AMAR DE NOVO: CAPÍTULO X - MUNDO VIRTUAL
Fernanda pegou minha mão e começamos a passear. Comentei com a moça que nunca tinha ido a Búzios, no máximo a Saquarema e ela riu e falou "Deixa que a paraense te apresenta o Rio carioca". Perguntei pelo congresso e ela contou que se encerrara a pouco e estava com o domingo livre.
Passeamos bastante e paramos para almoçar em um quiosque perto da praia. Perguntei se tinha gostado do congresso e Fernanda começou a contar. Era faladeira, falava pelos cotovelos e era um assunto que lhe empolgava. Falava de genética, câncer, células e eu que me considerava um cara inteligente entendia quase nada, mas me interessava. De vez em quando ela parava e dizia "deve estar achando um saco né?”. Mas eu não estava. Admirava a profissão e a luta por um mundo melhor.
Fomos a praia e sentamos na areia enquanto tomávamos sorvetes. Fernanda falou mais de sua família, de seus pais, de como amava sua mãe e seu pai também, apesar de ter uma relação complicada com ele. Contou que seu pai gostava de beber e lembrei logo do meu, que graças a Deus virara pastor e pregava na igreja esquecendo a bebida.
Pela primeira vez vi Fernanda triste desde que lhe conheci. Falou das dificuldades da vida e da relação difícil que sua mãe e ela tinham com o pai que era um amor fora de casa, mas outra pessoa no lar. Comentou que o pai adorava gritar com ela, tratar como criança e humilhá-la como em uma vez que saiu para caminhar, demorou a voltar devido a chuva e ele lhe tratou mal gritando na frente de todos.
Olhei para ela e disse "Seu pai deve amar você, só não sabe expressar. Nem todo mundo nasceu com o dom de expressar sentimentos. Aproveite que você nasceu. Seu olhar expressa tudo o que quer dizer. Quando seu pai brigar com você não fique triste nem tenha raiva. Apenas lembre que nem todo mundo nasceu com esse dom".
Ela agradeceu e perguntei como conseguira viajar para o Rio e participar de um congresso se passava tantas dificuldades. Séria Fernanda contou que fazia programas na BR, a estrada federal de Belém.
Engasguei com o sorvete e como criança que era na alma a menina começou a gargalhar e disse que estava brincando. Respondeu que fazia pedágios com amigas pedindo dinheiro e todos os finais de semana enfrentava a timidez e vendia brigadeiros na praça. Me admirei. Eu nunca teria coragem de vender assim, me expor, sempre fui tímido e além dessa coragem admirei a força que essa garota tinha. Força, garra, paixão que talvez nem ela soubesse que tinha.
Fernanda disse que já falara muito dela e pediu que falasse de mim, me apresentasse formalmente. Respirei fundo e contei toda minha história, principalmente com a Camila. Quando acabei de falar Fernanda sem olhar pra mim e ainda pensando na história apenas comentou "Que barra".
Respondi que era sim e na inocência que trazia ela comentou "Queria ter achado a cura do câncer e salvado sua esposa". Olhei pra ela e tímido comentei "Está me salvando".
Ficamos um tempo em silêncio e ela perguntou "Já tomou sorvete com o nariz?".Não entendi e ela perguntou novamente "Já tomou sorvete com o nariz". Respondi que não e ela emendou dizendo "É assim" e passou o sorvete que tomava em meu nariz.
Saiu correndo e rindo e eu atrás dela.
Passeamos mais e no final da tarde dei carona a ela para o Rio de Janeiro. Fomos até o aeroporto e na hora da despedida peguei um celular e gravamos um vídeo juntos onde nele eu falava que aquela não era uma despedida, apenas o início. Fizemos muita palhaçada no vídeo e ao encerrá-lo ouvimos anunciarem seu voo.
Fernanda suspirou e disse "Obrigado por tudo pretinho, foi muito especial". Ri e perguntei "Pretinho? Branco desse jeito?". Ela respondeu que era mais branca que eu então falei "Foi um prazer branquinha".
Fernanda estendeu a mão e apertei. Nos olhamos com as mãos dadas e acabamos nos abraçando. Chorando Fernanda disse que nunca iria me esquecer e respondi que não iria deixar. A locução do aeroporto anunciou a última chamada e ela lambeu meu rosto dizendo "Beijo de lesma" e correndo em direção ao embarque.
Fiquei com a mão no rosto olhando Fernanda passar pelo portão de embarque, partir e tentando entender que furacão era aquele que passou por meu fim de semana.
