AMOR: CAPÍTULO XIV - AMOR (PARTE I)
Corri
muito, corri de forma desesperada. Corri gritando por Camila. Corria muito e
não chegava no quarto. Corrida longa.
Passei
pela recepção correndo e gritando por Camila. Bia, Osmar e minha mãe se
encontravam na recepção e me perguntaram o que ocorria. Mas eu não conseguia
ouvir nada, só queria saber de Camila. Só queria ver Camila.
Cheguei
no quarto e vi uma grande movimentação. Gelei. Num rompante entrei no quarto
para ver o que ocorria. A equipe médica tentava fazer voltar os batimentos
cardíacos de minha amada. Saí de mim. Gritava seu nome e tentava me aproximar
enquanto enfermeiros me seguravam e gritavam pelos seguranças. Eu via usarem o
desfibrilador nela, a tentativa desesperada de voltar com seus batimentos
cardíacos e ganhava uma força descomunal que nem enfermeiros e seguranças
conseguiam me deter.
Junto com
minha mãe, Bia e Omar conseguiram me levar até a porta. Eu era segurado por
muitos, mas mesmo assim não me afastei da porta e gritava por Camila. Um
pesadelo tomava conta de mim. Um pesadelo que não queria acabar.
Até que
acabou.
Acabou no
momento que a equipe médica parou e começou a se lamentar. O médico olhou seu
relógio e passou a hora para que anotassem.
No meio
do meu desespero eu não conseguia entender aqueles gestos.
Até que olhei pro lado e vi Osmar chorando abraçado a minha mãe que também
chorava. Ali entendi o que ocorrera.
Camila
morreu.
Entrei em
transe. Não dá pra explicar exatamente o que ocorreu naquele momento e acho que
em minha vida nunca irei conseguir. Um flashback relâmpago passou em minha
mente desde o dia que a conheci, passando pelo primeiro atropelamento até o
reencontro, as aulas de dança, o concurso, meu sofrimento lhe vendo com Guga,
nós na clínica de aborto, nosso primeiro beijo na praia depois que ela desistiu
do casamento, nosso casamento na praia, eu cantando pra ela, nossos momentos,
despedidas, reencontros como no aeroporto..
..no
momento que esse flashback passava via cobrirem seu corpo totalmente. Aí caiu a
ficha de vez. Aí um urro, um grito surgiu de dentro da minha alma, das minhas
entranhas sugando toda minha força e saindo em minha voz de forma sofrida, em
desespero.
Gritei
por meu amor, gritei seu nome. Gritei “Camila”.
Mais uma
vez gritava seu nome e tentava me aproximar de seu corpo. Tentaram me impedir
de início, mas desistiram. Entrei no quarto, descobri seu corpo e abracei.
Abracei forte como se daquele jeito pudesse fazer reviver. Seu corpo morto em
meus braços, eu morto junto com ela.
Minha mãe
tentou me tirar dali, mas Bia lhe segurou e deixou que eu tivesse aquele
momento com Camila. Eu chorava e gritava “Volta pra mim Camila!! Não faz isso
comigo pelo amor de Deus!!” e apertava ainda mais forte seu corpo contra meu
peito.
Apertava
na esperança que ela voltasse. Apertava como se quisesse lhe proteger, como se
quisesse colocá-la dentro de mim e assim protegê-la de toda a impureza e
maldade do mundo. Ser seu escudo. Apertar-lhe, guardar em mim e dizer que tudo
acabaria bem.
Mas não
ia. Ela não iria voltar. Aquilo era vida real, não ficção. Eu não tinha como
fazer o tempo voltar como o superman, ela não iria reviver se uma lágrima minha
caísse sobre seu corpo. Acabou. Nossa história acabava ali.
Nunca
mais beijaria Camila. Nunca mais veria seu sorriso, ouviria sua voz ou faria
amor com ela.
Camila
morreu.
Peço
desculpas aos amigos nesse momento, mas contar essa parte da história é muito
difícil para mim. Não consigo falar nessa parte de minha vida sem me emocionar
ou lágrimas rolarem por minha face. Como acompanharam até aqui nosso amor foi
muito forte. Eu me apaixonei por essa mulher, que era menina ainda, de imediato
e desde então vivi em função dela, em função desse amor.
Ali eu
perdia aquilo para sempre. Perdia minha base, meu alicerce. Meu espírito.
Quantos
de vocês já sofreram por amor? Acredito que todos. Quantos já perderam um amor?
Acredito que todos também. Todo mundo já passou por isso.
Mas
perder porque o amor da pessoa amada terminou é uma coisa.
Terminar
porque perdeu a pessoa amada para outro também. Dói?
Dói pra
cacete, mas o ser humano por pior que seja a situação sempre guarda para si uma
esperança. Por menor que seja.
