DINASTIA: CAPÍTULO IV - HOSPEDARIA
Salvatore,
com outros imigrantes, foi levado até a “Hospedaria do Imigrante” em São Paulo.
Construída em 1882, no bairro do Bom Retiro, foi demolida e reconstruída na
Mooca devido a grande demanda de imigrantes que chegavam.
Assim que
chegou à hospedaria Salvatore recebeu impresso em italiano o regulamento do
local. O regulamento era impresso em seis idiomas e lá recebiam alimentação nos
refeitórios e camas em dormitórios, com divisões entre famílias e solteiros.
Salvatore
viu aquela quantidade enorme de estrangeiros na hospedaria e teve esperança de
encontrar sua família. Percorreu por todo lugar e nada até que desistiu e foi
deitar.
Deitou,
mas não conseguiu dormir. Virava de um lado para outro na cama pensando em
Morgana, em sua família e na Itália. Estava sozinho naquela terra estranha e no
meio de tantas tragédias não aguentou e chorou.
Um choro
quase silencioso, esmagado em seu peito, aflito. A vontade de Salvatore era
explodir, gritar, mas se conteve apenas apertando seu boné contra o peito e
chorando.
Do nada
aparece um rosto no beliche cima. De um rapaz. Ele pergunta se está tudo bem e
timidamente Salvatore responde que sim.
O rapaz
sorri e diz que isso é bom porque eles têm um país pra conquistar, da boa noite
e se deita.
Salvatore
pensa na frase que o rapaz disse “um país pra conquistar”. Ele só queria
reconquistar a alegria.
Salvatore
não consegue dormir e quando a mulher ruiva que o levou até a hospedaria, dona
Gioconda, se levanta e vai até a cozinha encontra o rapaz varrendo.
A mulher
se espanta com o rapaz tão cedo já pegando no batente e Salvatore responde que
nunca fugiu de trabalho e queria justificar sua estadia. Gioconda se diz feliz
e manda o rapaz ir ao refeitório que logo serviria o café.
Salvatore
encosta a vassoura e pergunta onde ficam os italianos do local além da
hospedaria, precisava achar seus pais. Gioconda conta os lugares que os
imigrantes frequenta, mas diz para o menino não ter muitas esperanças porque
muitos já foram para outros bairros da cidade e o interior trabalhar.
O rapaz
diz que perdeu tudo e a única coisa que lhe restou foi a esperança. Gioconda
coloca a mão em seu ombro e pede que ele vá ao refeitório tomar o café.
Salvatore
sentou e tomou seu café. Não era nenhuma iguaria dos Deuses, mas era a melhor
refeição que fazia em muito tempo. Enquanto comia uma pessoa sentou ao seu
lado. Era o rapaz da noite anterior.
O rapaz,
muito falante, se apresentou como Manolo e pediu que Salvatore passasse o pão.
O rapaz foi logo contando que era da Espanha, chegara há algumas semanas e
enriqueceria no Brasil.
Manolo
falava demais, não deixava Salvatore falar, nem raciocinar.
Uma hora
Salvatore pegou um pedaço enorme de pão e pediu que Manolo abrisse a boca, o
espanhol abriu e o italiano colocou o pão e mandou que mastigasse.
Enquanto
Manolo tentava mastigar Salvatore disse que finalmente conseguia respirar e
perguntou se todos os espanhóis eram assim e depois os italianos é que eram
acusados de falar demais.
Manolo
engoliu e disse que adorava falar, adorava viver e que a vida era maravilhosa.
Salvatore deu um gole no café contando que a vida não estava sendo maravilhosa
com ele e o espanhol retrucou que ele resmungava demais.
Salvatore
contou que sua noiva e irmã morreram na viagem e tinha se perdido da família no
desembarque. Nesse instante Manolo levanta da mesa, estende a mão e fala
“vamos”.
Salvatore
sem nada entender pergunta para onde e Manolo responde “achar seus pais”.