Voltei para casa triste com sua partida, não queria perder contato. Incrível que não demos um beijo, não teve uma insinuação de nada, mas nem precisava disso. A simples presença da Fernanda me fez um bem danado como há muito tempo não sentia e não queria perder aquilo.
Assim que entrei em casa peguei meu celular e acessei redes sociais atrás dela. Com muita alegria achei "Fernanda Jardim da Silva" e adicionei.
A alegria que eu estava não combinava com a perturbação que passava Gabriel.
Gabriel ainda tentava entender a volta de Thais quando foi a ONG na segunda antes de tentar a vaga na companhia de teatro. Visitou a vó e deu de cara com Thais. Perguntou o que a moça fazia ali e dona Hellen respondeu que contratara para ser assistente social perguntando se tinha algum problema. Gabriel respondeu que não e minha mãe disse que teria que resolver uns problemas deixando os dois a sós.
Thais e Gabriel se olharam e ficaram em silêncio. Thais "quebrou o gelo" comentando que antes o meu filho ficava feliz quando lhe via e até lhe perseguia. Thais riu ao lembrar dessa época e Gabriel permaneceu sério. A moça, constrangida, comentou que ele também sorria mais antes e completou com "Mas não lhe culpo por isso".
Gabriel ironizando agradeceu e disse que ela não lhe culpar fazia seu dia mais feliz. Thais pediu "Não deboche Gabriel, não é momento para isso. Se quiser a gente senta e conversa". Meu filho respondeu que não tinham o que conversar, tudo o que era pra ser falado já foi no passado e que tinha que ir embora fazer teste para teatro.
Thais mostrou felicidade por saber que aquele sempre era seu sonho e Gabriel ironizou "Eu sou assim. Não desisto de meus sonhos. Não desisto de ser feliz" indo embora e deixando Thais sozinha.
Saiu da ONG, suspirou e comentou "Como é difícil" entrando no carro.
Gabriel foi para o teatro e fez teste para a companhia "Sociedade dos dramaturgos mortos". Encenou Hamlet e passou com louvor.
Foi correndo para casa me contar e me encontrou com o notebook ligado mexendo nele. Me abraçou, contou a novidade e mandei que pegasse o champanhe que era pra brindarmos.
Brindamos e desejei felicidades ao meu filho naquele mundo que se abria. Ele agradeceu, mas percebi que algo estava errado. Perguntei qual era o problema e ela respondeu "Thais".
Não tinha muito que dizer, apenas falei "O amor é complicado" com Gabriel dando um gole no champanhe e respondendo "Muito". Depois ele pediu licença dizendo que estava com sono, precisava dormir e saiu. Eu voltei para o notebook e não era para trabalhar como sempre fiz.
Lá me esperava Fernanda com a webcam ligada para conversarmos.
Dessa forma a vida foi andando. Eu entrava todos os dias na internet para falar com Fernanda, algo que até mudava meus hábitos normais. Nem sabia ao certo o tipo de relação que tínhamos. Como nunca apimentamos, insinuamos nada e só nos tratávamos como amigos acho que era amizade. Eu falava do meu dia a dia e ela da faculdade. De vez em quando me mandava trabalhos que iria apresentar, eu lia, entendia muito pouco, mas dava força porque sabia que era importante para ela e admirava seu trabalho.
Gabriel ensaiava espetáculo que iria apresentar com o grupo e não conseguia esquecer Thais. De vez em quando os dois se esbarravam na ONG e se perturbavam com a presença um do outro. Tinham muito a conversar, mas evitavam e se tratavam apenas com cordialidade.
O dia do espetáculo chegou e todos nós, amigos e familiares de Gabriel fomos, inclusive Thais. Era uma peça desconhecida de um autor não muito famoso que falava de uma mulher que num ato de desespero ao ver o filho desenganado cometia eutanásia lhe matando. Uma peça polêmica onde Gabriel fazia o papel de um advogado que perdera o filho e tinha que defender a mulher.
Thais foi e eu lhe cumprimentei na porta do teatro. A moça perguntou se achava que Gabriel gostaria de sua presença e respondi que tudo que ele mais quis na vida inteira foi sua presença. A moça sorriu e entrou. Guga e Samuel se aproximaram de mim e Samuel comentou "Gabriel ator de teatro. Quem diria. Em algum lugar Camila está muito orgulhosa".
Concordei com ele e Guga falou "Teatro é meio esquisito né? Sei lá, Gabriel sempre foi tão machão, pegador. Teatro é coisa de veado. Desculpa Samuel, nada pessoal". Samuel olhou para ele e respondeu "Vai se foder meritíssimo". Depois dessa troca de carinhos nós três entramos.
