QUINZE ANOS: CAPÍTULO III - FEVEREIRO


Além da saudade que já sentia de Fabíola e Maceió outra coisa afligia minha cabeça.

Quem matou Odete Roitman?

Sim porque minha mãe e minha avó decidiram voltar ao Rio de Janeiro justamente na noite do último capítulo da novela “Vale Tudo” e o Brasil inteiro se perguntava quem tinha matado a velha ruim.
Em 1989 não existia notebook, tablet, smartphone, nem mesmo um daqueles celulares “tijolão” para ligar a alguém e perguntar.

Assim a dúvida persistia de madrugada dentro do ônibus enquanto o país todo já sabia.

Descemos na parada e fui correndo a uma banca de jornais tentar descobrir o assassino. Procurei nos jornais já expostos e vi a foto da atriz Cássia Kiss. Embaixo a legenda “Leila é a assassina de Odete Roitman”. Eu olhava e decepcionado perguntava “Como assim a Leila?”.

Decepção parecida quando, por exemplo, a gente conhece uma super gata, rola carinho, beijinhos e quando chegamos no motel descobrimos que era um travesti. Não..nunca aconteceu comigo essa situação acima, nem sei porque fiz essa comparação..coisa esquisita. Minha mãe e minha avó chegaram por trás de mim e respondi que a assassina era a Leila. Minha avó reclamou que era uma opção muito sem graça do autor e era como se empolgar com um homem e descobrir que ele não era bem dotado.

Minha mãe e eu olhamos pra ela que respondeu que nunca passara por isso e nem sabia por que fez tal comparação.

Família de loucos..

Lanchamos e voltamos ao ônibus prosseguindo a viagem. Algumas horas depois chegamos ao Rio de Janeiro. Não avisamos a ninguém que chegaríamos. Pegamos um taxi na rodoviária e fomos pra Ilha. Chegando na frente de casa minha avó percebeu que algo não ia bem.

Uma grande algazarra tomava conta da casa. Batista e Mauro estavam no terraço soltando pipa com as crianças da rua. Minha avó furiosa subiu as escadas gritando, minha mãe atrás lhe pedia calma e eu no portão ria. Minha avó deu uma bronca descomunal nos dois que pediram desculpas enquanto minha mãe beijava Pinheiro, que voltara de viagem e dizia estar com saudades.

Assim a situação se normalizava em seu dia a dia.

O carnaval se aproximava e infelizmente a volta as aulas também. Eu não estava muito animado, o que me fazia ir às aulas feliz era a Raquel. Uma menina baixinha, loirinha e de voz rouca da minha turma que eu era apaixonado, mas me declarei e não quis nada comigo.

Mas com o carnaval me animava. Já comprara minha roupa de bate-bola e decorado o samba da União da Ilha. O samba era muito bom e tinha certeza que a escola seria campeã. O enredo da escola chamava-se “Festa Profana” e o samba tinha versos como “Eu vou tomar um porre de felicidade/vou sacudir eu vou zoar toda cidade”.

Mas antes do carnaval algumas coisas ainda aconteceriam.

Uma era que minha avó cismou que eu tinha que fazer regime dizendo que eu estava muito gordo. Detalhe eu era magro quando criança e minha avó reclamava que eu era muito magro e tinha que engordar.
Deu-me abridor de apetite e ele nunca mais fechou. Levou-me a uma médica japonesa chamada Makuko Kubota, especialista em obesidade infantil. Odeio essa palavra “obesidade”, faz a pessoa ser ainda mais gorda.

Cheguei ao consultório e ela com cara séria parecendo que pegaria uma espada milenar de samurais para me cortar e pegou foi uma caneta, papel e escreveu o nome de todos os alimentos que eu não poderia ingerir. A lista era extensa e cada nome que surgia ali destroçava meu coração.

No fim pediu para que eu tirasse a roupa e me examinou. Eu ali peladão e ela mexendo em meu corpo. Tive que pensar na “bruxa” professora de Aritmética para não dar vexame.

Fiz a dieta durante duas semanas e graças a ela perdi quatorze dias.

Algumas coisas ocorridas nesse período me fizeram sair da dieta. Na verdade uma coisa que ocorreu.
Estava eu em casa jogando vídeo game ainda tentando bater meu recorde no river raid enquanto minha avó ouvia Julio Iglesias na vitrola, sim na época ainda eram LPs e vitrolas, quando ouvimos barulho de helicópteros.

Minha avó parou de ouvir a música e chamou minha atenção para a barulheira. Também estranhei porque me acostumara a ouvir ali apenas aviões, devido proximidade com o aeroporto, mas helicópteros não.
Minha avó ainda brincou dizendo que minha mãe devia estar envolvida com o problema. Eu ri e decidimos ligar para seu celular pra saber se estava tudo bem, mas depois lembramos que o celular só chegaria ao Brasil alguns anos depois e nem tínhamos ideia do que era um..é brincadeira viu?

