O BURACO DA FECHADURA



*Último conto da série iniciada logo na primeira semana do blog no começo de 2013. Publicada na coluna "O buraco da fechadura" no blog "Ouro de Tolo" em 11/1/2014

Aloisio era um cara normal como outro qualquer. Sem superpoderes, não era galã de cinema, o craque da bola, nada disso. Era uma pessoa comum. Filho único de pais separados passou sua infância na Ilha do Governador, bairro da cidade do Rio de Janeiro sendo criado pela mãe e pela avó. Tímido, nunca foi de ter muitas amizades na infância, apenas alguns amigos no colégio e na rua em que morava.Odiava brincar na rua.

Se a sua mãe queria puni-lo mandava para fora de casa para brincar e o pobre menino ficava no portão querendo entrar. Era péssimo em todos os esportes e com as meninas, muitas vezes vendo as que gostava nos braços de algum amigo ou de alguém que não gostava. Era triste sua sina…

Acabava tendo a imaginação como válvula de escape. Como eu já disse era filho único e solitário então usava um boneco do homem aranha que tinha para criar histórias. Entrava assim em um mundo paralelo onde ele comandava as ações.

Com o tempo começou a escrever histórias em quadrinhos sobre os programas de televisão que gostava e brincava de fazer músicas com os amigos. Já adolescente começou a escrever pequenos roteiros.

Descobriu assim uma forma de interagir com as pessoas de sua idade e chegar nas meninas. Era muito bom em redação, criava histórias e o restante da turma gostava, ria, pela primeira vez Aloisio chamava a atenção de outras pessoas sem ser como péssimo jogador de futebol ou tirando zero em geometria.

O menino cresceu, se tornou adulto em meio a histórias e músicas que criava e descobriu um modo sui generis de mostrar que sabia escrever. Virou compositor de samba-enredo.

Ninguém que convivera com o Aloisio, aquele garoto tímido, desajeitado que não sabia nem batucar em uma caixa de fósforos pudesse virar sambista, mas ele virou e com relativo sucesso – sendo autor de vários sambas para o carnaval carioca e ganhando prêmios.

Só não mudou a sua total falta de aptidão com as mulheres. Parou de tomar tantos “nãos” como tomava quando era criança e adolescente, mas aí o problema foi o contrário. Muitos “sims” que recebeu lhe trouxeram dores de cabeça e Aloisio pulava de “galho em galho” não conseguindo amadurecer emocionalmente.

Intenso, romântico, carinhoso, surpreendente, amável, um príncipe encantado às vezes, um grande canalha nas outras, contraditório até a alma, apaixonado, apaixonante, desprezível, repugnante, maravilhoso, nojento, encantador… Uma pessoa comum com muitas qualidades e defeitos tendo como maior defeito a vocação para o suicídio emocional: fazer mal a si mesmo.

Aloisio parecia um de seus personagens com todo amor sufocante no peito e desvio de regras e condutas que eles têm. Seus personagens têm vida própria e viram fantasmas lhe rondando como costelas que lhe foram tiradas pra ganhar vida.

E foi dessa forma que o escritor virou personagem do último conto do livro.

O homem por traz do buraco da fechadura.

De tanto Aloisio aprontar a vida aprontou com ele.

Sempre se achou muito esperto, a inteligência em pessoa, mas foi pego “no pulo” em sua última relação e foi abandonado sem lenço, sem documento e apaixonado por mais contraditório que possa parecer ferir quem se ama.

Mas era assim que ele se sentia e não se conformava com o fim. Por quase dois anos tentou de tudo para reatar com sua última namorada. Fez declarações de amor, enviou flores, poesias, músicas, fez vídeos, foi até sua cidade, deu pirueta, salto mortal… Só não engoliu espadas porque pegaria mal. Fez de tudo e deu tudo errado.

Sabem o que é insistir no impossível dois anos?

Pois é, ele fez isso e sinceramente não sabemos quando algo deixa de ser força de vontade, luta, pra ser burrice, insanidade e Aloisio não sabia esse limite. Foram dois anos de desgastes dele, da moça e muitas vezes ele mesmo não agüentava.

