QUINZE ANOS: CAPÍTULO VIII - JULHO


Estou em um tatame. A luta não está fácil. Está empatada e quem der o próximo golpe vence. Estou caído no chão com muitas dores na perna, penso em desistir.

O Nelson, meu oponente grita ao meu lado e bate com força a mão no chão dizendo que sou fraco e que eu levantasse. A dor é insuportável, não dá mais pra mim. Mas meu professor, um japa coroa manda que eu levante porque vou vencer.

Ele grita “Vai Quizinho, vai Larusso, você consegue!! Pra cima!! Pra baixo!! Aaaaiii!!”.

Levanto mancando, com muitas dificuldades. O juiz da luta pergunta se posso, se tenho mesmo condições. Com cara de sofrimento respondo que sim e o juiz manda que tomemos posição com o Nelson apontando pra mim e dizendo que vai me matar.

O árbitro autoriza a luta e eu levanto uma das pernas e abro meus braços como se fosse uma garça, uma libélula esvoaçante. Nelson se aproxima de mim e dou um salto acertando seu rosto com a perna que estava no chão.

Caio cheio de dores, mas vencedor, Nelson está nocauteado.

As pessoas invadem o tatame para comemorar, me colocam nos braços enquanto meu técnico japa só me olha e sorri. Ericka se aproxima e me dá um beijo. É o meu momento, eu sou o campeão.

Nesse momento o professor Martins me puxa e entrega a bíblia na minha mão mandando que eu copiasse tudo. Olho pra ele assustado que diz ironizando “karatê kid..tá bom”.

Acordo com o despertador tocando e avisando que era meu último dia de aula antes das férias.

Tomei café e o clima em casa era muito pesado com o processo de divórcio dos meus avós. As duas nem me deram atenção naquela manhã só formalizando o que minha avó diria na audiência. Saí, peguei o busão e antes que seu Juarez fechasse a porta coloquei meu pé. Ele olhou e eu sorri falando que não estava atrasado. Seu Juarez respondeu “Último dia de aula..pelo menos hoje né”?

Subi, assisti as aulas, lamentei que ficaria quase um mês sem ver a Ericka justo naquele momento que nos aproximamos devido as aulas de teatro e recebi meu boletim. Minhas notas melhoraram em relação ao primeiro bimestre. Mas eu continuava mal em geometria e geografia.

Saí do colégio comentando com meus amigos que minha mãe me mataria devido a essas duas matérias com eles dizendo que não, minha mãe era gente boa e entenderia.

Não entendeu e me pendurou pelos pés no terraço com a cabeça pra baixo dizendo que sim, me mataria por causa das notas. Eu desesperado olhando o chão pedia pelo amor de Deus para ela não me soltar e prometendo estudar.

Ok..exagerei, ela não fez isso. Só ficou furiosa e falou que eu teria aulas particulares nas férias.

Saco..se já não bastasse ter que aparecer todos os sábados ao colégio, quem tinha notas vermelhas era obrigado a fazer reforço, ainda teria aulas particulares em casa. Que férias eram essas?

Eu tinha um time de futebol na minha rua que se chamava “Temporal” e usava o mesmo uniforme do “To que tô”. Eu graças a minha grande habilidade esportiva era o técnico do time e ele ganhara reforços de meus amigos de colégio. O Pinheiro conseguiu um amistoso para o time na região Serrana do Rio e treinávamos na praia todos os dias para esse jogo.

O Pinheiro era como se fosse o meu pai já que eu tinha pouquíssimo contato com ele. Meu pai nunca me procurava, nem nos meus aniversários, Natais nada. Eu que lhe procurava as vezes, mas acabei desistindo já que não via carinho em retorno.

E foi numa dessas manhãs na praia que o Pinheiro me deu a notícia que fora transferido para Belém. Perguntei como assim e ele respondeu que como fuzileiro naval tinha que ir para onde mandavam e lhe designaram para Belém.

Perguntei como ficaria minha mãe, como eu ficaria sem ele lá. Pinheiro passou a mão na minha cabeça e disse que nunca nos abandonaria e sempre que pudesse viria nos ver ou a gente poderia ir a Belém.

