me abraçou
pedindo que me acalmasse, pois era apenas um pesadelo. Aos poucos fui me
acalmando e deitei. Camila me abraçou e fez cafuné até que eu dormisse.
Ela
passando por aquela situação difícil e a impressão era que eu que estava
sucumbindo.
Acordamos
cedo no dia seguinte e fomos ao hospital. Durante os dias seguintes Camila fez
uma série de exames. Praticamente nos isolamos. Eu pedi licença do trabalho
para resolver coisas pessoais e nossos amigos próximos não entendiam o que
ocorria. Minha mãe foi atrás de mim perguntar se algo acontecia e disfarcei.
Os dias eram
longos, a espera tensa para saber o resultado.
Até que o
dia chegou.
Sentamos
na frente do médico e apertamos forte nossas mãos. O médico nos olhou sério e
sem rodeios disse “é leucemia”.
Naquele
instante fechei os olhos e senti Camila apertar forte minha mão.
O médico
explicou todos os detalhes técnicos, tudo que teria que ser feito como início de
tratamento e como ele seria. O médico disse que não tinha metástase, o que era
boa notícia, mas era maligno.
O mais
importante foi que ele disse que era curável.
Saímos de
lá em silêncio e entramos no carro. No meio do caminho pra casa Camila pediu
que fôssemos ao Arpoador. O nosso cantinho.
Sentamos
nas pedras olhando o mar em silêncio. Camila na minha frente, encostada em mim
e eu abraçando minhas mãos sobre seu corpo. Depois de um tempo ela perguntou
“Me ama?”. Respondi “pra sempre”.
Depois
disso ela começou a chorar. Compulsivamente.
Eu estava
atordoado. Pra dizer a verdade nem conseguia dizer ao certo como estava. Sem
chão, sem ar, sem teto...A ficha não queria cair, Camila tinha câncer!! Meu
amor tinha câncer com apenas vinte e três anos de idade!!
Não dava
pra aceitar, não dava pra me conformar. Eu não podia aceitar a possibilidade de
um dia ficar sem a Camila, principalmente dessa forma, principalmente tão
jovens. Abracei forte a Camila, quase que lhe sufocando, com toda força que eu
tinha, com toda raiva que estava daquela situação.
Ma não
chorei. Eu tinha que ser forte. Eu tinha que ser o suporte da Camila naquele
momento.
Chegamos
em casa e tivemos que tratar de detalhe chatos. Como seria em relação aos
outros? Contaríamos? Camila faria quimioterapia, radioterapia, as pessoas
acabariam percebendo que tinha algo errado.
Camila
respirou fundo e respondeu que faria uma reunião.
Todos os
nossos conhecidos foram chamados. Estávamos na sala comendo, bebendo e eles se
divertiam. Estavam Osmar, minha mãe, Samuel, Bia, Nando e Ananias. Em
determinado momento minha mãe perguntou qual era o motivo da reunião e Camila
pediu que todos se aproximassem.
O nossos
convidados se aproximaram e eu sentei ao seu lado. Camila apertou minha mão e
começou a falar.
“Uma
reunião entre nós sempre foi motivo de muita alegria, amor, de confraternização
entre pessoas que se amam e eu quero que seja sempre assim. Viver é tão bom?
`Porque perder tempo com mágoas, tristezas e amarguras se não sabemos o dia de
amanhã? Eu quero levar pra sempre isso. Nós todos reunidos e por isso escolhi
uma reunião nossa para contar a todos vocês uma coisa. Eu tenho câncer. Eu
estou com leucemia”.
O ar
ficou pesado, dava para ouvir a respiração de todos e ela continuou.
“Não
quero tristeza, não quero choro até porque estou doente, mas não morri ainda e
vou lutar. Vou lutar, vou vencer e vamos lembrar com orgulho desse momento. Mas
caso o pior aconteça quero que lembrem também de hoje. Que somos uma família e
que celebramos.”
Logo
depois Camila disse que estava “varada de fome” e queria kibe.
Foi uma
das últimas vezes naquele período que ela sentiu fome. No dia seguinte levei
Camila ao hospital e ela começou tratamento. O tratamento é pesado, cruel e era
horrível ver minha mulher se debilitando a cada dia. Passando mal, vomitando,
não era fácil explicar a Gabriel o que acontecia.
Os
cabelos começaram a cair. Ela não teve dúvidas e pediu que eu raspasse. Comprei
uma máquina e raspei o cabelo dela deixando careca.