Começou a sofrer um bloqueio mental. Não conseguia escrever mais nada, livros, colunas para um blog que tinha espaço aos domingos, músicas, mal era capaz de formular uma frase pra escrever no twitter!! E chegava a época das disputas de samba-enredo, sua parceria contava com ele para ajudar a fazer a letra do samba, mas estava difícil.

E mais uma vez teve uma conversa desgastante com ela na internet onde teve que engolir uma declaração sua que ele não devia ter ambições em relação a ela. Engoliu calado e quando ela se despediu sua vontade foi de destruir seu quarto a golpes de kung fu.

Mas não fez isso: decidiu sair de casa e dar um volta. Pensou na conversa recente, em todas as conversas que tiveram ao longo de quase dois anos, pensou se não seria melhor se falarem pessoalmente e finalmente resignado desistiu, chegando a conclusão que por mais que se falassem ele nunca conseguiria falar tudo que sentia.

Acabou parando no “Peixão”, um lugar de baixo meretrício perto de sua casa. Um puteiro, para os íntimos.

Chegou lá e algumas mulheres lhe ofereceram prazer em troca de um punhado de dinheiro, mas Aloisio estava tão carente, tão com baixa estima que só pagaria naquela noite por um elogio. Não se interessou por nenhuma delas e sentou perto do balcão. O atendente lhe cumprimentou e perguntou: “oi Aloisio, guaraná?”.
Aloisio se sentiu incomodado por um atendente de puteiro lhe conhecer tão bem e pensou em mudar o pedido, mas sem criatividade alguma confirmou o pedido do guaraná que já foi lhe entregue com canudo, que era o jeito que ele sempre bebia.

De repente uma mulher se aproximou dele e pediu um real para colocar música. Ele sem olhar a moça perguntou se ela colocaria funk e ela respondeu que não. Agradecido ele deu a moeda.

A mulher foi até a junkie Box e colocou “Never can say goodbye” na voz de Gloria Gaynor. Aloisio finalmente olhou para a mulher e disse que gostava dessa música.

Ela respondeu que sabia, pois dava nome a um de seus contos. Aloisio respondeu que era verdade, bebeu um gole de guaraná e depois se tocou perguntando “que conto?”.

A mulher sentou a sua frente e respondeu que era uma das histórias do livro de contos que ele escreveria. 

Aloisio riu e respondeu que não estava escrevendo nenhum livro de contos, ela contou que ele começaria naquela noite.

Aloisio respondeu que seria impossível, estava com bloqueio criativo e acabara de ter uma conversa ruim com uma ex namorada. A mulher bebeu um gole de seu guaraná e disse “sim, a Bia eu sei… E não precisa contar a história não que já está todo mundo cansado de saber e inclusive você a utilizou em um conto que se passava na rodoviária de São Paulo”.

Aloisio olhava espantado a mulher, que completou: “inclusive você usou o nome Bia em dois contos, está na hora de você ser menos previsível… Você é previsível demais pro ego que tem”.

A mulher ia se retirando do local quando Aloisio perguntou seu nome. Ela virou e disse que se chamava Bia… Rafaela, Michele, Vivian, Thais, Alice… O nome que ele quisesse.

Aloisio riu e falou que esses eram nomes de ex namoradas suas e se pudesse lhe chamar por um nome seria Emanuelle como a dos filmes do “Cine Privê”.

A mulher que já se retirara voltou e disse que ele tinha usado o nome Emanuelle em um conto com o mesmo argumento. Ela balançou a cabeça negativamente e criticou “previsível demais”.

Saiu e voltou de novo pra falar: “olha, para de falar e escrever sobre seus defeitos pra dizer que é uma pessoa comum e assim as pessoas te acharem o máximo por admitir que erra, isso só é mais um defeito”.

O rapaz foi pra casa atormentado com todas aquelas situações.

Entrou na internet um pouco e decidiu dormir. Ao acordar abriu o computador para ver se escrevia algo quando notou um arquivo novo chamado “O buraco da fechadura”.

Esfregou os olhos para ver se era isso mesmo e era. Abriu o arquivo e tinha um conto ali escrito sobre um rapaz chamado Rodrigo, noivo, que se apaixonara por uma prostituta e o nome do conto era “Amor, estranho, amor”.