Fiquei triste e ele me deu um abraço. Imaginei como ficaria minha mãe e sei que ela ficaria muito triste. Paramos de novo para ver o treino dos meninos e Pinheiro perguntou qual era o nome da professora de matemática que eu tinha pavor.

Respondi que era Lilian e vinha a ser mãe do George, que acabara de cair com a cara na areia. Pinheiro respondeu que era esse nome mesmo.

Não entendi e perguntei “como assim era esse nome mesmo”. Pinheiro respondeu que minha mãe contratara uma professora particular pra mim e se chamava Lilian.

Gelei, senti como se caíra num prencipício e corri pra casa pra verificar a informação.

Chegando lá encontrei minha mãe e avó com um advogado tratando detalhes da audiência e pedi que ela confirmasse que minha professora seria a Lilian mãe do George. Ela não só confirmou como me respondeu que a primeira aula seria naquela tarde.

Para minha mãe foi apenas uma informação que ela dera. Eu me vi a caminho de um avião, cachorros latindo pra mim, polícia me revistando, encontrando drogas presas por baixo de minha camisa e eu sendo levado a uma prisão turca ao som de uma música apavorante.

Era o inferno..eu pensei em fugir de casa, morar na rua, viver de pequenos assaltos e me viciar em drogas. Era uma versão mais amena de vida que ter aulas com a Lilian.

Mas sempre fui covarde, fiz nada disso e fiquei no meu quarto rezando para que ela não viesse.

Mas mesmo chegando atrasada ela veio..

Estendi a mão de forma trêmula e gelada dizendo “oi professora Lilian”. Ela apertou minha mão quase a quebrando de novo com a força do aperto e respondeu “continua mal em matemática né?”.

Respondi que era geometria e ela respondeu que geometria era matemática mandando que eu pegasse meu livro e sentasse.

Vou ser sincero. A Lilian em aula particular era muito melhor que dando aula em colégio. Era mais atenciosa e dócil, acabei aprendendo bastante sobre a matéria.

Mas ainda tinham as aulas de sábado.

Cheguei sábado no colégio e ele estava praticamente vazio. Entrei na sala de aula e só tinha mais quatro alunos. Além de mim uma patricinha, um esportista, um garoto rebelde e uma garota estranha.

Ficamos lá os cinco sozinhos como se fosse um clube.

Tivemos as aulas e saímos ainda a tempo de eu pegar o treino do Temporal. O time treinou e na manhã seguinte botou o pé na estrada em um ônibus patrocinado pelo comércio da Ilha para que pudéssemos com nosso talento representar e orgulhar o bairro.

Chegamos ao local e o time da área já nos esperava com a torcida presente e gritando palavras de baixo calão pra gente. O clima não era nada ameno.

O juiz reclamou nosso atraso e eu e Pinheiro pedimos desculpas. O Temporal entrou em campo e logo no apito inicial tomamos a primeira falta.

O time dele era todo feito de “cirurgiões” que fizeram questão de “operar” nosso time. Era uma pancada após a outra e pensei que a qualquer momento a Cruz Vermelha apareceria no campo para tirar o que sobrou de nós daquele genocídio.

Conseguimos fazer um gol e aí a situação piorou. Os zagueiros adversários jogavam com pedras na mão e abriram o supercílio do Gustavo. A pressão dos caras aumentava cada vez mais atrás do gol de empate e eu já falava com o Pinheiro que não sabia como sairíamos vivos de lá.

Até que uma falta foi marcada pra gente perto da área deles.

Marco ajeitou a bola e eu comentei com o Pinheiro que daria merda. O neguinho ajeitou com muito carinho e tomou distância. Pinheiro deu sinal ao motorista de nosso ônibus. Ele abriu a porta e ligou o busão.

Marco correu e bateu a falta. A bola foi bem no rosto de um dos adversários que estava na barreira que caiu duro. Todos pararam pra olhar o garoto caído em um silêncio ensurdecedor.