O
italiano olha por um tempo o espanhol que estende a mão de novo e diz “Que há
carcamano? Tem medo de que?”. Salvatore levanta e diz que tem medo de nada e o
espanhol completa “então vamos achar sua família e conquistar o país”.
Salvatore
foi até Gioconda e pediu permissão para sair com Manolo e procurar sua família
prometendo trabalhar na hospedaria até a noite e a mulher concordou. Dessa
forma os dois novos amigos saíram pela cidade.
O
italiano não estava acostumado com uma cidade tão populosa e grande. São Paulo
da virada do século era a síntese do desenvolvimento
urbano.
Salvatore
se deparava com ruas pavimentadas, energia elétrica que começava a chegar e linhas
de bondes. Vendedores ambulantes se digladiavam tentando vender seus produtos e
Manolo ensinava ao novo amigo que caso ele se perdesse tinha que dizer que
estava hospedado na Mooca. Salvatore perguntou se havia risco de se perder e
Manolo respondeu que se ele conseguiu se perder na descida de um navio imagine
numa cidade grande como aquela.
Manolo se
transformou em um verdadeiro guia de Salvatore. Contou que muito da riqueza
daquela cidade vinha dos imigrantes como eles. Os olhos de Salvatore brilharam
e o italiano perguntou se era verdade mesmo que os imigrantes enriqueciam no
Brasil.
Manolo e
Salvatore pegaram um bonde e o espanhol com mais experiência na cidade
respondeu que sim. São Paulo era a terra das oportunidades e os primeiros
imigrantes fizeram fortuna com comércio e indústria. Salvatore estranhou ao ver
algumas pessoas com peles mais escuras e perguntou quem era, Manolo respondeu
que eram os negros.
Não
existiam negros em sua terra e Salvatore curioso perguntou mais sobre eles.
Manolo explicou
que eles estavam lá para substituir esses negros que trabalharam como escravos
até pouco tempo antes. Eles fariam o serviço que era dos negros com a diferença
que seriam remunerados. Salvatore perguntou porque esses negros eram escravos e
Manolo respondeu “porque são negros, isso bastava”.
Manolo
perguntou se Salvatore queria conhecer melhor os negros e o italiano respondeu
que sim. Pegaram um bonde e andaram um pouco até chegar a Santa Efigênia e seus
cortiços. Lá Salvatore viu pessoas pobres, muitas vezes vestidas com trapos, bebês
chorando e mães dando água misturada com farinha pra aplacar a fome e crianças
brincando.
Na porta
de uma das casas tinha um homem negro já com idade avançada. O homem fumava um
cachimbo e abriu um largo sorriso ao ver os dois imigrantes. Levantou e disse
“Manolo, meu amigo”.
Os dois
se abraçaram e Manolo num “portunhol” apresentou Salvatore ao homem negro. O
homem cumprimentou o italiano e perguntou se ele era espanhol também. Manolo
riu e respondeu que não, esse era carcamano. O negro sorrindo mandou que os
imigrantes entrassem.
A casa
era humilde, mas ainda era uma das melhores do local. O homem se apresentou
como Tião e Manolo contou que Salvatore nunca vira um negro na vida. Tião
contou que não só ali em São Paulo, mas pelo Brasil havia muitos, irmãos dele
que como ele sofreram na mão dos brancos, um sofrimento que vinha desde seus
ancestrais africanos.
Tião
contou que era um ex-escravo e mostrou as costas a Salvatore. O italiano traduzido
por Manolo perguntou o que eram aquelas marcas e o negro rindo contou que eram
marcas do chicote, castigo que os donos do café davam. Salvatore se espantou e
contou que viera ao Brasil para trabalhar no café e não queria apanhar.
Tião riu
e mandou que o italiano não se preocupasse, pois, era branco como um bebê igual
aos donos das terras e estava ali para ganhar
dinheiro, não para ser escravo.
