Capítulo XIX - Que país é esse?

Fui morar em Brasília até porque como dizia Renato Russo “lugar melhor não há” ainda mais pra quem mais uma vez queria refazer sua vida. Mantive contato com Soninha já que João Guilherme era meu afilhado. Ela refez sua vida conheceu um homem e se casou novamente. Gaby também refez foi para a Califórnia e se casou com o Carlinhos. Eu continuava minha saga solitária.
Arrumei trabalho como engenheiro na capital do país e mesmo não tendo as praias que tanto amava me adaptei bem a cidade, afinal ajudei a construir. Sandra havia me dito muitos anos antes que eu era um cidadão do mundo, meu pai um ser livre e tudo que ocorreu depois em minha vida confirmou suas teses. Muito vivi muito viajei e quem sabe Brasília não seria meu local definitivo.  
Tinha uma vida tranqüila trabalhava, estudava, namorava porque ninguém é de ferro e passeava nos fins de semana. Pensava na vida, muito, como todo velho faz. Essa era a maior doideira dessa minha vida doida beirava os setenta anos com aparência de trinta. Olhava a foto e ria pensando que até que eu seria um coroa charmoso.
Pensava qual seria a reação de pessoas que não me viam há anos se me olhassem daquela forma, com o mesmo aspecto de quando se despediram de mim. Também em como eu iria reagir que desculpa daria para ter ainda aquele aspecto? Havia mergulhado em formol? Até seria engraçado, mas eu estava afastado de Tremembé, do Rio, não havia chances de ocorrer tal fato inusitado.
É mas aconteceu. Um dia jantava sozinho tranquilamente num restaurante quando vi um rosto conhecido entrando, uma pessoa de idade já também com seus setenta anos cercado de gente parecia importante. Notei que ele me olhava também e ficou uma coisa estranha porque parecia paquera. O homem apertava os olhos como se quisesse enxergar melhor e eu constrangido desviava meu olhar e continuava comendo. 
Esqueci aquele homem não lembrava realmente de onde conhecia e segui comendo. Amava aquela corvina crua ao molho de shoyu e como de costume vou deixar a receita aqui que peguei com o chef

CORVINA CRUA AO MOLHO DE SHOYU 

Filé de Corvina (Fresca)
200 ml de Molho Shoyu
Limão
Gengibre
Sal

Prepare o Filé de Corvina (Fresca), sem pele, corte em
fatias finas e reserve.

Coloque o molho Shoyu em um recipiente, junte o suco de
1 limão médio, uma pitada de gengibre ralado, e uma  pitada de sal.                                                                                                    

Agora e só molhar as fatias (cruas) de filé de corvina
no molho e saborear.
 
Obs: A Corvina ideal para ser consumida nesta
receita, por ser uma carne muito sensível é aquela
capturada recentemente.

Bom apetite !!