Que foi interrompido com o Pinheiro gritando “pro ônibus”. Todos nós corremos para o ônibus com o time e a torcida adversária atrás.

Jogaram paus e pedras no nosso ônibus enquanto ele acelerava.

Depois de um tempo estávamos em segurança e começamos a rir daquela situação, de como aquele povo era idiota e que ganhamos o jogo quando sentimos um terrível mau cheiro.

O ônibus parou e Marco achou um gambá dentro do busão colocado pela torcida adversária. Pegou e colocou pra fora.

Que jogo..

Posso dizer que aquelas férias estavam bem movimentadas. Voltamos e ficamos sabendo que o Luis Felipe, que não foi concosco, tinha sido roubado e apanhou na rua. Chegou a ficar um dia no hospital, mas saiu e estava tudo bem com ele.

Com ele sim, mas com a gente não. Éramos uma irmandade e os outros cinco ficaram furiosos com a situação jurando vingança. Perguntamos ao Felipe em qual área ocorrera o problema e ele nos contou.

Fomos os seis rodar pela área procurando os meliantes que quebraram nosso amigo e reviramos tudo ficando até de noite lá. Já desistíamos planejando voltar pra procurar no dia seguinte quando o Felipe trêmulo apontou um grupo ao longe e com medo disse “são eles”.

Não dava pra enxergar direito, mas vimos três garotos e Gustavo gritou “parem aí seus safados”. Os meninos viram e começaram a correr, corremos atrás.

Entraram em um beco, fomos atrás e acabamos encurralando os assaltantes.

Foi quando Rodrigo soltou um “peraí” e reparamos no mesmo que ele. Eram três garotos com mais ou menos oito anos de idade assustados pedindo que não batessem neles.

Gustavo virou para Felipe e perguntou se eram mesmo aqueles meninos que tinham lhe assaltado e batido e ele respondeu que sim. Ainda argumentei que eles deviam ter oito anos e os meninos responderam “nove”.

Marco mandou que os meninos fossem embora e eles correram tão assustados que ainda deram esbarrão no George.

Luis Felipe não entendia porque deixamos ir e demos cascudos nele mandando que tomasse vergonha na cara por ter apanhado de meninos de nove anos.

Enquanto andávamos George percebeu que seu relógio sumira do pulso. Na hora que os meninos correram um se aproveitou para esbarrar nele e lhe roubar.

Como éramos otários..

Minhas aulas com Lilian continuavam e parecia que finalmente eu aprendia geometria. As aulas de sábado também e essas só serviam para me dar sono. Em um desses sábados foi a formatura de um primo nosso, Jorge Guilherme na faculdade.

Ele era filho de um irmão da minha avó, ela tinha dois irmão e muito próximo de nós. Também primo de minha mãe ele era seu xodó e muito emocionada ela viu o Jorge receber seu diploma e no fim tocar “Canção da América” de Milton Nascimento pra celebrar aquele momento.

O Jorge era muito bacana e mesmo sendo dez anos mais velho me tratava como igual. Com ele eu desabafava e reclamava de nunca ter nem beijado uma menina.

Mas aquela situação mudaria.

Tinha duas meninas na minha rua que eram consideradas “foguentas” mesmo tendo apenas onze e doze anos de idade.

Seus nomes eram Viviane e Cristiane e eram filhas do Carlinhos, um dos líderes da rua. Um cara que sempre foi disposto a ajudar os outros, amigo de minha família e considerado um homem “durão” e “temido”.

Ele nem imaginava como as duas eram “pimentinhas”, eu já desconfiava, mas naquelas férias tive certeza.

Um dia elas foram a minha casa brincar. Nunca fui de brincar muito com meninas, mas acabei aceitando. Primeiro jogamos futebol e o estranho que toda vez que eu fazia gol elas vinham me abraçar. Mesmo se tivessem no time contrário.

Depois elas propuseram a brincadeira de salada mista. Aquela que eu expliquei em capítulos anteriores. Salada mista, apenas com meninas. O sonho de todo menino BV.