Manolo
disse que Salvatore estava triste porque se perdera da família quando desceu do
navio e Tião contou que nunca conhecera a mãe, foi arrancado de seus braços
assim que nasceu. Salvatore comentou que aquilo devia ser muito triste e Tião
retrucou “seu moço, o senhor não tem noção do que é tristeza”.
Logo após
o negro dizer isso uma mulher apareceu convidando os dois para comerem. Era
Jurema, esposa de Tião.
O casal
serviu aos amigos um feijão com vários tipos de carne dentro que Salvatore
nunca comera na vida e se deliciou. Tião serviu uma bebida contando que era
típica de seu povo. Salvatore se animou e Tião contou que mostraria ao italiano
como era a festa de seu povo.
Os três
saíram da casa e andaram um pouco até encontrar vários negros. Alguns batucavam
instrumentos que Salvatore nunca vira e outros faziam uma dança que as vezes
parecia uma luta. Tião contou que se chamava capoeira.
Salvatore
e Manolo se encantaram com aquela dança que parceria luta ou luta que parecia
dança, não tinham certeza e o espanhol notou uma negrinha faceira que dançava e
não tirava os olhos dele.
Manolo
falou ao amigo que já voltava e sumiu com a negrinha. Salvatore nem se importou
com o sumiço do amigo e por um tempo se esqueceu das tragédias que entraram em
sua vida maravilhado com os negros e aquilo tudo que descobria. Chegou a pensar
em quanto seu pai gostaria de ver aquilo e prometeu lhe mostrar um dia.
Depois de
um tempo Manolo voltou e disse ao amigo que estava na hora de se despedirem.
Deram um abraço em Tião que desejou boa sorte aos estrangeiros. Salvatore
devolveu o desejo de boa tarde e Tião riu “sou negro seu moço, aqui não temos
sorte”.
Os dois
partiram e Manolo contou que queria mostrar outra coisa ao amigo. Salvatore
curioso perguntou o que era e o espanhol respondeu que ele conheceria um pouco
da cultura de sua terra. Decidiu levar o amigo ao Largo dos curros.
Largo dos
curros é a atual Praça da República e lá na virada do século aconteciam
touradas. Os amigos foram e Manolo se extasiava vendo o toureiro e seu balé.
Salvatore pouco entendia o que ocorria, apenas que o bicho estava sofrendo e
começou a torcer pelo touro.
Manolo ficou
indignado e disse que Salvatore estava desrespeitando sua cultura torcendo pelo
animal e que o certo era o toureiro sair vencedor. O italiano respondeu que não
torceria contra o bicho, era crueldade e começou a gritar “vamos touro”.
Ninguém
entendeu de princípio, mas aos poucos algumas vozes iam surgindo a favor do
pobre animal e quando Manolo se deu conta a arena toda apoiava o touro. Os
gritos de “vamos touro” ecoava por todo o lugar deixando não só Manolo
desconcertado como o toureiro também.
No fim o
touro não só venceu como deu uma chifrada no toureiro para delírio do público.
Manolo saiu indignado da tourada dizendo que Salvatore humilhara a Espanha e o
italiano só ria.
Voltaram
a hospedaria e Salvatore notou que já era bem tarde, bem mais que
prometera voltar e se desesperou imaginando que seria mandado embora por
Gioconda. Entraram na hospedaria com o italiano logo pedindo desculpas para a
mulher.
Salvatore
alegou que perdera a hora, mas estava disposto a trabalhar a madrugada inteira
para compensar. Serena Gioconda mandou que o rapaz fosse descansar porque
estava precisando e que no dia seguinte ele fizesse o serviço. Salvatore mais
uma vez pediu desculpas, agradeceu e se retirou.
Quando
ele saiu Gioconda agradeceu a Manolo pela ajuda e o espanhol respondeu que
ajudaria sempre que ela precisasse.
Manolo
entrou no dormitório encontrando Salvatore já deitado. Subiu a escadinha quando
o italiano comentou que se divertira muito naquele dia, como há muito tempo não
se divertia, mas estava frustrado por não encontrar sua família.