Um dia
ela entrava em casa com minha mãe depois de mais uma sessão de quimio e me
encontrou careca e Gabriel com cabelinho baixo.
Camila
sorriu e abracei minha mulher dizendo “na saúde e na doença”.
A vida
continuava mesmo com a doença de Camila. A nossa também continuava. Eu
continuava trabalhando, Gabriel na escolinha e Camila realizando seus afazeres.
Bia
engravidava de seu primeiro filho. Ela e Nando viviam uma eterna Lua de mel.
Não tinha mais notícias de Jéssica, nem Guga. Minha mãe e Osmar também
caminhavam felizes.
O mercado
estava cada vez mais próspero. Já deixara de ser um minimercado para ser um
verdadeiro supermercado. Osmar tinha vontade de expandir, abrir filiais do
mercado e minha mãe respondia dizendo não haver necessidade. Minha mãe não
queria ser rica, nunca teve necessidade de ser rica, só queria ser feliz.
E ela já
sofrera tanto. Tantas perdas, a falta que Pinheiro fazia. Ela merecia sim ser
feliz.
Infelizmente
era a minha hora de sofrer.
Um dia
minha mãe e Osmar foram passear no shopping. Depois de fazer umas compras
pararam na praça da alimentação para lanchar. Dona Hellen sorria, tomava um
milk shake e percebeu a presença de Suely em outra mesa. Chamou a atenção de
Osmar e apontou dizendo “olha quem está ali”.
Osmar
pediu que minha mãe lhe acompanhasse. Os dois se levantaram e foram até a mesa
de Suely. A mãe de Camila foi pega de
surpresa pela presença dos dois e Osmar dizendo ‘Oi Suely”.
Suely
perdeu a pose por apenas alguns segundos. Logo se recompôs e respondeu o
cumprimento. Sem deixar respirar Osmar perguntou “Você sabia que nossa filha
está com câncer?”.
Suely se
assustou e respondeu que não sabia. Osmar completou “Ela mora no mesmo lugar
desde que se casou, se quiser depois te dou o endereço”. Suely agradeceu e os
dois se despediram.
Caminhando
minha mãe perguntou se Osmar achava que Suely iria nos visitar e sem titubear
Osmar respondeu “não”.
Lembram
que não falei de Samuel ao relatar como estava a vida de todos? É porque daí
veio a surpresa.
Camila
encerrou um de seus períodos de tratamento e teve uma melhora. Cresceu um pouco
de cabelo e se sentiu mais feliz. Bia já tinha uma barriguinha mostrando que a
gravidez avançava e numa noite dessas Samuel nos convidou para ir a seu
apartamento.
Lá fomos
para a cozinha e fizemos um belo empadão de carne com batatas coradas. Depois
da janta enquanto todos papeavam fui para a cozinha lavar as louças com Samuel.
Brincando comentei com meu amigo “Como é cara? Tempo que não te vejo com
namorada. Ta pegando ninguém não?”.
Samuel
respondeu que sim, estava namorando. Curioso, perguntei quem era a felizarda e
brinquei completando “apresenta logo que já estamos pensando que está namorando
esse amigo inseparável”.
Samuel
apenas sorriu.
Depois de
lavarmos tudo sentamos todos para tomar café na sala. Conversávamos quando
Samuel interrompeu dizendo que tinha uma coisa para contar.
Comentei
baixinho com Camila “ele arrumou uma namorada”. Samuel respirou fundo e contou
“estou namorando”.
Todos
ficamos felizes, felicitamos e perguntei “E aí? Qual o nome da menina?”. Samuel
sorriu e respondeu “Anderson”. Apenas esbocei um “Oi?”.
Samuel
confirmou “É o Anderson”. O amigo dele completou “Sim, sou eu”. O amigo dele,
inseparável, que estava com ele em todos os cantos e já citara aqui se chamava
Anderson.
Ficamos
em silêncio até que Bia se levantou, abriu um sorriso e abraçou os dois dizendo
que faziam um casal lindo. Todos fizeram o mesmo, menos eu.
Samuel
perguntou se eu não iria cumprimentar e sem graça respondi “assim que passar a
vergonha do vexame que cometi”. Samuel gargalhou, abriu os braços e disse “vem
logo”. Levantei, abracei meu amigo, seu namorado e disse “você merece muita
felicidade meu amigo e to muito feliz por você”.
Depois de
tudo comentei “To lembrando agora que sempre tomei banho contigo, me trocava
junto com você...Não ficava me olhando não né?”. Samuel, sério, respondeu “Não,
você tem pinto pequeno”.