Enfim estava eu lá apreciando minha corvina quando o homem surgiu em pé na minha frente e espantando exclamou “Doido!!”, na hora cuspi longe o suco que tomava e olhando incrédulo para ele disse “Gustavo!!”.
Sim, era meu amigo de infância Gustavo aquele com quem vivi muitas histórias. Uma mistura de sentimentos tomou conta de mim por um lado uma grande emoção em ver um amigo que não encontrava há mais de trinta anos por outro o sentimento de “fudeu” por que não sabia como explicar que meu amigo de infância aparentasse ter quarenta anos a mais que eu.
E a emoção que tomou conta dele logo virou espanto já que evidente ele estranhou a minha aparência e na hora que ele balbuciando iria perguntar como poderia tal situação fui rápido no gatilho e respondi “filho dele”. Levantei e apertei sua mão.
Convidei para que sentasse e disse que era meu filho, chamava-me Doido Junior e que já havia ouvido falar muito nele. Sabia todas as histórias como se tivessem acontecido comigo e logo notei quem era pelas fotos que meu pai me mostrara.
Gustavo sorriu parecia feliz em encontrar um filho de seu amigo de infância e brincando falou que comigo meu pai poderia ficar tranqüilo e nunca duvidar da paternidade porque eu era sua cara. Ao continuar brincando disse que meu pai havia cometido uma grande maldade comigo dando seu nome para mim e perguntou por ele.
Hesitei por uns segundos e respondi que “meu pai” morava nos Estados Unidos. Havia participado da luta armada contra a ditadura e foi exilado gostou do país e ficou por lá. Gustavo disse que luta armada era a cara de “seu amigo doido” e que muitos companheiros dele também haviam tomado naquela luta, mas que o país vivia novos tempos, tempos gloriosos.
Eu sinceramente não entendi o que ele quis dizer com “tempos gloriosos”. O país vivia uma grande crise no fim dos anos oitenta o governo do presidente José Sarney enfrentava dificuldades, a inflação estava fora de controle assim como o desemprego.
O plano cruzado havia dado errado e com ele foi-se a esperança do povo brasileiro. Mas como ela era a última que morria tinha uma eleição presidencial chegando a primeira eleição direta desde a vitória de Jânio Quadros. Vivíamos uma democracia finalmente se respirava um ar de liberdade, mas estávamos longe de “tempos gloriosos”. Realmente meu amigo tinha virado um político.   
Conversamos por um tempo ainda. Ele feliz de me encontrar e eu tenso tentando esconder a verdade. No fim deixou-me um cartão e falou que qualquer problema, qualquer coisa que eu precisasse era só procurá-lo. Olhei o cartão e estava escrito Senador Gustavo Travassos.
Eu nem tinha perguntado, mas meu amigo que começou se candidatando a prefeito de Tremembé para desafiar meu pai havia se tornado Senador da República. Senti orgulho dele ainda mais que eu participei do início daquele processo.
Gustavo foi embora e me senti aliviando soltando um “ufa”. Meu segredo estava preservado. Continuei trabalhando normalmente, vivendo a minha vida quando um dia a campainha de meu apartamento tocou, atendi e qual não foi minha surpresa ao encontrar Gustavo.
Assustado perguntei se algo tinha acontecido e como ele achara meu endereço. Gustavo perguntou se podia entrar pedi desculpas pela falta de educação e permiti. Meu amigo entrou e falou que para um político tudo era fácil era só fazer umas ligações e descobria o que quisesse e assim achou meu endereço. Sentou e contou que precisava de mim.
Sentei também e perguntei como eu poderia ajudar alguém tão importante quanto ele. Gustavo respondeu que sua filha tinha chegado há pouco em Brasília e ele estava preocupado que ela pudesse estar andando am más companhias sabia da índole de “meu pai”, notou pelo tempo que conversou comigo que eu era muito parecido com ele e pensou que eu poderia ajudar.
Perguntei como. Ele respondeu que já havia descoberto que ela estudava na mesma faculdade que eu e pediu para que eu me aproximasse fizesse amizade com ela e vigiasse seus passos para que ela não fizesse nenhuma besteira. Falei para meu amigo que aquilo não era certo eu estaria enganando a menina. Ele me fez uma ótima oferta financeira e perguntei quando começava.
Comecei a reparar seus passos na faculdade. Descobri que se chamava Bianca era metida com diretório acadêmico e também fazia parte da juventude socialista. Bianca era uma ferrenha cabo eleitoral do candidato do PT Luis Inácio “Lula” da Silva à presidência da República o que causava problemas em casa já que Gustavo era um dos articuladores da campanha do candidato do PRN Fernando Collor de Mello.
Pensei em um modo de me aproximar, mas a menina era um pouco “metida”. Pegava panfletos seus políticos e tentava puxar assunto falando sobre a mesma. Esbarrava nela para que nossos livros caíssem, chamava para sair, mas nada Bianca não me dava um pingo de atenção. As coisas não davam certo.