Manolo
colocou a cabeça para fora de sua cama e contou ao amigo que tinha uma boa e
uma má notícia para lhe dar. Salvatore perguntou quais eram.
Manolo
respondeu que a má notícia é que ele não encontraria sua família e
provavelmente nunca mais os veria e eles não saíram naquele dia para encontrar
os seus.
Salvatore
então perguntou qual era a boa notícia.
O
espanhol respondeu que era eles não terem saído para encontrar a família do
italiano e sim para reencontrá-lo, reencontrar sua alegria e esperança e isso
eles conseguiram encontrar.
Manolo
deitou e Salvatore ficou alguns segundos pensando naqueles dizeres. Manolo
colocou novamente a cabeça para fora e disse “esse país pode nos dar muito, é
só sabermos aproveitar”.
E assim,
depois de muito tempo Salvatore dormiu bem.
Os dias
se passaram. Salvatore continuava trabalhando na hospedaria em troca de
alimentação e cama e procurando sua família no tempo vago. Não conseguia
nenhuma pista deles e a esperança de encontrá-los caía a cada dia.
Manolo
pegava um bico aqui outro ali para conseguir sobreviver. Batalhava com agentes
uma oportunidade de ir para o interior do estado trabalhar nas fazendas de café
e continuava muito atraído pelas negrinhas.
E a
amizade entre os dois fortalecia cada vez mais.
Chegou o
último dia do ano, do século e Salvatore acordou cedo como todos os dias para
limpar a hospedaria. Gioconda liberou o italiano do trabalho alegando que era
dia de festa e o italiano perguntou se podia então ir para a rua procurar sua
família.
Gioconda
disse que sim e o italiano partiu.
Mais uma
vez Salvatore revirou ruas atrás de seus familiares, o dia todo até que viu um
homem caminhando. O rapaz teve a certeza de ser seu pai Benito Granata e saiu
em disparada atrás. O homem pegou um bonde e Salvatore correu até que
alcançasse o bonde e também conseguisse entrar.
Do lado
de dentro foi pedindo licença para as pessoas até que tocou no
ombro do homem e disse emocionado “papa”.
O homem
se virou e não era Benito. Salvatore pediu desculpas e desolado desceu do
bonde.
Voltou
para a hospedaria e não estava em clima de festa. A noite chegou, todos
brindavam celebrando os 1900 que surgiam enquanto Salvatore sentado do lado de
fora observava a Lua que tanto gostava.
Manolo
chegou com duas taças e uma garrafa de vinho sentando-se ao seu lado. Encheu o
copo do amigo e disse que aquele século seria grandioso.
Salvatore
com o copo cheio olhando a Lua respondeu que não sabia como e Manolo apontando
para ela retrucou “Tudo será nosso nesse século, até a Lua”.
Salvatore
riu e Manolo completou após beber e encher novamente seu copo “mas antes vamos
começar por Ribeirão Preto”. Salvatore não entendeu o que o amigo quis dizer e
o espanhol repetiu “Ribeirão Preto, nós vamos para lá”.
O
italiano contou que nem sabia o que era Ribeirão Preto e o espanhol respondeu
que era onde tinha uma grande fazenda de café que ele recebeu oferta de emprego
e levaria o italiano com ele. Salvatore respondeu que não iria e Manolo retrucou
que ele não tinha escolha.
Salvatore
olhou por um tempo Manolo e o espanhol perguntou “Você quer ficar aqui lavando
chão e procurando sua família pro resto da vida? Foi para isso que você veio ao
Brasil?”.
Salvatore
olhou mais um tempo e perguntou “Ribeirão Preto?”. Manolo olhando os olhos do
amigo respondeu “Ribeirão Preto”. Salvatore sorriu e exclamou “Ribeirão
Preto!!” oferecendo a mão ao amigo.
Manolo
estendeu a sua, apertou a mão de Salvatore e também exclamou “Ribeirão
Preto!!”.
Ribeirão
Preto.
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