Minha avó voltou ao Julio Iglesias e eu ao atari. Algumas horas depois minha mãe chegou. Ao mesmo tempo com cara de assustada e animada. Perguntamos o motivo e ela respondeu que ocorrera um sequestro no bairro e ela ajudou nas negociações.

Eu e minha avó sentamos abismados no sofá enquanto minha mãe contava tudo. Ela contou que voltava do presídio quando viu grande movimentação de carros da polícia e curiosa decidiu ir atrás. Chegaram a uma residência onde uma família fora tomada como refém. A polícia tentava negociar com os assaltantes e não
conseguia êxito.

A mulher de um dos sequestradores chegou e minha mãe doida como sempre foi se oferecer a ir com a mulher até a frente da casa tenta negociar porque era assistente social. Assim minha mãe abraçou a mulher e foi até a frente da casa sendo alvo de uma bateria de fotos e filmagens da imprensa. Chegaram à frente e minha mãe gritou que se entregassem, pois, era o melhor para eles e a mulher do assaltante pedia pelo amor de Deus que ele não fizesse nenhuma besteira.

Nesse momento ele mandou uma rajada de tiros que acertaram próximo aos pés da minha mãe e da mulher e o homem mandou que a mulher ficasse de fora daquilo. O delegado achou melhor que elas saíssem dali e ordenou a saída.

Mas minha mãe continuou acompanhando tudo e os assaltantes, três no total, desceram com reféns, colocaram em um carro e partiram em disparada. O delegado pelo rádio da patrulha deu a ordem que fechassem a saída da Ilha, na época apenas uma ponte ligava a Ilha do Governador ao continente.
Os carros da polícia saíram em disparada e minha mãe foi atrás. A polícia alcançou os bandidos na ponte e trocaram tiros conseguindo matar os três assaltantes.

E minha mãe contava essa história entusiasmada enquanto eu e minha avó estávamos boquiabertos.
Comentei que esse devia ser o motivo dos helicópteros e minha mãe respondeu que sim. Ela perguntou como não sabíamos de nada se a imprensa toda estava lá e devia estar passando tudo
na televisão. Minha avó respondeu que como sempre eu jogava vídeo game.

Minha mãe ligou a TV enquanto minha avó esbravejava que minha mãe era louca e não podia se arriscar assim tendo um filho adolescente para ser criado em casa. Mas a fisionomia de minha avó mudou quando viu as imagens na televisão e minha mãe aparecendo.

Minha avó exclamou “você tá famosa Regina!!”. Pegou o caderno de telefones e ligou para todos os conhecidos mandando que ligassem a TV.

E minha mãe apareceu em todas as emissoras e em todas as capas de jornais no dia seguinte. Única coisa que lhe deixou revoltada é que em alguns jornais lhe tratavam como mulher de um dos bandidos e em outros como policial. Ninguém colocava como assistente social.

Minha mãe sempre foi uma pessoa corajosa. Nós brincávamos e apelidamos a ela de “Kate Mahoney”, nome da personagem principal da série “Dama de ouro” que era um grande sucesso na época. Uma policial que tinha medo de nada.

Assim era minha mãe.

No dia seguinte minha avó nos chamou para irmos a uma churrascaria famosa da cidade que íamos de vez em quando comemorar “o sucesso” de minha mãe, respondi que não dava, pois, estávamos de dieta. Minha avó também entrara em regime. Ela respondeu que o regime estava suspenso e nem estava adiantando porque eu não conseguia emagrecer.

O problema era bem eu não. Minha avó comia e bebia as escondidas e não aguentava mais aquela dieta e assim fomos felizes comer carne sangrando e eu me livrei da Makiko Kubota e sua cara de samurai assassina.

Até porque o carnaval se aproximava e ninguém merece passar carnaval em dieta.

Eu era fascinado por carnaval. Gostava de sair de bate bola pelas ruas com meus amigos assustando os outros, hoje fico pensando como conseguia vestir aquelas fantasias tão quentes no calor do verão carioca e gostava também de ir de noite à praça perto de minha casa onde ocorria o melhor carnaval da Ilha do Governador.

Pinheiro junto com um amigo chamado Zé tinha uma barraca nesse carnaval da praça que seria de comidas baianas. Chamava-se Baranijé e era o local mais procurado nos quatro dias de festa.

Mas o que me fascinava mesmo eram as escolas de samba. Eu devia ser o único menino que conhecia da minha idade que decorava todos os sambas e passava a noite em claro assistindo os desfiles. Tá certo que até então eu sempre dormia na última e não conseguia ver tudo. Mas era um apaixonado e me concentrava naquela missão de ver as escolas e torcer pela União da Ilha.