Tomei coragem e aceitei. Com os olhos tampados escolhi “salada mista” e quando vi escolhera a Viviane.

Ela veio e me deu um selinho na boca. Meu primeiro beijo. Eu não conseguia explicar a sensação, parecia que estava nas nuvens e foi assim depois com Cristiane, voltei a Viviane, Cristiane, foi assim o dia todo..

No dia seguinte cheguei à aula de reforço no colégio querendo contar essa novidade, mas o silêncio entre nós cinco era sepucral. Pensei então quando chegasse em casa ligar pros meus amigos falando para eles irem lá e assim eu contar que tinha beijado.

Mas chegando em casa não encontrei ninguém. Nisso ouvi a campainha e era uma vizinha chamando.

Fui atender e ela disse que minha mãe e minha avó tinham saído e pediram para que ela tomasse conta de mim perguntando se eu não queria tomar um lanche em sua casa.

Eu fui e estranhei aquela situação. Lembrei que a Joaquina estava doente, hospitalizada e perguntei a vizinha se algo ocorrera com ela. A vizinha respondeu que era melhor esperar que mãe e vó chegassem.

Ali percebi que a coisa era séria.

Quando chegaram me levaram pra casa e lá me contaram que a Joaquina falecera.

Eu sempre tive problema para conviver com a morte, ainda mais com quatorze anos, não estamos acostumados. Como eu já disse tinha perdido minha bisa quando eu tinha cinco anos e nessa idade não temos muita noção das coisas. A morte da Joaquina foi minha primeira “morte real”.

Pela primeira vez fui a um cemitério e como eu já dissera que nossa família só se reunia em casamento e velórios estavam todos lá. Meu avô veio de Brasília, mas não conversou com minha avó. O divórcio acabara de ser concluído e as duas partes se sentiram prejudicadas.

Minha avó por sinal não estava bem. O divórcio do homem de sua vida e agora a perda da Joaquina aceleraram processo de depressão nela.

Minha mãe lembrava uma vez que encarou enchente na região da Tijuca com as três quando as levaria em casa e teve que segurar o carro pela porta para que ele não caísse em um canal. As três ficaram comportadas dentro do carro e no fim disseram que sabiam que minha mãe deria um jeito.

Minha mãe sempre dava jeito para tudo, era uma mulher maravilha.

O caixão foi fechado, levado por meus tios e primos e minha mãe chorando era amparada por Pinheiro que iria embora no dia seguinte para Belém. Eu levava minha avó e Jorge Guilherme ao meu lado falava que a vida era mesmo assim. Todos temos uma missão e a Joaquina cumprira a dela.

Assim ela foi enterrada e virou saudade.

No dia seguinte levamos Pinheiro a rodoviária e emocionados ele e minha mãe se abraçaram.

Um abraço triste, doído, mas de muito amor. Assim como meu avô foi o amor da vida de minha avó sei que Pinheiro foi o de minha mãe. Ele enxugou as lágrimas dela e prometeu que estariam juntos muito antes que ela imaginasse.

Viram-se realmente algumas vezes, mas até mesmo para o amor é difícil resistir a tantas dificuldades e eles nunca mais foram um casal.

Eu fiquei mais afastado e vi Pinheiro entrar no ônibus acenando pra mim. Acenei de volta e ele sentou na janela. Abriu a mesma e pegou a mão de minha mãe dando um beijo nela.

O motorista ligou o ônibus e ele começou a se movimentar. Minha mãe acompanhava enquanto ele fazia a manobra e ia embora.

Assim o ônibus partiu e foi ficando pequenininho à vista de minha mãe. Assim como seu coração também ficava pequenininho sem Pinheiro por perto.

Cheguei perto e toquei seu ombro. Ela se virou e me deu um abraço chorando. Fiquei lá abraçado a ela acariciando seu cabelo enquanto minha mãe botava toda sua dor pra fora.

E eu no abraço lhe passava todo meu amor para que amenizasse aquela dor. Dava o amor que ela meu deu tantas vezes na vida.

Nosso amor que é imortal.


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