Uma noite segui Bianca e ela foi a uma casa noturna da região. Sentei em um canto e fiquei observando a menina pensando numa forma de me aproximar. Notei que ela bebia muito, rapazes chegavam nela tiravam pra dançar e ela parecia fora de si. Saiu da casa e dois foram atrás fiquei preocupado e fui também.
Do lado de fora tentavam empurrar Bianca para dentro de um carro e ela chorando implorava para que lhe soltassem que ela não queria ir. Como vocês que até agora resistiram e chegaram aqui nessa parte lendo essas mal escritas linhas sabem sempre fui metido a herói e não iria deixar que fizessem mal a moça.
Corri até o carro e ordenei que largassem. Mais uma confusão generalizada começou em minha vida. Uma grande briga se iniciou entre os três até que a polícia chegasse e nos levasse.
Passei a noite na cadeia, mas salvei Bianca. No dia seguinte Gustavo foi até a delegacia e usando de seu cargo conseguiu me soltar do lado de fora agradeceu me dando um abraço e dizendo que me devia uma. Falei que ele não tinha com que se preocupar e fui direto para o trabalho.      
Cheguei ao trabalho em péssimo estado, a cara toda arrebentada e pra piorar a situação meu chefe já sabia do ocorrido. Chamou-me em sua sala e disse que seu escritório não gostava de se ver envolvido em escândalos e que era pra eu passar no departamento pessoal que estava demitido.
Acabei tomando prejuízo naquela história de proteger a filha do meu amigo. Fiquei sem emprego e mesmo ainda recebendo do Moulin Rouge não gostava de mexer naquele dinheiro gostava de guardar no banco para uma necessidade.
Cheguei à faculdade e quando me encaminhada para a sala ouvi alguém me chamando, virei para ver quem era e vi a Bianca. Ela se aproximou de mim e agradeceu pelo meu gesto que se não fosse por mim ela teria problemas. Beijou meu rosto e partiu para sua sala. Apesar daquele jeito de maluquinha gostava daquela menina..vai ver por isso eu gostava, doido atraía maluco. Começou assim nossa amizade.
De noite Gustavo mais uma vez foi ao apartamento e contou que soube que eu tinha perdido meu emprego e tinha uma proposta pra me fazer. Perguntou se queria trabalhar como seu assessor parlamentar e também ajudar na campanha do Collor para presidência.
Relutei um pouco porque não concordava com os pensamentos do candidato. Gustavo insistiu falando que eu não tinha nada a perder e ganharia um ótimo salário tanto como assessor como na campanha. Eu estava sem emprego e não queria mexer no dinheiro de Tremembé que estava na poupança e como ideologia não enchia barriga nem pagava contas aceitei.
Comecei assim a trabalhar no gabinete de Gustavo e na campanha de Collor, assim como a sair com Bianca e com o tempo começamos a namorar. Ela e eu nos dávamos muito bem Bianca era uma menina divertida que só tinha defeito as vezes de exagerar na bebida. Só discutíamos quando o assunto era política. A eleição presidencial tinha ido para o 2° turno e ela era partidária do Lula enquanto eu trabalhava pro Collor.
E a campanha de 2° turno tomava todo meu tempo. Collor não foi bem no 1° debate pra presidente e Lula se aproximava dele nas pesquisas. Algo novo teria que ser feito para evitar a virada e o Gustavo teve uma idéia. Localizou uma mulher e pediu para que eu a buscasse e levasse até o comitê de campanha. Fiz o que ele pediu e levei a mulher até ele. Era uma suposta amante do candidato do PT que por idéia de Gustavo foi para o horário eleitoral de nosso candidato falar mal do Lula e dizer que engravidou dele e ele queria que ela abortasse.    
Minha consciência doía estávamos jogando baixo. Bianca ficou uma semana sem falar comigo devido a esse episódio, Lula ainda apareceu em sua propaganda ao lado da tal filha que ele tinha pedido que fosse tirada, mas não adiantou muito. Gustavo virou um dos líderes da campanha do Collor e o 2° debate chegou. Meu amigo sugeriu um tom mais agressivo que foi aceito pelo candidato. Depois com uma edição do Jornal Nacional considerada estranha até hoje Collor venceu Lula e foi eleito presidente.
Fiquei apenas um pouco na festa da vitória não me sentia confortável com a forma que ela ocorreu e não reconhecia naquela águia política meu amigo idealista e com esperanças de mudar o futuro. Saí da festa e encontrei Bianca que estava muito triste com a derrota de seu candidato. Eu vivia em uma corda bamba porque ao mesmo tempo em que tudo aquilo me incomodava o poder dava uma sensação maravilhosa ainda mais pra mim que sempre fracassara tanto na vida.
Collor foi empossado e no dia seguinte todo o dinheiro de anos vindo de Tremembé que eu guardara na poupança virou pó em um pronunciamento da ministra Zélia Cardoso de Mello. Fiquei desesperado e fui até Gustavo perguntando se ele sabia que aquilo aconteceria. Ele virou pra mim e disse pra eu ficar tranqüilo que em dezoito meses receberia meu dinheiro de volta. Perguntei novamente se ele sabia que isso aconteceria Gustavo mais uma vez desconversou deu tapinha no meu rosto e disse que ganharíamos muito dinheiro a partir daquele momento.  