Caímos na
gargalhada. Foi uma grande noite. Camila precisava disso. Eu precisava disso.
Samuel
sempre namorou mulheres e mulheres lindas. Nunca mostrou qualquer tipo de
afetação, tendências homossexuais e depois de adulto se viu atraído por um
homem. Nem posso dizer se Samuel era hétero ou gay, ele simplesmente se
apaixonou e quis viver essa paixão.
Pra dizer
a verdade uma das maiores bobagens que existe é esse rótulo. Não somos produtos
para virmos com embalagens. Toda forma de amor vale a pena não importa por qual
sexo, por bicho, por uma lembrança, qualquer coisa. Minha mãe teve a sorte de
encontrar Osmar, Bia de encontrar Nando, Samuel a Anderson. Encontrar algo ou
alguém que amamos e somos correspondidos é até mais que sorte. É uma dádiva.
Assim
como eu e Camila.
Chegamos
animados em casa. Tempo que não via Camila tão animada. Chegamos abraçados e
rindo com Camila lembrando da minha cara quando Samuel disse o nome Anderson.
Eu ri e
comentei que preferia lembrar de outra coisa. Camila perguntou o que e fui até
o som. Liguei e começou a melodia conhecida.
Respondi
“Raspberries”.
Insinuante,
Camila perguntou o que eu queria. Desabotoando minha blusa respondi “o mesmo
que quero desde a primeira vez que te vi. Você”. Começamos a nos beijar, nos
despir e fizemos amor ali mesmo na sala acompanhados de nossa trilha sonora.
No dia
seguinte estávamos deitados no sofá olhando para o teto e em
silêncio. Roupas jogadas pelo chão mostravam a intensidade do amor daquela
noite.
Camila
interrompeu o silêncio dizendo que não queria morrer. Aquela frase nos trouxe
de volta a realidade, me fez lembrar do inimigo invisível que nos deixara em
paz naquelas últimas horas.
Engoli em
seco e respondi que ela não iria morrer, só iria morrer quando eu deixasse.
Minha mulher então disse que tinha um pedido para me fazer. Curioso, perguntei
que pedido era e ela me respondeu.
“Eu amo a
nossa música. Mas você colocou no repeat e está tocando há horas. Tire por
favor”.
Gargalhamos
e levantei concordando com ela. Já tocara demais.
Os meses
passavam e Camila intercalava bons e maus momentos. Os períodos de tratamento
eram terríveis, meu amor sofria muito e eu nunca abandonava seu lado, o tempo
todo com ela, apenas ela me importava.
O filho
de Bia e Nando nasceu, se chamava Jessé em homenagem ao nosso querido e
inesquecível amigo. Fomos na maternidade visitar Bia e conhecemos o garotão.
Gordinho, grande, lindo.
Camila
pegou Jessé no colo enquanto Nando e Bia trocavam carinhos. Perguntei se minha
amada lembrava de Gabriel daquele tamanhinho e ela respondeu “claro, uma mãe
nunca esquece essas coisas”.
Olhou
mais um tempo pra ele e continuou “queria tanto ver nosso filho e
esse menino lindo crescerem”. Minha voz embargou, mas me mantive sereno e
respondi que ela veria. Camila completou “Não deixe nosso filho se esquecer de
mim”.
Aquele
pedido me desconcertou. Por sorte não precisei responder. Bia nos chamou e
disse que tinha um pedido para fazer. Nos convidou para ser padrinhos de Jessé.
Muito
felizes e orgulhosos aceitamos na hora.
Na hora
de nos despedirmos dei um beijo em minha amiga e parabenizei dizendo “parabéns
pelo filho, ele é lindo”. Bia respondeu “Dessa vez foi com amor” e não entendi
sua resposta. Antes que perguntasse o motivo dela Camila nos apressou para
irmos embora.
Três
meses depois ocorreu o batizado e estávamos lá firmes e fortes. Camila nem
tanto. Ela estava fragilizada por estar em um momento de tratamento. Magra,
colocou um chapéu para disfarçar a falta de cabelos.
Mas
aquele sorriso estava lá. Aquele sorriso que me cativou tanto. Aquele sorriso que
me apaixonou de imediato e me apaixonava todos os dias.
O
tratamento de Camila continuava e chegamos a ter boas notícias. Em determinado
momento o médico disse a Camila que o câncer desaparecera, mas que aquela
notícia não era definitiva, pois existia risco de voltar.