Mas
perder pra morte? Perder para morte não lhe dá mais esperanças de nada. É o
fim. Vão bater na minha porta e eu não poderei ter a ínfima esperança de ser
ela. Vão ligar para meu telefone e eu não poderei ter meu coração ansioso esperando
que seja ela.
Minha
vida foi ceifada. Minha alma foi arrancada de meu corpo e jogada em um buraco
escuro e sem fundo. Antonio não existia sem Camila.
Eu não
era mais eu.
Me deram
um remédio para me acalmar e me levaram para a recepção. A coitada de minha mãe
se dividia entre eu e Osmar que, inconsolável, chorava a perda de sua única
filha. Bia não saía um segundo do meu lado segurando minha mão. As pessoas
foram chegando, me abraçando, tentando me consolar, mas eu não prestava
atenção. Não estava ali.
Suely
chegou desesperada, chorando, gritando e foi acalmada por amigos. Ouvia-se
muito choro no local, muito desespero. Quase todos choravam.
Eu não.
Eu tinha
olhar perdido, vazio, como se tivesse morrido também. Bia e minha mãe
perguntavam se eu queria alguma coisa e eu nada respondia. Eu não queria nada.
Aliás, queria sim, queria morrer com
Camila.
Continuei
na mesma posição, afundado no sofá sem esboçar nenhum tipo de reação quando me
percebi sozinho. Não havia ninguém ao meu lado e despertei. Aproveitei que por
alguns segundos ninguém prestava atenção em mim, me levantei e saí do hospital.
Só depois
de algum tempo perceberam que eu não estava mais lá. Um grande alvoroço tomou
conta do local e as pessoas, tensas, procuravam por mim. Ligavam para meu
celular até que perceberam que eu não levara o telefone. Tinha deixado no sofá.
Eu não
queria ser encontrado.
Eu vagava
pelas ruas do Rio de Janeiro. Andava sem direção, sem rumo. Tropeçava em meu
sofrimento. Não chorava, não mostrava desespero, apenas andava em parar. Não
queria parar de andar.
Andava,
pegava ônibus, metrô, andava mais sem ter a mínima ideia de onde estava. Nem
queria saber na verdade. Queria me perder. Queria me perder até de mim.
Enquanto
isso as pessoas nem podiam passar por suas dores. Enquanto Samuel agilizava
velório e enterro os outros me procuravam.
De tanto
andar parei no mesmo lugar de sempre. O Arpoador.
Parei lá
com o dia já amanhecendo. As pedras do Arpoador estavam desertas com uns poucos
surfistas praticando o esporte. Caminhei pelas pedras lembrando todos os
momentos que passei ali com
Camila. A ficha caía de vez. Eu saía daquele transe que tanto me fez andar e me
tocara que nunca mais voltaria ali com Camila.
Comecei a
chorar, chorar muito e gritar pelo nome de Camila. Eu não queria viver sem ela.
Tudo bem, tinha Gabriel para criar, mas eu nem conseguia pensar nisso, nem
conseguia pensar nele. Só pensava em mim e na minha dor.
Decidi
ali que iria me matar. Andei pelas pedras em direção a uma queda. A queda seria
grande em direção ao mar. Tive a esperança que aquela queda seria o suficiente
para me matar e me levar para perto de Camila. Respirei fundo, disse “te amo
Camila” e me preparei pra pular.
Quando
iria pular ouvi uma voz me gritando e mandando parar. Olhei para trás e tomei
um susto.
Era meu
pai.
Olhei
para ele perguntando como tinha me achado. Meu pai estava diferente do que eu
acostumara a ver. Estava com calça preta, sapato, camisa branca e um livro na
mão que depois percebi ser a Bíblia. Ele estendeu sua mão e implorou que lhe
acompanhasse. Perguntei novamente como tinha me achado.
Meu pai
respondeu que me contaria se eu saísse da beira. Falei que não sairia e Turco
disse “tudo bem, vou aí me matar com você”.
Meu pai
andou até a mim enquanto eu perguntava se ele ficara louco e o que estava
fazendo. Meu pai ficou ao meu lado e comentou “É, daqui é alto mesmo. Vamos
morrer na hora”.
Respondi
que não queria que ele morresse, ainda mais naquele instante que ele parecia
tão bem. Meu pai contou que já passara por muita tristeza na vida, depressão
por conta do vício, mas tinha sobrevivido a tudo. Mas não sobreviveria a perda
de um filho.
Me
irritei e falei que não era seu filho, nunca tinha sido tratado como filho por
ele e que meu pai era Pinheiro, homem que a vida também tinha me levado. Turco
respondeu:
“Eu
sempre te acompanhei, mesmo de longe te vi crescendo, virando homem e me
orgulhando de você. Você se transformou naquilo que eu sempre quis ser. Tudo
que a bebida não deixou e agradeço muito ao Pinheiro que ele fez por você e sua mãe. Seja um
Pinheiro para seu filho, não seja um Turco. Seu filho e sua mãe precisam de
você. Não precisam de mais tragédias em suas vidas”.