A União da Ilha do Governador é uma das escolas mais tradicionais do nosso carnaval. Mesmo até então sem ganhar títulos era a escola dos sambas mais populares tendo em sua história sambas como “Domingo” que contém os versos “ vem amor, vem na janela ver o Sol nascer, na sutileza do amanhecer/um lindo dia se anuncia”. “É hoje” com seu famoso refrão “Diga espelho meu/se há na avenida alguém mais feliz que eu” e “O Amanhã” “Como será o amanhã/responde quem puder/o que irá me acontecer/o meu destino será como Deus quiser”.  

E algo me dizia que aquele samba de 1989 também faria história.

Minha história com escolas de samba ia além. Meu pai era ótimo passista e portelense doente. Desfilava todos os anos pelo Boi da Ilha do Governador, outra escola do bairro e que teria importância grande na minha vida. O carnaval chegou e eu todo animado saí com meus amigos. A fantasia era linda e eu gostava de assustar mesmo. Não sei se era por causa da máscara que escondia meu rosto, mas a minha personalidade mudava vestido de bate-bola e batendo aquela bexiga pelo chão. Eu me sentia mais confiante.

Saíamos pelas ruas da Freguesia e chamamos atenção de um fotógrafo do jornal do bairro que nos viu e tirou uma foto nossa que estampou capa no domingo seguinte. A farra estava muito boa, mas não durou muito pra mim. Fui atropelado por uma bicicleta rasgando assim a fantasia e ficando com o braço bem roxo.
Voltei pra casa e não vesti mais a fantasia.

Até porque no dia seguinte já tinha desfile das escolas de samba no Rio e eu viraria a madrugada assistindo não aguentando assim ficar acordado de manhã para sair de bate-bola. Fui com minha família na praça e ficamos na barraca do Pinheiro. Meus familiares ficariam ali a noite toda, mas eu só esperava a hora da União da Ilha para ir embora.

Nem precisei esperar. Uma chuva torrencial caiu e minha mãe e minha avó acharam melhor sairmos de lá. Um primo da minha mãe, o Flavinho, nos convidou para assistir o desfile na sua casa e fomos. Chegando lá sua família tinha visitas e uma menina bem bonitinha estava junto. Chamava-se Danielle. Branquinha, cabelo preto escorrido e grande. A menina pareceu me dar bola e fizemos uma boa amizade naquela noite, mas eu estava mais interessado nos desfiles.

A União da Ilha desfilou muito bem e o samba arrebentou como eu imaginava. Um desfile sem defeitos que me deixou com esperanças que a escola pudesse ser campeã. Estava com sono e o Flavinho sugeriu que eu deitasse enquanto a última escola não entrasse, era o Salgueiro. Concordei um cochilo não me faria mal.

Deitei e só acordei horas depois. Mais uma vez não consegui ver todos os desfiles.

Na segunda de carnaval fiz operação de guerra para poder assistir todas as escolas. Dormi o dia todo, não fui à praça e tomei café forte quando começava a primeira escola. Assim fui assiiitndo uma a uma e me impressionei com a Imperatriz Leopoldinense que estava luxuosíssima, com um samba que eu gostava muito e nunca saiu da minha mente a imagem de um cara em cima de um cavalo altíssimo que se caísse dali era pra ir direto ao cemitério.

De manhã ganhei a companhia de minha avó para assistir a Beija-Flor. Ela era apaixonada pelo Joãosinho Trinta e ficou muito decepcionada quando viu um monte de desfilantes vestidos de mendigos perguntando o que era aquilo. Respondi que tinha a ver com o enredo que falava em ratos e urubus e minha vó contou que não era aquela Beija-Flor que gostava de ver. Gostava de ver a escola luxuosa, bonita e voltou pra cama dizendo que a escola não arrumaria nada.

Realmente não foi campeã, mas o desfile entrou pra história. Ela devia ter assistido comigo. Finalmente consegui ver todas.

Na noite seguinte fomos à entrada do Gala Gay no Scala assistir o povo entrar no baile. Eram fantasias muito engraçadas e um verdadeiro desfile. Depois voltamos a Ilha e ficamos na barraca do Pinheiro.
Eu sentado com um radinho de pilhas tentando descobrir algo sobre o desfile do Boi da Ilha. As pessoas me viam e deviam achar que eu era maluco.

E eu devo ser mesmo porque transformei as escolas de samba em algo importante da minha vida.
A União da Ilha também não foi campeã, foi a Imperatriz. Beija-Flor ficou em segundo e a Ilha em terceiro no seu melhor resultado que eu vira até então.

Assisti feliz pela televisão a Ilha desfilar no sábado das campeãs e ver ali algumas pessoas que eu tratava como ídolos e que alguns anos depois se transformaram em meus amigos e parceiros de samba.

E no fim das campeãs meu carnaval também chegou ao fim e eu sabia que ali o ano começava.

E segunda tinha aula.


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