Mas
evidente que era uma excelente notícia.
Tivemos
meses felizes, em paz. Osmar acabou convencendo minha mãe a abrir filiais do
mercado e Camila virou uma espécie de diretora da nova empresa. Minha mulher
sempre foi inteligente, com ideias rápidas e em sua mão o negócio de nossos
pais ia de vento em popa.
Ela fazia
exames regularmente para ver se o câncer estava realmente controlado. Os
primeiros exames foram animadores, nada de alteração.
Mas
infelizmente depois de seis meses a alteração veio.
Camila
desmaiou no trabalho e foi levada ao hospital. Lá foi constatada que a leucemia
voltara e mais agressiva ainda. Minha esposa ficou internada e eu aflito por
notícias que ninguém conseguia dar. Até que o médico convocou a mim e a seu pai
para uma conversa.
Fomos até
sua sala e no local o médico disse que o caso era grave. Fiquei gelado no
momento, acredito que meu coração parou por alguns segundos e não consegui
esboçar nenhuma reação. Coube a Osmar ter a serenidade e fazer a pergunta
óbvia.
“Grave
como?”.
O medico
respirou fundo e disse que a leucemia voltara pior e que Camila teria que fazer
um transplante de medula. Teríamos que com urgência achar uma medula
compatível.
Fechei os
olhos e virei a cabeça para cima deixando uma lágrima cair do meu olho.
Continuei em silêncio enquanto o médico falava que teria que ser um parente de
primeiro grau pela possibilidade de
compatibilidade ser maior. Osmar imediatamente disse “eu doou a medula”. O
médico então contou que ele teria que fazer alguns exames para ver se a medula
era compatível.
Saí da
sala arrasado enquanto Osmar saiu com o médico para marcar os exames. Fui até o
quarto onde Camila estava. Ela magrinha, com soro na veia e um respirador no
rosto que me cortavam o coração me viu e esboçou um sorriso. Fui até seu
encontro e beijei sua testa. Camila abaixou o respirador e perguntou o que o
médico dissera.
Respondi
que ele disse que ela estava bem. Camila então perguntou “me ama?” e eu
sorrindo em minha tristeza respondi “pra sempre”.
Osmar fez
os exames e a sua medula não se mostrou compatível com a de Camila. Um
desespero tomou conta de nós. O médico perguntou por mais algum parente de
primeiro grau e Osmar respondeu que a menina era filha única. Até que minha mãe
lembrou “Suely”.
Nos
olhamos e eu decidido contei “Vou falar com ela”.
Fui até a
casa de Suely. Toquei a campainha e falei com a empregada que precisava falar
com urgência com sua patroa. Ela foi chamar e Suely desceu.
Suely se
aproximou e perguntou o que eu fazia ali. Sem rodeios respondi “A Camila dona
Suely. Ela precisa urgente de um transplante de medula e precisa que o doador
seja um parente de primeiro grau. Seu Osmar não é compatível, só restou a senhora.
Te imploro, salve meu amor”.
Suely me
olhou por alguns segundos e respondeu “vamos”.
Fomos
para o hospital e entramos no quarto de Camila no momento em que ela estava com
Osmar e minha mãe. Camila tomou um susto e abriu um sorriso dizendo “mãe!!.
Suely se
aproximou, fez carinho na cabeça da filha e respondeu “vim fazer os exames,
você vai sair dessa”.
Suely fez
todos os exames e pouco tempo depois recebemos o resultado. Infelizmente não
deu certo.
O chão
desapareceu para nós. Devastados nos comovíamos e tentávamos não nos entregar
quando ouvi um choro compulsivo, desesperado. Quando olhei era Suely.
A mulher
chorava desesperada e repetia “Faz de novo doutor, faz esse exame de novo,
minha filhinha não poder morrer!! Minha filhinha não!! Ai meu Deus!! Eu amo
minha filha!! Meu perdoa meu Deus!! Me perdoa!!”.
De
repente Suely ganhou um abraço forte e correspondeu chorando em seu ombro e
pedindo perdão a Deus. Foi de minha mãe.
Camila
iniciava uma via crucis. Melhorava saía do hospital, piorava e voltava.
Existiam certas ocasiões em que ela recebia alta de dia e voltava a noite. Era
um inferno, um pesadelo.
Um dia,
internada, enquanto eu estava na recepção ouvi uma voz me perguntando “Qual o
quarto que ela está?”. Olhei e tomei um susto. Era Guga.