Espantando se dizia “eu não escrevi isso”. Pensou em chamar a Bia na internet para contar o que ocorrera, mas deixou pra lá. Lembrou que tinha sonhado com algo parecido, mas não lembrava de ter escrito e ficou pensando “será que eu estava com tanto sono ao escrever que não lembro?”.

E no dia seguinte ao acordar tinha mais um conto e foi assim dia após dia sem interrupções, sonhava com histórias e quando ia ver estavam no papel.

Teve uma noite que decidiu não dormir. Cheio de sono ficou acordado para ver se algo ocorria e toda hora olhava o livro para ver se algum conto novo surgia e nada. Decidiu tomar um banho e ao voltar ouviu um choro na televisão. Quando olhou se viu na tv abraçado a um notebook dentro de um ônibus inter estadual e chorando.

Não entendeu nada, abriu o arquivo e lá estava o conto sobre um menino que se apaixonou ao passar férias em Curitiba. Fechou o computador assustado e pensou em ir a uma rezadeira.

Conseguiu se desligar daquele mistério escrevendo o samba-enredo pra União da Ilha. Pelo menos aquela história estranha serviu para algo: o seu bloqueio sumira.

Não contou para ninguém aquela situação, nem mesmo para a Bia que era a pessoa que mais confiava, mas desde a história da ambição ia se afastando aos poucos dele. Pensou em contar a algumas pessoas, mas pensariam que ele estivesse louco e pensariam com razão porque até ele começava a ter dúvidas de sua sanidade.

Com o tempo aquele espanto foi se tornando curiosidade. Assim que acordava Aloisio abria o notebook e lia o conto novo. Gostava da maioria e se perguntava “Fui eu que escrevi mesmo? Sabe que até que ficou legal?”.

Ria com alguns, se emocionava com outros e até se surpreendeu ao notar a letra de um samba-enredo homenageando a capital mundial do esterco em um deles. Gargalhou e comentou que fazia sambas dormindo melhor que acordado.

E percebeu que tinha um pedacinho dele em cada conto escrito, fosse personagem homem ou mulher. Cada um lembrava a ele um pouco, eram seus filhos, seus espelhos com todas as inquietudes e conflitos de sua alma, sua vocação para autodestruição, amores impossíveis e de tentar rir de si mesmo para disfarçar fraquezas.

Foi assim durante quarenta e um dias, quarenta e um contos, até a noite de estréia da disputa de samba na União da Ilha, nesse dia ele não sonhou e nenhum conto apareceu no livro.Aloisio estranhou e se perguntou se o livro estava pronto. Era dia de apresentação de samba, mas ele nem pensava em carnaval, queria saber do livro de contos, afinal, era assim que terminava? Do nada?

Foi para a União da Ilha e subiu no palco com seus parceiros para a apresentação. De cima do palco olhava a torcida e reparou em um canto numa mulher que o olhava fixamente. Ao olhar bem percebeu que era a mulher misteriosa do Peixão.

Desceu do palco sem dar muita importância para os cumprimentos pela apresentação, correndo atrás da mulher. Procurou por todos os cantos e não achou, até que decidiu ir ao banheiro.

Urinando sozinho no banheiro ouviu uma voz “você as vezes desiste muito fácil das coisas, só me procurou um pouco e desistiu”.
 
Olhou pro lado e viu a mulher sorrindo, disse que precisava mesmo falar com ela e a mulher logo falou “eu sei, você quer saber se o livro terminou”. Aloisio respondeu que sim e ela contou que não, faltava um capítulo.

Aloisio perguntou qual e ela respondeu: “o seu”.

A mulher estendeu a mão dizendo “vem” e Aloisio lhe acompanhou.

Quando percebeu estava na frente de uma boate chamada “Night Fever” e lembrou que era o nome da boate de um dos contos. A mulher puxando o rapaz pela mão entrou na mesma dizendo que era a boate do conto.

Entraram sendo recebidos por Jardel, o dono da boate do conto “Never can say goodbye”. Jardel deu um abraço no espantado Aloisio dizendo que era um prazer tê-lo em sua boate e brincou que o escritor poderia ter sido menos cruel com ele em seu conto.