Os anos foram passando e realmente Gustavo ganhou muito dinheiro eu não, mas tinha tudo que queria já que tinha amigos importantes e influentes. Eu e Bianca fomos morar juntos em um apartamento ótimo, nossa vida era muito boa o problema era a bebedeira dela que aumentou para outras coisas.
Um dia Bianca chegou à casa estranha e notei que ela estava alterada, mas eu era bem vivido pra saber que não era apenas por bebida. Minha namorada foi ao banheiro e vasculhei sua bolsa achando um papelote de cocaína. Irritado fui até o banheiro e enquanto ela tomava banho joguei no vaso e dei a descarga. 
Abri o box e falei que não admitia drogas naquela casa e que ela precisava de tratamento. Começamos uma grande discussão e no fim Bianca começou a chorar. Abracei e disse que lhe ajudaria.
Bianca continuou usando drogas e estava cada vez pior. Chamei Gustavo para conversar, mas ele pareceu não se importar muito. O presidente Collor começava a ter problemas graças a uma entrevista que seu irmão havia concedido a uma revista semanal. A bomba explodiu em cima de seu tesoureiro Paulo Cesar Farias e começava a respingar em Collor. Gustavo pediu que eu desse um jeito na situação e que o que eu fizesse me apoiaria. Conversei com Bianca e ela topou uma internação.
Alguns meses depois ela saiu da clínica totalmente livre para uma vida nova. Vivíamos nossos melhores momentos já que até com bebida ela parou. Enquanto isso a situação do presidente entrava em ebulição. Gustavo “pulou do barco” de Collor e passou a agir a favor de um impeachment tornando-se um dos líderes do movimento. Eu olhava abismado essa situação e como era fácil político mudar de lado.
Um dia o presidente pediu para que o povo não lhe deixasse só e pediu que a população saísse com roupas coloridas às ruas para lhe mostrar apoio. O tiro saiu pela culatra. Os jovens de todo país saíram em um domingo vestidos de preto protestando contra os escândalos de Brasília e pedindo a saída do presidente. Evidente que Bianca embarcou nessa onda de protestos, era a vingança por tudo que seu candidato havia sofrido um pouco menos de três anos antes.
Bianca ia a todas as passeatas até viajava pelo país para isso. Um dia de surpresa apareci em uma dessas passeatas. Ela surpresa me viu e saiu correndo para me abraçar, nos beijamos e ela pintou meu rosto com listras verdes e amarelas. Eu que era ex pracinha, ex guerrilheiro agora virava cara-pintada.
Como era esperado em 2 de outubro de 1992 o impeachment foi votado pela câmara de deputados e aprovado. O presidente Collor foi afastado do poder e o vice presidente Itamar Franco assumiu. O país viveu uma grande festa e Gustavo foi até meu apartamento comemorar.
Chegou com uma garrafa de champanhe e perguntou por Bianca respondi que ela tinha saído. Pediu duas taças para brindarmos a queda do presidente.
Peguei as taças muito incomodado. Primeiro porque por mais que Collor tivesse feito eu não desejo mal a quase ninguém e não gostava de brindar a infelicidade alheia e segundo porque se ele foi eleito devia muito a Gustavo e agora ele estava lá comemorando eu só pensava naqueles versos de Cazuza “Pois aquele garoto que ia mudar o mundo/Mudar o mundo/ agora freqüenta as festas do Grand Monde”.
Não gostava daquela situação e torcia para meu amigo e agora sogro ir embora. Gustavo já bêbado contava que tinha uma grande ambição para as próximas eleições que o céu era o limite para ele e que eu o acompanharia junto. Agradeci e ele falou que bendita a hora que briguei na rua por causa de Bianca porque assim teve justificativa para ir ao meu chefe e pedir minha cabeça.
Não acreditava no que ouvia. O Gustavo tinha pedido minha demissão para meu chefe só para ter-me em suas mãos. Gustavo não parava de falar e contou como tinha sido bom me encontrar naquele restaurante e pedir o favor que vigiasse Bianca para ele. Que eu tinha dado jeito naquela maluca.
Não havíamos percebido, mas Bianca tinha aberto a porta de casa e escutava tudo escutando também a parte que só me aproximei dela por mando do pai. Olhei e lhe vi chorando encostada à porta. Levantei falando que era nada disso, mas ela saiu correndo. Corri atrás com Gustavo enchendo mais uma taça de bebida.
Ela entrou no carro em disparada e eu atrás. Foi tão rápida que sumiu de minha vista. Procurei Bianca por toda Brasília em vão, não encontrei e decidi voltar pra casa na esperança que ela desse notícias.
Entrei em casa e encontrei Bianca caída no sofá com uma agulha na mão, saía sangue do nariz e os olhos fundos. Bianca havia tido uma overdose de heroína tal como a Kelly em Las Vegas. Desesperei-me, peguei Bianca em meu colo e corri para o hospital.