A peça realmente era boa e Gabriel se saiu muito bem vivendo o angustiado advogado. Em uma cena em que falava de amor olhou para Thais e disse o texto diretamente para ela. Eu sentado ao lado notei que a moça ficou incomodada enquanto Gabriel parecia sair do personagem e dizer tudo o que tinha vontade.
Fiz uma recepção em nosso apartamento para celebrarmos o sucesso da peça e de Gabriel. Thais optou por não ir, mas foi uma noite de muita alegria em que eu estava doido para que acabasse e eu pudesse falar com Fernanda no computador.
Todos foram embora e conectei dando tempo de falar um pouco com ela. De manhã ela se despediu e eu me preparava para desligar o computador quando Gabriel apareceu com cara de sono para beber água.
Perguntou se eu estava trabalhando até aquela hora e respondi que não, conversava com Fernanda. Gabriel antes de ir até a cozinha deixou a pergunta "Por quê se falam tanto pelo computador? Você tem dinheiro, por quê não vai até Belém?".
Saiu e eu olhando para o nada me toquei e comentei "É..Tem sentido".
Em duas horas estava dentro de um avião embarcando para Belém.
Fui recebido com um caloroso abraço por Fernanda na quente cidade de Belém. A menina comentou que eu era louco, ir a cidade assim de uma hora para outra e eu respondi "Eu louco? Você ainda não viu nada" Fernanda sorriu e disse "Vem, minha hora de apresentar minha cidade".
E passeamos bastante com ela me mostrando os pontos turísticos tradicionais de Belém, inclusive o famoso "Ver-O-Peso" em que brinquei perguntando se era ali que ela se pesava. Gostei da cidade, achei linda e fiz planos de voltar no Círio de Nazaré.
Foi só um dia que passei em Belém, fui no impulso e tinha que voltar ao Rio para trabalhar, mas foi bom porque finalmente pude conhecer um pouco a cidade que só passara rapidamente a trabalho e pude rever Fernanda, o que me revitalizava. A moça comentou que faltavam poucos meses para tentar o Rio de Janeiro com a cara e a coragem. Mandei que ela fosse sem medo porque o Rio não era Nova York, mas também era a "terra das oportunidades".
Fernanda comentou "Quero dar um futuro bacana aos meus pais, retribuir tudo o que me deram. Minha mãe é sofrida, ela merece". Passei a mão em seu cabelo e disse que iria conseguir. Ela continuou "Tenho medo de uma cidade desconhecida, estar só, mas vou encarar". Sorri e respondi "Não está só, tem a mim'. Fernanda agradeceu, disse "Sei que posso contar com você pretinho" e me deu o já tradicional "beijo de lesma" saindo correndo.
De noite embarquei de volta ao Rio de Janeiro já contando as horas para que ela fizesse o mesmo.
No dia seguinte fui visitar a ONG, tomar um café com minha mãe, tempo que eu não fazia isso e ela reclamava. Dona Hellen, perspicaz disse que eu estava diferente, com um brilho nos olhos que não via faz tempo e eu respondi que era impressão dela. Ela olhou bem pra mim e perguntou " É a moça de Belém né?".
Desconversei, respondi que não sabia do que ela falava e ela continuou "Não adianta mentir pra mim, Gabriel já me contou tudo". Brincando chamei meu filho de traidor e falei que tinha nada demais, apenas uma grande amizade.
Minha mãe lembrou Pinheiro e da dor que sentiu com sua morte.
Disse que achou que nunca mais iria amar de novo até que surgiu Osmar, casado e com família estabilizada. Ela não aceitava por ele ser casado e achar que traía Pinheiro, mas depois concluiu que não tinha como nem porque lutar porque "O amor quando vem não pede licença".
Ouvi a tudo atentamente e no fim ela completou "Camila morreu faz quase vinte anos. Você não. Se permita viver, porque o amor não vai te pedir licença".
Amor não pede licença..Sim, evidente, Mas é tão difícil!! Evidente que Fernanda me atraía era uma excelente companhia, mexia comigo, mas eu não conseguia. Parecia sim que traía Camila por mais que essa ideia fosse absurda. Não é fácil dar o passo adiante e não era apenas eu que passava por isso.
O tempo passou e um dia Gabriel foi a ONG ajudar no trabalho de sua avó. Mexia em uma papelada no escritório quando bateram na porta e abriram. Era Thais.