Jardel puxava um Aloisio que nada entendia para dentro da boate dizendo que estavam todos lá e o escritor perguntou “Todos quem?”. Jardel apontando respondeu “Eles !!”.

E lá estavam Rodrigo, Marcela, Alexandre, Milena, César Vieira, Amanda, Jairo Mello, dona Carola e seu preto velho, Henrique, Carla, Y, Rafaela, Napoleão, Dudu, Martinho, Larcinho, Quito, Borjalo, Barrosão, Jardel, Elisa, Lucinha, André, Juliana, Marcelo, Gracinha, Beto, Silvana, Fabio, Lord Perversus, Afonso, Bianca, Jéssica, dona Zezé, Joca, Paula, Breno, o homem do metrô, Fabiana, Serginho, Ludmila, Jofre, Dr Rodrigues, Lurdinha, Leocádia, Acácio, Dorinha, Desidério, Matilde, Silas, Rubens, Vânia, Vinicius, Wallace Dorival, Teresa, Diego, Frank, dona Margarete, Chacal, Ana, Orlandinho, Ananias, Joyce, Barbosinha, Robertinho, Lara, Guto, Zezinho, Peteco, Jackson, Filomeno, Jussara, Ribamar, Romeu, Julieta, Téo, Marina, Letícia, Elias, Valéria, Francisco, Geni, Curió, Uósto, Andressa, Alice, Gomes, Teônia, Rogério, Januário, Amélia, Jurandir, Neusa, Diana, Jean, Bia, Ezequiel, Graziela, Filó, Cadinho, Gaspar, Larissa, Saulo, Adele, Gil, João, Ritinha, Cláudio, Patrícia, Igor, Emanuelle, Nezinho, Chocolate, Xibiu de Jesus, Nenê Beiçola, Franco, Nestor, Day, Maju, o boto em forma de homem, Nico Carioca, Rambo, Vitinho, Jaqueline, Jece, Kátia Flávia… Mais de cento e vinte personagens, mais de cento e vinte vidas criadas por ele em quarenta e um contos.

E eles felizes puxaram Aloisio para o meio da pista. Uma banda cantava “Never can say goodbye” no palco e Aloisio esquecia toda sua timidez e falta de talento para dança se acabando com aquelesamigos inesquecíveis, abraçando a eles, suando com eles, esquecendo todos os problemas da vida. Feliz como há muito tempo não ficava.

Depois de um tempo foi até o bar da boate e antes que dissesse algo o atendente falou “boa noite sr Aloisio, guaraná com canudo, certo?”. O escritor respondeu que sim e foi atendido. A mulher misteriosa sentou ao seu lado e perguntou se ele estava feliz.

Aloisio respondeu que sim e enxugando o suor em um guardanapo de papel perguntou se era assim que acabava a história. Ela respondeu que ainda não e mandou que ele se acalmasse e bebesse seu guaraná.Ele bebeu um gole e começou a se sentir zonzo, tentou se segurar nas cadeiras e não conseguiu. Levantou seu braço pedindo ajuda para a mulher que só olhava sorrindo até que ele desmaiou.

Acordou em um lugar estranho, em um gramado com um lago e passarinhos voando. Levantou sentindo grande paz e se perguntando se tinha morrido.

Começou a andar pelo gramado se questionando o que era aquilo afinal e o que fazia ali até que deu de frente com um grande muro branco e uma imensa porta. Tentou abrir com a maçaneta e não conseguiu, estava trancada.

O muro era alto, nem tinha como escalar, a porta fechada e ficou curioso sobre o que tinha do outro lado. 

Reparou no buraco da fechadura e que por ali dava pra ver o que aquele muro escondia.

Abaixou-se e olhou pelo buraco da fechadura. Levantou e parecia feliz, deu uma imensa gargalhada e respondeu que agora sim o livro estava pronto. Deu meia volta e continuou a andar deixando pra trás o muro, a porta e o buraco da fechadura.

Mas afinal… O que escondia o buraco da fechadura? Ficou curioso, não é?

Pode olhar… Fique à vontade…


FIM


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