Ouvi
atentamente a tudo que meu pai disse e ele completou “Sei que você nesse
momento está duvidando de tudo. Até se Deus existe e que se ele existe se gosta
de você. Acredite. Eu durante anos tive essa dúvida também. Mas Deus está em
todas a coisas. Está na minha luta contra o vício e no amor que uniu você e essa
moça”.
Chorei e
perguntei como viveria sem Camila. Meu pai, sereno, respondeu “Da mesma forma
em que vivo sem a bebida. Um dia de cada vez”.
Meu pai
saiu de onde estávamos e novamente estendeu a mão para mim. Dessa vez aceitei e
lhe dei a mão também saindo.
Enquanto
caminhávamos saindo do Arpoador perguntei novamente como ele tinha me
encontrado ali. Meu pai respondeu que aquele também
foi muitas vezes seu refúgio em momentos que precisava de paz.
Quem
diria que eu e o Turco teríamos algo em comum.
Meu pai
me levou até o cemitério onde ocorria o velório. Entramos com ele me amparando
e chamando atenção de todos que se espantaram com minha chegada repentina e por
ter ocorrido acompanhado de meu pai.
Minha mãe
se aproximou, fez carinho em meu rosto e agradeceu a meu pai dizendo “Obrigado
Turco”. Meu pai respondeu “Apenas estou cumprindo minha obrigação de pai, antes
tarde do que nunca”.
Minha mãe
me conduziu até a sala que ocorria o velório e todos os meus amigos se
encontravam lá com Suely chorando a beira do caixão. As pessoas abriram caminho
para mim para que assim eu me aproximasse do caixão. Suely me viu,
cumprimentou, respondi o cumprimento e finalmente me aproximei do caixão.
Olhei
para dentro dele e vi Camila. Já sem cor, magrinha pelo sofrimento da doença,
mas com rosto tranquilo, sereno, rosto de quem não sofria mais. Fiz carinho em
sua cabeça e pedi baixinho que me levasse com ela.
Fiquei o
tempo todo ali ao seu lado e fazendo carinho em sua cabeça até que senti uma
mão em meu ombro. Me virei para ver quem era.
Era Guga.
Guga
chorava muito e vendo meu amigo tão querido ali daquela forma comecei a chorar
também, como de imediato nos abraçamos forte chorando um no ombro do outro.
Nunca
conversamos sobre o assunto, mas acredito que Camila também foi o grande amor
da vida de Guga, com agravante para ele por não ter vivido com ela tudo que eu
vivi. Amamos a mesma mulher e naquele momento sofríamos pela mesma mulher.
Éramos sócios na dor.
Depois de
um tempo abraçados sentimos a aproximação de Bia e Samuel que também no
abraçaram. Os quatro amigos lá abraçados e unidos como há muito tempo não
ocorria, unidos como quando éramos crianças. Mas infelizmente unidos na dor.
Fiquei
mais um tempo sozinho ao lado do corpo de Camila me despedindo e ao mesmo tempo
não querendo me despedir. Eu não queria me despedir de Camila, não queria me
despedir de nossa história. Mas a hora chegava e chegou a da missa.
O padre
rezou uma missa encomendando sua alma e logo depois meu pai falou algumas palavras.
Era a hora de fechar o caixão.
Na hora
do fechamento gritei e pedi para que esperasse.
Chorando
muito, me abaixei, beijei sua boca pela última vez e disse “te amo
atropeladora”. Minha mãe me puxou e me abraçou enquanto o caixão era fechado.
Assim foi
a última vez que vi a Camila.
O cortejo
foi até o túmulo e lá em silêncio os trabalhadores desceram
o caixão. Antes que fechassem o túmulo peguei uma rosa, beijei e joguei. Uma
salva de palmas marcou o fim do enterro.
Depois
todos caminharam em direção a saída do cemitério. Para alguns a vida
continuaria normalmente após sair do local, para outros depois de um tempo de
luto.
A minha
vida nunca mais seria a mesma.
De lá
fomos para a casa de Bia e Nando. Ficamos um tempo reunidos, comendo e bebendo
algo, coisa que não tínhamos feito desde a morte e relembrando Camila. Eu não
falava nada , também não comia nem bebia.
Eu olhava
distraído pela janela quando Bia se aproximou e pôs a mão em meu ombro. Eu não
falava nada e minha amiga perguntou como eu estava. Respondi apenas “mal” e
minha amiga sorrindo comentou “pergunta idiota a minha”.