Do hospital liguei para o Gustavo contando o que ocorrera e ele mais uma vez mandou que eu “resolvesse o problema”, terminou pedindo que eu desse “um jeito na viciada” e desligou o telefone na minha cara.
Andei de um lado para outro nos corredores do hospital rezando para que ela ficasse boa sentia-me culpado pelo que ela ouviu.
Gostava dela e queria que nada de mal ocorresse. De repente o médico apareceu com cara desolada pedindo desculpas porque tinham tentado tudo, mas Bianca estava morta.
Sentei no sofá chorando por mais uma morte em minha vida de quem eu gostava, de como a vida era injusta e no crápula que meu amigo de infância Gustavo havia se tornado. Lamentei por aquela menina doce que só queria ser feliz e lamentei por mim que agora carregaria aquela culpa pra sempre. Liguei novamente para Gustavo e contei o ocorrido.
Uma hora depois Gustavo chegou com alguns homens. Não aparentava um pingo de tristeza. Chegou falando que aquilo poderia arruinar sua carreira e perguntou onde poderia achar o médico. Apontei e ele foi até o doutor conversar.
Alguns minutos depois voltou e parecia ter cara de alívio, disse que conversou com o médico e o laudo oficial mostraria enfarte nada de drogas. Pediu que eu providenciasse tudo sobre o enterro e o informasse depois. Foi embora com os homens que levou e eu fiquei com cara espantada. Aquele homem tinha perdido a filha e não mostrava tristeza, saudade, nada. Só pensava nele.
Providenciei tudo e Bianca foi enterrada. No cemitério Gustavo deu seu show particular chorando para as câmeras e contando que metade dele tinha ido embora com a morte da filha. Mas que continuaria de pé por ela e lutando. Lançaria em sua homenagem o instituto Bianca Travassos.
Algumas semanas depois promoveu uma grande festa para o lançamento do instituto. Esse instituto serviria para cuidar das crianças pobres das cidades satélites de Brasília, mas eu sabia que seria apenas para encobrir desvios de verbas. Conhecia bem o senador Gustavo Travassos sabia todos seus podres, só não reconhecia nele meu amigo Gustavo.   
Fez um discurso emocionado ao tirar um pano que encobria painel com o rosto de Bianca. Contou todos seus planos e lançou sua candidatura a presidência em 1994. Depois um cocktail foi feito e ele fazia questão de me apresentar a todos.
Ao me apresentar a uma pessoa tomei um susto. Uma loira na altura de seus cinqüenta anos baixinha, aparência frágil, mas que parecia uma fortaleza, ao apertar sua mão com olhar arregalado falei “Raquel!!”
Ela sorriu e respondeu que sim aquele era seu nome e de onde a conhecia. Não se lembrou de mim. Contei que era filho do Doido e ele sempre falava dela mostrava fotos e reconheci. Perguntei como ela estava lá se falaram que ela estava morta.
Nesse momento um homem se aproximou e deixei meu copo cair no chão. Gustavo perguntou se estava tudo bem e respondi que sim. O homem deu um beijo em Raquel e disse que “lembrava muito bem de meu pai”. Era o meu torturador no DOPS. Nunca esqueceria aquele rosto.
Eu fiquei sem palavras e Raquel rindo contou que foi para o DOPS e assim que se encaminhou para a primeira sessão de tortura aquele homem que cometeria os atos não teve coragem de tocar nela. Foi uma paixão a primeira vista e ele simulou que a torturava. Levava para a sala, ficavam só os dois e ela gritava fingindo ser torturada. Em troca passou todos os nomes de terroristas que o DOPS queria e para que ela não sofresse represálias da esquerda simularam sua morte.
Ouvi tudo aquilo sem conseguir falar nada. Raquel fez um carinho em meu rosto e mandou lembranças para o Doido. Fiquei ali parado uns minutos ainda e fui pro banheiro vomitar.
Vomitei muito, vomitava e chorava de ódio. Lembrei de tudo que passei nas mãos daquele desgraçado, dos traumas que carregava até então no corpo e na alma e no quanto que sofri por aquela ordinária achando que tivesse sido brutalizada e morta enquanto ela entregava companheiros e se juntava a um torturador.
Recompus-me e fui embora sem que ninguém percebesse. Parei em um orelhão e liguei para a revista semanal dizendo que tinha coisas para contar.
Contei para a revista todos os podres de Gustavo. Virei capa dela no domingo seguinte e uma CPI foi instaurada. Nela contei tudo o que sabia. Deputados e senadores investigaram e o pedido de cassação foi aprovado. Mas minutos antes de começar a sessão de cassação Gustavo renunciou.
O processo no judiciário deu em nada como sempre e alguns anos depois Gustavo voltou como deputado eleito pelo povo.
Pelo menos a minha parte eu fiz.
Depois da CPI fui embora de Brasília de volta ao Rio de Janeiro. No rádio do taxi tocava a música “Que país é esse?” do Legião Urbana..eu não sabia que país era aquele. Só sabia que não era o que eu sonhava.

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