Thais pediu desculpas e perguntou por dona Hellen. Gabriel comentou que ela já tinha ido embora e ele tinha ficado para ajudá-la em uns documentos para análise. Ela pediu desculpas novamente e saiu.
Gabriel ficou mais alguns minutos vendo a papelada e também resolveu ir embora. Guardou tudo e ao sair e abrir a porta da frente da ONG deu de cara com uma chuva torrencial. Uma daquelas chuvas de inundar a cidade inteira.
Gabriel olhou para o lado e viu Thais observando a chuva. Sem olhar para ele a moça comentou "A rua encheu, não tem como ir embora".
Estavam os dois sozinhos e ilhados na ONG.
Antes que ele pudesse falar algo uma trovoada forte surgiu apagando a luz de todo o bairro. Num impulso Thais abraçou Gabriel, pediu desculpas e se afastou. Gabriel achou por bem entrarem.
Voltaram para a sala de minha mãe e Gabriel achou uma vela e acendeu. Os dois ficaram em silencio por um tempo e para quebrar o gelo Thais comentou "É, só chover e ninguém mais consegue andar nessa cidade". Num rompante Gabriel interrompeu perguntando "Por que você fez aquilo com a gente?".
Thais perguntou o que e Gabriel novamente perguntou "Por que você tinha que casar com o Ronaldo? Por que você me abandonou?".
Thais se desconcertou com a pergunta, mas respondeu "por compaixão". Gabriel perguntou pena e ela continuou "Compaixão por um homem maravilhoso que precisava de mim naquele momento". Gabriel olhou nos olhos dela e perguntou “E eu não precisava?".
Thais tentava se explicar dizendo que ele precisava mais dela naquele momento e Gabriel insistia no casamento pro pena. Thais explodiu "Não foi por pena! Foi por amor! Eu amava aquele homem! Não era um amor homem e mulher, não era um amor carnal, mas o amava demais. Era um homem maravilhoso, parceiro amigo, foi meu primeiro homem, estava morrendo e eu não podia abandoná-lo em um momento como aquele. Como eu viveria com essa culpa?”.
Gabriel retrucou "E como você vive com a culpa de ter acabado com o nosso?". Thais revidou que se acabou não era amor e Gabriel devolveu "Vai ver porque nunca existiu".
Thais andou pela sala, se virou para Gabriel e comentou que da parte dela existiu e o maior ato de amor que ela poderia fazer fez que foi deixar meu filho livre para alguém que pudesse cultivá-lo enquanto ela cuidava para dar morte digna a alguém. Emendou que amor era doação. Gabriel reclamou que Thais não sabia o que era amor e ela perguntou "E você sabe?".
Gabriel contou sua visão de amor.
"Não acredito em amor comedido, amor que não se expõe, não se mostra. Não acredito em amor pra dentro. Acho lindo casal de mãos dadas dando selinho, mas isso pra mim não é amor é cumplicidade e amor é mais que isso. Amor de verdade dói, machuca, fere e deixa marcas. Amor é algo tão intenso que parece que não vai caber no peito e explodir de tão forte que é. Amor rasga entranhas, faz perder a cabeça e não dá margens para dúvidas".
Thais apenas observava e ele continuou.
"Amor é o segurar de um braço impedindo a pessoa amada de ir embora. Amor é gritar a todo mundo que ama. Amor é Humprey Bogart se mostrando um homem de gelo, impassível mandando a amada ir embora no avião porque ela seria mais feliz sem ele.
Dilacerado por dentro, arruinado, mas mantendo a firmeza de deixar a amada fazer a escolha, mesmo que não seja por ele".
Thais interrompeu e disse que isso ela fez abrindo mão do amor para casar com Ronaldo e Gabriel devolveu "Não, isso eu fiz na porta da igreja deixando que você casasse".
Thais olhou assustada e perguntou "Você foi?". Com lágrimas nos olhos Gabriel fez com a cabeça que sim.
Um novo trovão caiu e novamente Thais se agarrou em Gabriel, mas dessa vez não soltou. Os dois se olharam e deram um beijo apaixonado.
Naquele mesmo instante eu saía do banho com roupão e a campainha tocando. Abri a porta e dei de cara com Fernanda encharcada, com uma mala, sorrindo e perguntando "Está frio! Posso entrar?";
Dei um sorriso, coloquei sua mala pra dentro e ela entrou. Fiz carinho em seus cabelos e lhe dei um abraço.
Abraço apertado de saudades.
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A MOÇA DE BELÉM
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