Olhamos
um pouco para fora e para poder dizer algo falei que Jessé estava lindo. Notei
minha amiga respirar fundo e me perguntar se eu lembrava porque tinha dito que
daquela vez era com amor.
Sim. Eu
lembrava. Realmente ficara intrigado com aquelas palavras e perguntei a Bia o
que queria dizer. Bia ficou um pouco em silêncio e respondeu.
“Alguns
anos atrás eu saía de um trabalho e dois homens me cercaram. Roubaram minha
bolsa, documentos, cartões, dinheiro, mas não queriam só isso. Me levaram a um
terreno baldio e me estupraram”.
Eu não
sabia daquilo. Ninguém sabia daquilo. Estarrecido continuei ouvindo.
“Fui até
uma delegacia e me trataram muito mal, me fazendo sentir culpada por tudo.
Voltei pra casa cheia de vergonha, tomei um banho e decidi tentar esquecer
aquele assunto. Mas não se esquece uma violência assim. Ainda mais quando se
engravida.”
Comentei
que não sabia de nada daquilo e ela confirmou que ninguém sabia e continuou.
“Sozinha
corri atrás de resolver aquela situação. Tomei remédios e não deu certo. Corri
atrás de clínicas de aborto até que encontrei aquela que a Suely levou a
Camila. Por isso conheço tantas clínicas de aborto e conhecia aquela”.
Lamentei
por tudo que ela passou e Bia pediu segredo dizendo que ninguém sabia, apenas
eu que era seu melhor amigo. Agradeci sua confiança e comentei que devia ser
uma barra passar por tudo aquilo, ainda mais sozinha.
Bia
respondeu “É uma barra sim, mas a gente sobrevive”. Passou a mão em meu rosto e
repetiu “A gente sobrevive”.
Entendi o
recado, mas não conseguia trazer para a minha vida. Fiquei uns dias com Gabriel
na casa de minha mãe, mas rapidamente fui embora por achar que estava incomodando
mesmo eles dizendo que não. Voltei com meu filho para o apartamento que
construí com Camila. Mas sem ela.
Não era
fácil. Apesar de ter babá eu tinha virado pai e mãe. Tinha que tentar cuidar de
Gabriel e seguir minha vida. Mas cadê que eu conseguia?
Deixava o Gabriel cada vez mais nas mãos da babá e me tornava relapso em
relação a ele. Bebia demais, cada vez mais e não eram raros os dias que passava
a madrugada fora de casa bebendo. Algumas vezes com desconhecidos, outras
sozinho.
A babá
não aguentou a carga extra e pediu demissão. Outras surgiram e também pediram.
Eu praticamente jogava o Gabriel para cima delas e nenhuma aguentava o ritmo.
Eu mesmo
pedi demissão. Cheguei atrasado no trabalho e Ananias me deu bronca. Eu ainda
estava bêbado da noite anterior e mandei que ele enfiasse o trabalho me
mandando. Osmar me ligou diversas vezes para tentar entender o que ocorria, mas
não atendia as chamadas. Queria falar com ninguém.
Minha
família e meus amigos me davam bronca dizendo que eu devia pensar em Gabriel.
Eu tinha um filho com Camila e o melhor modo de respeitar sua memória era
criando bem esse filho, mas eu não queria saber. Continuava a passar as noites
bebendo, chegava em casa com o menino dormindo com a babá e ia para meu quarto
me abraçar a uma foto de Camila e chorar a noite inteira.
Essa era
minha rotina até um dia que decidi sair com Gabriel.
Peguei a
mão de Gabriel e passeamos pelo shopping. Até parecíamos uma família de
verdade. Andando pelo local, encontrei uns conhecidos e parei para beber. Bebi
bastante com eles até que decidimos emendar em um bar na Lapa. Bebemos muito e
só voltei para casa de manhã.
No fim da
manhã eu hibernava na cama quando o telefone tocou. Atendi e era Suely querendo
falar com o neto. Levantei da cama, fui até seu
quarto e encontrei a cama vazia. Só ali me toquei da merda que tinha feito, pus
a mão na cabeça e gritei “Puta que pariu!! Esqueci meu filho no
shopping!!”.
Foi uma
mobilização. Família e amigos se juntaram para procurar Gabriel. Fui até o
shopping e nenhum sinal dele. Suely socava meu peito e gritava que eu era
irresponsável. Percorremos a cidade inteira e nada de achar o menino. Até que
minha mãe teve a ideia mais lógica. Foi na vara da infância e adolescência e
encontrou meu filho.
Foi um
alívio para todos, principalmente para mim. Mas esse alívio para mim foi apenas
na alma porque eu teria prejuízo com aquela irresponsabilidade. Seria
processado por abandono de incapaz e Suely entrou com um processo ganhando a
guarda de Gabriel.
Agora eu
estava sozinho mesmo, sem Camila e sem Gabriel.
Continua...
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