Fiquei
sem falar nada e ele repetiu a pergunta. Apontei respondendo “segunda a
direita”.
Guga
caminhou até lá e entrou. Respeitei e fiquei do lado de fora esperando. Exatos
cinco minutos depois ele saiu. Nos encaramos, olhos nos olhos, e ele me pediu
“cuida dela”.
Respondi
que cuidaria. Ele agradeceu e viu Samuel. Os dois caminharam para o lado de
fora conversando.
Entrei no
quarto e encontrei Camila emocionada, chorando. Aproximei e não disse nada.
Camila virou para mim e falou “ele me perdoou”. Respondi apenas “que bom” e ela
afirmou “sabe o que isso quer dizer? Ele acha que eu vou morrer”.
Respondi
que era nada disso e ela continuou “Não ocorreu nada, nenhum motivo especial
para que ele viesse aqui e me perdoasse. O único motivo plausível é que ele
acha que eu vou morrer e veio para não carregar esse peso na consciência”.
Argumentei
que as pessoas amadureciam, esfriavam a cabeça e aquietavam o coração, mas ela
continuou chorando.
Camila
continuou internada. Vários tratamentos eram tentados o que prejudicavam sua
saúde ao tentar salvar sua vida. Já caminhava com dificuldades e passava boa
parte do tempo dormindo.
Já estava
internada há dois meses e chegou nosso aniversário de casamento. Levei Gabriel
e fomos os três até um parquinho que tinha no hospital. Ele foi para o balaço
enquanto eu a conduzia em sua cadeira de rodas até um cantinho.
Sentei ao
seu lado e disse que tinha um presente para ela. Curiosa Camila perguntou o que
era e entreguei uma caixinha de músicas. Camila
abriu e tocou “Don´t want to say goodbye”.
Camila
ouviu nossa música e disse “Don`t want to say goodbye, não posso dizer adeus”. Nos
olhamos e como se pedisse Camila falou “eu não quero morrer”.
Abracei
minha esposa dizendo que ela não iria morrer. Viramos e ficamos vendo Gabriel
brincar. Camila pediu que eu cuidasse bem dele. Respondi que iríamos cuidar,
juntos, e dei um beijo em sua cabeça.
Ficamos
em silêncio, abraçados, vendo nosso filho brincar.
Minha mãe
levou Gabriel embora e como era um dia especial decidi que tornaria a noite
especial. Voltamos para o quarto e peguei Camila em meus braços para deitá-la
na cama. Ela pediu “Não me deite na cama, me dê seu celular”.
Não
entendi, mas entreguei.
Camila
mexeu no celular até conseguir colocar uma música. Botou “El dia que me
queiras”.
Camila me
pediu “me ajude a dançar”.
Coloquei
minha mulher em pé no chão. Ela bambeou, mas conseguiu e firmar em pé. Dançamos
a música lentamente. Dançamos com o mesmo sentimento, a mesma intensidade de
quando ganhamos o concurso de música. Mas naquela noite tinha um algo a mais.
Eu não sabia responder.
Coloquei
Camila na cama e aproveitando que não tinha nenhuma enfermeira pra me encher
deitei ao seu lado. Ficamos abraçadinhos e enquanto eu fazia carinho nela
Camila me perguntou “me ama?”. Respondi “Pra sempre”.
Depois
ficamos em silêncio até adormecemos. Não trocamos uma palavra, apenas silêncio,
apenas olhares.
Como diz
um poeta e compositor amigo meu chamado Aloisio Villar “o amor é uma poesia
recitada pelo olhar”.
Na manhã
seguinte fui até a cantina tomar café. Tomava uma xícara olhando a tv quando
ouvi alguém comentar “tira esse bicho daqui!! Abre a janela para que saia!!”.
Quando,
curioso, olhei para ver o que era meu coração parou.
Era uma
borboleta voando.
Lentamente
deixei a xícara cair no chão se espatifando toda. Gritei por Camila e saí
correndo.
Como sempre, belo texto, amor...
ResponderExcluir"...na saúde e na doença..."
Chorei...
Muito sutil e bonito...
Acompanho suas histórias e peças aqui e no Recanto das Letras. Posso dizer que Camila é uma das personagens mais fortes e admiráveis que já tive o prazer de conhecer. Corajosa, que transmite carinho e ternura. Como leitora, peço licença pra dar uma dica: homenageie Raspberries no ''Sobe o som'', Camila merece isso. Sucesso
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